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Transgenia no combate à dengue

Pesquisa é liberada pela CTNBio, mas cidade onde foi realizado o teste decretou estado de emergência por conta do número de casos. Especialistas mostram preocupação em relação à  saúde pública.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 15/05/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Já na fase de aprovação comercial na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a pesquisa de mosquitos transgênicos Aedes aegypti machos desenvolvida pela Organização Social Moscamed - vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e ao Governo da Bahia - que foi contratada junto à Universidade de São Paulo (USP) pela empresa inglesa Oxitec, detentora da patente, é alvo de polêmicas. No mês de abril, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) deu parecer favorável à liberação comercial, que, se aprovada na Anvisa, faz do Brasil o único país a usar esses insetos transgênicos em escala comercial. Os testes já foram realizados em locais como Panamá e Ilhas Cayman, mas não foram liberados. Nos Estados Unidos, a pesquisa não foi autorizada. No Brasil, os municípios de Juazeiro e Jacobina, na Bahia, receberam a pesquisa que começou o ano passado.

No mês de fevereiro de 2014, a empresa Oxitec havia divulgado que os testes com os mosquitos estavam andando com sucesso e que a redução destes insetos havia sido de 96%. No mesmo mês, o prefeito da cidade decretou estado de emergência em relação ao aumento do número de casos de dengue. O agrônomo e representante da Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA), Gabriel Fernandes, aponta que os problemas relacionados a esta aprovação podem trazer consequências à saúde da população. "Na pesquisa, eles avaliam o que acontece com o mosquito, a dispersão, a sobrevivência, até onde eles voam e se tem redução da população. Eles foram até aí. Os dados que este empresa apresentou à CTNBio não falam em redução da dengue. E tem pesquisadores da própria CTNBio, que visitaram a região e afirmam que os experimentos com os mosquitos não são conclusivos", explica.

De acordo com o parecer técnico apresentado pelo membro da CTNBio, Antonio Andrioli, entregue no dia 10 de abril à comissão de aprovação da CTNBio, todo o processo de liberação apresenta inconsistência, como é o caso da Liberação Planejada no Meio Ambiente (LPMA), que serve de subsídio aos processos de liberação comercial. Segundo o parecer, essas LPMA devem ser conduzidas em todos os ecossistemas relevantes para avaliação do risco e em todos os biomas brasileiros para atender à legislação vigente, diferentemente do que aconteceu, no qual foi testado em apenas duas cidades de um mesmo estado. "Que argumentos justificam o desprezo à Lei de Biossegurança que exige estudos de LPMA em todos os biomas brasileiros? Seria aceitável que informações assumidamente preliminares, coletadas na Bahia, atendam peculiaridades do Pampa, da Amazônia ou do Pantanal, onde as condições ambientais que afetam a dinâmica das populações de mosquitos são claramente distintas?", diz o parecer.

O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Silvio Valle, analisa que durante todo esse processo os órgãos nacionais relacionados à pesquisa não participaram. "Curioso pensar que os órgãos que tem interesse no combate à dengue, que é o caso do Ministério da Saúde, não participaram de nenhum momento da pesquisa. Esses órgãos são responsáveis pelo controle da doença de uma forma geral, e não do mosquito, que é parte do processo". Silvio lembra ainda que a Oxitec informou que, quando ela deu entrada na pesquisa, informou que o tipo de risco é uma classe de risco 2, que é um risco individual moderado e um baixo risco para sociedade, mas na hora de liberar comercialmente, a CTNBio liberou como classe de risco 1, como se não houvesse risco nenhum.

Relação com a saúde

De acordo com os especialistas, a liberação em larga escala do Aedes aegypti geneticamente modificado pode desencadear uma explosão populacional de outros vetores como, por exemplo, o Aedes albopictus, concorrente natural do transmissor da dengue em questão. "Na medida em que libera vários mosquitos transgênicos que reduzem a população de Aedes aegypti, você cria um vazio ecológico em relação ao papel que esse inseto cumpria. Esse vazio abre espaço para que este outro Aedes cresça, se multiplique e preencha esse vazio, além de transmitir outras doenças", explica Gabriel.

Para Silvio Valle, se esse caso não for tratado com a devida atenção pelo Ministério da Saúde, quem vai sofrer as consequências será o Sistema Único de Saúde (SUS). "A decisão da CTNBio traz uma responsabilidade ainda maior para os órgãos de fiscalização e vigilância em saúde em relação a esse caso e a de todos os transgênicos no Brasil. A CTNBio fica eximida de qualquer responsabilidade, ou seja, uma posição extremamente confortável", analisa e completa: "Esta é só a ponta do iceberg em relação às decisões da CTNBio e de como o Ministério da Saúde tem que olhar com mais cuidado essas decisões. Em última instância, se ocorrer algum problema com uma planta, algum animal e com os alimentos transgênicos quem vai segurar o problema é a ponta do sistema, ou seja, é o SUS", avalia.

Silvio lembra ainda que até hoje todas asliberações de comercialização de plantas e derivados de transgênicos no Brasil só ocorreram para o registro para ser liberado, a vigilância pós- liberação é inexistente. "A Anvisa fala que está registrado, a Oxitec, por exemplo, vai comercializar, e quem vai fazer a vigilância?", questiona. Outro agravante em relação à liberação dessa população é que a transgenia não funciona caso o mosquito seja exposto a um antibiótico usado em animais como frango e gado, a tetraciclina. "Esse assunto é muito polêmico, mas já foram feitos testes que mostram que ao ser exposto a esse antibiótico a transgenia é desfeita. E se liberarmos esses mosquitos e eles ficarem expostos a esse antibiótico? E se esse mosquito não der certo em outros biomas que não foram testados. Como vamos fazer um recall dos mosquitos?", indaga Silvio.

Sobre a pesquisa

A tecnologia usada pela empresa inglesa Oxitec consiste na inserção de dois genes em mosquitos machos que, após serem liberados na natureza, copulam com fêmeas da população original, que são as transmissoras da doença, e geram descendentes que não conseguem chegar à fase adulta. ‘As crias do OX513A também herdam um marcador que os torna visíveis sob uma luz específica. Segundo a companhia, isso facilita o monitoramento em campo e assegura o controle dos insetos', diz o comunicado da empresa disparado à imprensa.

Ao longo do processo de liberação da comercialização da tecnologia, um pedido de audiência pública foi rejeitado, assim como consulta ao Conselho Nacional de Biossegurança, formado por ministros de Estado. "A preocupação é que essa pesquisa veio com uma força muito grande, inclusive de marketing, tomando espaço de diferentes iniciativas que estão em andamento. O que temos de informação hoje é que, com essa pesquisa, podemos acabar fazendo um grande investimento com a compra desses mosquitos e não termos o resultado esperado. E tem uma questão de fundo ainda, que essa empresa iniciou com o Aedes, mas o carro-chefe vem depois com outros insetos que vão ser utilizados na agricultura em convênio com empresas como Syngenta. Tem gente que usa a hipótese que o Aedes foi usado como abre-alas e que depois vão ser liberados outros. Não é à toa que a pesquisa está sendo desenvolvida na boca do perímetro irrigado, onde vai ser o mercado deles", informa Gabriel da AS-PTA.

Outras experiências

Uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Monash, em Melbourne, na Austrália, com diversos colaboradores internacionais. No Brasil, o projeto tem financiamento da Fiocruz, Ministério da Saúde (Secretaria de Vigilância em Saúde - SVS e Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos - DECIT/SCTIE), Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e CNPq também tenta acabar com o problema da dengue, por meio do mosquito transmissor. A pesquisa, que faz parte do projeto ‘Eliminar a Dengue: Desafio Brasil', utiliza a bactéria Wolbachia para bloquear a transmissão do vírus da dengue. O estudo está em andamento desde 2012, na fase de coleta de dados, apoio da população e mobilização dos agentes de endemias em quatro localidades nas cidades do Rio de Janeiro e em Niterói (RJ). O método também passou por testes na Austrália, Vietnã e Indonésia. "A gente reforça ainda as ações educativas de como evitar a dengue, eliminar criadouros, conscientizar e mobilizar a população", explicou Luciano Moreira, coordenador do programa.

O coordenador explicou ainda que a população está acostumada com a bactéria Wolbachia, que está presente em diversos insetos. " Quase toda espécie de mosquito tem a bactéria. O Aedes albopictus também já tem essa bactéria, se fosse para ter problema, já teria tido", ressaltou. Segundo Luciano, essa pesquisa já foi testada em humanos na Austrália e não foi identificada nenhuma reação.

Para Silvio Valle, o controle da dengue não pode parar em pesquisa de mosquitos. "Não dá pra vir com uma bala mágica e resolver. Todas as pesquisas precisam de muitos testes, porque a consequência pode vir na saúde da população", concluiu.

Sobre a dengue

Uma das doenças consideradas negligenciadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a dengue traz sérios problemas a populações de todo mundo. No Brasil, no último verão, época de ocorrência de mais casos da doença, 157 municípios brasileiros estavam em situação de risco para a doença, outros 525 em alerta e 633 cidades ficaram com índices satisfatórios. A mobilização por parte do governo fica ao redor de campanhas de conscientização e força-tarefa de combate à doença, já os empresários viram como um negócio a ser explorado. Portaria assinada em novembro do ano passado, autorizou um aumento de repasse às ações de R$ 363,4 milhões, que somou ao R$ 1,2 bilhão de investimentos dedicados à doença. Em 2013, foram notificados cerca de 1,5 milhão de casos prováveis de dengue no país.