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Transformar o mundo através da Ciência

Encontro do Science20 reuniu academias de Ciências de 19 países, da União Europeia e de organizações científicas internacionais no Rio de Janeiro
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 15/03/2024 16h26 - Atualizado em 12/04/2024 12h12

A comunidade científica internacional se reuniu no Rio de Janeiro (RJ), nos dias 11 e 12 de março, para construir consensos, reforçar laços de parceria e avançar na formulação do documento “Ciência para a Transformação Mundial”, que será finalizado em novo encontro, marcado para o início de julho, também na capital fluminense, como proposta do Science 20 (S20) aos países do G20.

O encontro foi organizado pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), com apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), reunindo as academias de Ciências de 19 países, de blocos regionais como a União Europeia, de articulações continentais como a Rede Interamericana de Academias de Ciências (Ianas, na sigla em inglês), a Associação de Academias e Sociedades de Ciências da Ásia (Aassa) e a Rede de Academias Científicas Africanas (Nasac) e também de organismos globais, como a Parceria InterAcademias (IAP), o Conselho Internacional de Ciência (ISC) e A Academia Mundial de Ciências (TWAS).

Criado em 2017, o S20 é um grupo que reúne as academias nacionais de Ciências da África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Japão, Índia, Indonésia, Itália, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e a Academia Europaea, representando a União Europeia.

O S20 atua como um ator de engajamento não-governamental do G20 para a área de Ciência, Tecnologia e Inovação. Nos mesmos dias 11 e 12, por exemplo, o Grupo de Trabalho (GT) de Pesquisa e Inovação do G20, com representantes governamentais, se reuniu em Brasília sob a presidência do MCTI brasileiro, para dar continuidade ao debate da proposta do Brasil de inovação aberta como mecanismo de desenvolvimento global e sustentável.

Como em 2024 o Brasil é o presidente do G20, cabe à sua academia nacional de Ciências, no caso a ABC, organizar o encontro das academias, cujas reuniões anuais são realizadas sempre antes da cúpula do G20 – que este ano ocorrerá em novembro, no Rio de Janeiro (RJ) – em prol do diálogo entre a comunidade científica e os formuladores de políticas. Como prova disso, a reunião promovida pelo S20 no Rio de Janeiro foi aberta por representantes de dois outros grupos de ação do G20, o Financeiro e o Social, em falas que convidaram os presentes a trabalharem em consonância.

Responsável pelo diálogo com Sociedade Civil e a Trilha Financeira do G20, a brasileira Tatiana Berringer pediu engajamento da comunidade científica na defesa de sistemas financeiros comprometidos com a redução das desigualdades e citou um determinante de Saúde como exemplo. “Nossa força-tarefa (do tema Finanças) trata de Saúde e Finanças e foi constituída após a pandemia de Covid-19. O diálogo incide sobre a taxação internacional. A proposta brasileira é ousada e vai além das barreiras da base de transferência de lucros da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Provavelmente, um pilar que aborde a taxação dos super ricos. Uma nova política industrial deve reforçar a inovação tecnológica baseada na redução destas desigualdades e na sustentabilidade. A comunidade científica pode trabalhar na construção desse propósito”, defendeu.

Já o coordenador -geral do G20 Social, o assessor especial de Assuntos Internacionais da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gustavo Westmann, pediu às academias de Ciências a contribuição para um “G20 pragmático” diante, segundo ele, do “imenso desafio de um mundo tão complexo com mudanças climáticas, guerras complexas sem solução no horizonte, a emergência de novas tecnologias que poderiam nos liderar para mais informação com a decepção de observar o mundo imerso em desinformação”. “Não se percam no processo de debates. Foquem nas prioridades que estão sendo discutidas nos âmbitos político e financeiro do G20. Sejam concisos em suas recomendações”, destacou.

MCTI defende ‘ponte’ entre países desenvolvidos e em desenvolvimento

A ministra brasileira de Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, esteve presente no primeiro dia de evento e lembrou que os temas debatidos pelo Science 20 dialogam com as três instâncias nas quais o MCTI atua no G20 - Pesquisa e Inovação, Economia Digital e Bioeconomia. Luciana lembrou que os países da América Latina, Caribe e África são os menos preparados para usar, adotar ou adaptar tecnologias de ponta, segundo indica o relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), e isso põe em risco a possibilidade de nações dessas regiões perderem as atuais oportunidades tecnológicas. “O Brasil propõe colocar no centro de sua presidência no G20 as questões relacionadas às assimetrias globais de acesso, desenvolvimento e produção da ciência, tecnologia e inovação”, reforçou.

Em um chamado à comunidade científica do S20, Luciana lembrou que “o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, fez um vigoroso apelo aos cientistas para que agissem contra a desigualdade técnico-científica. Em 2003, ele apontou que a distribuição desigual das atividades científicas gera sérios problemas não só para a comunidade científica dos países em desenvolvimento, mas para o próprio desenvolvimento. Ela acelera a disparidade entre os países avançados e em desenvolvimento, criando dificuldades sociais e econômicas no plano nacional e internacional. A mudança desse cenário e a extensão dos benefícios da Ciência a todos exigirão o empenho dos cientistas e das instituições científicas em todo o mundo”.

Por fim, a ministra declarou que a intenção brasileira é “buscar pontes entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento de modo a reduzir desigualdades científicas, tecnológicas e de inovação e garantir o desenvolvimento econômico inclusivo, socialmente justo e ambientalmente responsável”.

Como temas prioritários elencados pelo MCTI para serem tratados pelos Grupos de Trabalho formais do G20, Luciana destacou a Descarbonização da economia, Pesquisa e inovação aberta para uma Amazônia Sustentável e Inteligência Artificial.

‘Ciência para a Transformação Mundial’

Presidente da Academia Brasileira de Ciências e ‘Sherpa’ - nome dado a quem coordena os debates e atividades ao longo do ciclo anual do S20 – do encontro, Helena Nader apresentou as propostas feitas pela ABC para debate na comunidade científica global: Inteligência Artificial; Bioeconomia; Transição Energética; Justiça Social e Saúde. Em sua fala, Nader comemorou o "retorno do Barsil ao cenário global" e a orientação de o país buscar, nos organismos multilaterais, "o desenvolvimento econômico e social, além da redução da fome, da pobreza e da desigualdade globais". De acordo com ela, estes princípios motivaram a escolha do mote "Ciência para a Transformação Global" pela ABC, bem como dos temas colocados para avaliaçaõ da comunidade científica global. Os documentos preliminares levados ao debate podem ser acessados em sua versão em inglês, e tratam de Bioeconomia: Impulsionando o mundo em direção a um planeta sustentável; Inteligência Artificial: ética, impacto social, regulamentação e compartilhamento de conhecimento; Processo de Transição Energética: energias renováveis, considerações sociais e econômicas; Justiça Social: promovendo a inclusão, acabando com a pobreza e reduzindo as desigualdades e, por fim, Desafios de Saúde: Qualidade, equidade e acesso – este último sob coordenação da pesquisadora titular do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e membro da ABC, Patricia Torres Bozza.

A construção de consensos

Ao longo dos dois dias de evento, as academias de Ciência apresentaram suas considerações sobre os documentos apresentados pela ABC. Os cinco temas, entretanto, continuam sob debate até a formulação do documento final, em julho de 2024. Ao longo dos próximos meses, os temas serão abordados por grupos em separado, em reuniões online.

A necessidade de estabelecer processos econômicos integrados aos sistemas biológicos do planeta, base do conceito de Bioeconomia, recebeu apoio das academias de Ciências presentes, como alternativa de desenvolvimento mais sustentável que considere os saberes e necessidades de populações locais em todo o globo terrestre. Sobre Inteligência Artificial (IA), foi posição majoritária entre os representantes de países em desenvolvimento a necessidade de investimento em infraestrutura como precaução a certo “colonialismo digital”, no qual acesso aberto, dados abertos e mecanismos de transparência não são garantidos, além das incertezas sobre a implantação no mercado global de trabalho. Na ocasião, a ABC lembrou a publicação de suas Recomendações para o avanço da inteligência artificial no Brasil e, na semana anterior ao evento, o presidente Lula pediu a elaboração de um Plano Nacional de Inteligência Artificial.

Em Transição Energética, a necessidade de substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis trouxe ao centro do debate a dependência global do petróleo e do carvão, as possibilidades de uso da fonte nuclear e os estágios atuais de desenvolvimento da capacidade de produção do chamado “hidrogênio verde”. Foi majoritária a defesa de que se encerrem os incentivos à indústria de combustíveis fósseis, mesmo que isso traga custos políticos locais aos governos nacionais, devido ao estimado crescimento dos custos de energia. O combate à pobreza, a situação atual do conflito em Gaza e a utilização das ciências sociais estiveram presentes no debate sobre a promoção da Justiça Social. Por fim, em Saúde houve a defesa do conceito de Saúde Única e os impactos das mudanças demográficas para a resiliência dos sistemas de saúde, bem como das mudanças climáticas no perfil sanitário e epidemiológico global.

Cientistas brasileiros palestram para a comunidade científica global

Além do posicionamento oficial das academias que compõem o S20, o evento proporcionou a cientistas brasileiros apresentarem suas pesquisas e formulações ao conjunto das academias presentes.

A professora titular de Demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População na Escola de Saúde Pública de Harvard, Márcia de Castro, apresentou a palestra “Demografia e desafios da saúde no G20”. A pesquisadora se baseou no artigo Global health 2035: a world converging within a Generation para lembrar que a maior parte dos países integrantes do G20 está sob processo de decrescimento de suas populações, a partir das quedas verificadas nas taxas de natalidade de suas populações; bem como no envelhecimento das mesmas. Essa transição demográfica impacta os sistemas de saúde e as economias de tais nações. Segundo ela, os integrantes do G20 precisam se preparar para a oferta de processo de envelhecimento saudáveis e humanizados de seus povos. “As famílias estão cada vez menores, com cada vez menos pessoas disponíveis para cuidar dos idosos. Isso leva a questões de saúde mental que também precisam ser consideradas”, lembrou.

Presidente do Conselho Superior de Inovação e Competitividade da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e coordenador da Mobilização Empresarial pela Inovação, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Pedro Wongtschowski abordou o tema “Inovação pela Inclusão Social e Sustentabilidade”. De acordo com ele, “existe uma crise planetária, que envolve infraestrutura, produção de alimentos, a resiliência das cidades, excessos de calor e de chuvas. Uma crise climática”. Para Wongtschowski, o Brasil está em uma posição privilegiada no debate sobre mudanças climáticas, pois tem a condição de cortar suas emissões de gases causadores do efeito estufa pela metade, tendo em vista que a indústria responde por apenas 5% das emissões nacionais e metade da matriz energética brasileira é limpa, bem como 92% da eletricidade aqui produzida. O industrial aposta que o Brasil pode se transformar em uma potência verde e citou a necessidade de aliar academia, as necessidades nacionais e o uso do potencial e dos diferenciais brasileiros para a consecução deste caminho. “O Brasil está em 17º lugar entre publicações sobre energias renováveis e emissões de gás, e nossos artigos representam 2,2% dos estudos compartilhados. É uma posição ainda tímida, mas que tem crescido nos últimos anos”, citou.

Diretora de Estudos e Políticas Setoriais, de Inovação, Regulação e Infraestrutura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), setor que recentemente publicou a Nota Técnica Experiências internacionais de precificação e acesso a medicamentos: acordos do Reino Unido para medicamentos de marca e o Texto para Discussão A resposta do sistema brasileiro de inovação em saúde à Covid-19, Fernanda De Negri falou sobre “Inteligência Artificial: desafios para a democracia e a sociedade”. Fernanda defendeu uma regulamentação internacional que paute o uso de dados, sobretudo privados, por essas novas tecnologias, e alertou para os riscos de iniciativas apenas regionais. “A gente tinha que criar regulamentações sobre uso de dados que fossem mais compartilhadas internacionalmente. Senão, cada país vai ficar fazendo a sua regulamentação e, na medida em que a gente eventualmente impede o uso de dados para gerar soluções no nosso país, nada impede que empresas multinacionais usem as mesmas informações para gerar soluções com IA. Regular não é só impedir que se faça [uso da IA], porque é uma tecnologia nova, mas é permitir que vários países consigam utilizar e produzir soluções de inteligência artificial”, ressaltou.

“Oportunidades e desafios para a pesquisa colaborativa no G20” foi o tema apresentado pelo vice-presidente de Redes de Pesquisa na Elsevier e professor emérito do Instituto de Física da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz. Após analisar os bancos de artigos publicados, o professor destacou que 80% da produção científica mundial é oriunda dos países do G20, notadamente China, Estados Unidos e Índia; ao mesmo tempo em que a Ciência se torna mais globalizada. “A produção de artigos cresce mais nos países em desenvolvimento, em média 8%; ao passo que cresce apenas 2% nos países desenvolvidos. Isto significa que seus sistemas de ciência e pesquisa estão em desenvolvimento”, citou Carlos Henrique, para exemplificar algo como uma demanda reprimida da comunidade acadêmica do Sul Global. “O número de autores já é maior no Sul Global, mas o que chama atenção é que o número de citações também está equilibrando, o que mostra um crescimento de qualidade”, ressaltou.

Ainda de acordo com seu levantamento, a colaboração entre pesquisadores dos países poderia ser mais diversificada. “Os EUA são o maior colaborador de 17 dos 19 países do G20, e a China ocupa o segundo lugar para a maioria. Não se faz ciência isoladamente”, defendeu.

Coordenador-geral da Rede Nacional Ciência para Educação (Rede CpE) e e co-organizador do livro Ciência para Educação - Uma Ponte entre Dois Mundos, o professor emérito de neurociências da UFRJ, Roberto Lent, apresentou a Aliança Global Unesco sobre a Ciência da Aprendizagem para Educação, que, no dia 8 de março, organizara o evento Educação Tem Ciência - Como a Ciência pode Contribuir com a Educação. “Precisamos criar uma ponte entre a Ciência e a Educação, e construir um ecossistema centrado na educação para todas as disciplinas. Intervenções copiadas de outros lugares, sem a devida reflexão, não necessariamente dão certo. É preciso acompanhamento contínuo e relatórios de avaliação. Intervenções mal pensadas nos fazem perder anos de trabalho”, avaliou Lent.

A íntegra do evento está disponível no canal da Academia Brasileira de Ciências no Youtube, e pode ser assistido – em inglês – em três partes – Parte 1 | Parte 2 | Parte 3.