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Uma grande Tenda Paulo Freire

Sexta edição do Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde inovou na metodologia e enfrentou muitos desafios para sair do papel
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 14/02/2020 11h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
Foto: Maira Mathias

Uma distância de oito anos separou a quinta edição do Encontro Nacional de Educação Popular e Saúde (ENEPS), que aconteceu em 2012 no Rio de Janeiro, e a sexta edição do evento, que aconteceu entre os dias 6 e 9 de fevereiro na Parnaíba, no Piauí. Se antes a grande tônica da discussão era o processo de institucionalização dessa abordagem, filosofia e prática, hoje o cenário é bem outro. Já não há, por exemplo, a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) na estrutura do Ministério da Saúde, criada em 2005 e extinta pelo decreto 9.795, assinado em maio do ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Economia Paulo Guedes e o titular da Saúde Luiz Henrique Mandetta. De acordo com José Ivo Pedrosa, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e coordenador-geral do ENEPS), também foram deixada de lado a  Política Nacional de Educação Popular em Saúde, instituída em 2013.

Tudo isso trouxe grandes desafios para a realização do ENEPS – enfrentados com resiliência para que o encontro acontecesse. Apesar de já saber que não seria fácil, ninguém desistiu. “Foi uma decisão do tipo: ‘Teremos financiamento? Provavelmente não. Mas vamos fazer mesmo assim!’”, revela Luanda Lima, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e uma das nove integrantes da comissão nacional de organização do ENEPS. Essa decisão foi tomada em 2018, durante o Abrascão, o maior congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.  “Fizemos uma plenária e falamos da importância de retomar com esses encontros mediante o contexto, a conjuntura que estamos vivendo”, conta ela, que lembra que a expectativa era fazer: “Se fossem 30 pessoas já iria ser ótimo”. Ao final, o ENEPS reuniu dez vezes esse número, ou 300 pessoas, dentre trabalhadores, pesquisadores, educadores populares, representantes de movimentos sociais e lideranças comunitárias. “Foi um momento de partilha de experiências e de dar voz àqueles que quase nunca são ouvidos”, resume Grasiele Nespoli, também professora-pesquisadora da EPSJV e integrante da comissão nacional do Encontro.

Para isso, o VI ENEPS se reinventou, olhando para uma experiência de incidência da educação popular em eventos de cunho acadêmico ou político, como as conferências de saúde. “Na plenária que aconteceu em 2018, no Abrascão, nós decidimos que seria um encontro, não um congresso, não um seminário, mas um encontro mesmo – e que ele teria que seguir o modelo da Tenda Paulo Freire. Por isso, nós falamos que essa era uma grande Tenda Paulo Freire. O encontro é a grande tenda”, afirma Luanda.

E por conta dessa perspectiva de ser um encontro, a metodologia foi bem diferente de outros eventos, sem palestrante principal ou mesas redondas em que convidados fazem apresentações e a plateia participa com perguntas bem no finalzinho. 

Desse modo, a cada dia, duas pessoas tinham a função de disparar a discussão sobre os eixos do evento, que são democracia, autonomia e bem viver. Isso acontecia em um auditório da Universidade Federal do Piauí. Logo depois, os participantes seguiam em cortejo do auditório para salas, onde pequenas rodas de diálogo se formavam. Essas rodas também foram guiadas pelo que os organizadores chamam de “questões disparadoras”. À tarde havia mais rodas de conversa, desta vez envolvendo a apresentação dos trabalhos inscritos – “que não necessariamente são trabalhos naquele formato científico”, frisa Luanda. E continua: “Teve quem inscrevesse uma poesia, uma experiência... E aí, ao invés de você ter um disparador, os trabalhos foram os próprios disparadores do debate. Mas o objetivo é trazer esses trabalhos para a discussão da democracia, da autonomia e do bem viver, não para discutir aquele trabalho especificadamente”.

A cultura foi uma grande aposta desta sexta edição evento. “A cultura não é só para entretenimento, é um fator de problematização e é uma linguagem. Tudo isso foi densamente discutido para termos esse formato, que parece meio difuso, mas vem trazendo essa possibilidade de que todos consigam participar e trazer suas experiências”, reflete Luanda Lima.

Todas essas discussões foram sistematizadas para que, na plenária final, retornassem para um debate coletivo de todos os participantes. Ficou decidido, por exemplo, que o próximo ENEPS será em 2022.

I Encontro Latino Americano

A cidade no litoral piauiense também foi palco do I Encontro Latino Americano de Educação Popular e Saúde – outra aposta feita diante da conjuntura. Mas, nesse aspecto, a falta de apoio de editais do governo e do Ministério da Saúde se fez sentir de maneira mais forte. A comissão organizadora precisou desistir de nomes como a médica Vivian Camacho, da Bolívia, que faz a discussão do bem viver e de Timothy Ireland, professor da Universidade Federal da Paraíba, que faria a discussão da autonomia. A única convidada internacional do evento foi a pesquisadora Nina Wallerstein, diretora do Centro de Pesquisa em Participação da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, que fala sobre a importância da participação na saúde, na pesquisa e na política.  “Mesmo não conseguindo ter essa presença latino-americana, eu acho que a gente trouxe essa perspectiva de que é preciso ampliar para além do Brasil porque essa conjuntura que nos move está presente em toda a América Latina e por isso é preciso que nos conectemos”, avalia Luanda. Em 2022, também ficou decidido que acontecerá o II Encontro Latino Americano de Educação Popular e Saúde.

Apoios

A Escola Politécnica, que já participava de alguma forma do ENEPS desde a terceira edição do evento, desta vez, esteve imbricada em sua organização. A EPSJV, junto com a secretaria estadual de Saúde do Piauí, ofereceu alimentação aos participantes, possibilitando que se fizessem todas as refeições: café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. A Universidade Federal do Piauí pagou a passagem da convidada internacional e, além disso, forneceu dois ônibus para levar os inscritos de Teresina até Parnaíba e vice-versa. A secretaria estadual de Educação cedeu escolas como alojamento para os participantes.

A Abrasco também apoiou o ENEPS ao disponibilizar uma ferramenta de reuniões virtuais, já que pessoas de regiões diferentes estavam envolvidas na organização do evento. E através do seu Grupo de Trabalho de Educação Popular e Saúde. O site foi feito de forma voluntária por uma pessoa em uma plataforma gratuita. A logomarca do evento foi fruto de um concurso divulgado em agosto. “Nós mesmos organizamos as inscrições e tudo mais”, conta Luanda. Mesmo diante de todas as dificuldades, o ENEPS manteve a tradição e não cobrou os participantes pelo ingresso no evento.

Também apoiaram o ENEPS a Articulação Nacional de Extensão Popular (Anepop), a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps), a Rede de Educação Popular e Saúde (Redepop) e o Movimento Popular de Saúde (MOPS).

Se por um lado a falta de apoio financeiro mais substantivo pesou, por outro deu liberdade e mostrou que, diante de contextos como o brasileiro, é possível seguir resistindo e acumulando forças. “Porque, de certa forma, a institucionalidade prende. E aí quando você não tem a instituição, nesse sentido, as diretrizes ministeriais, se por um lado fica sem financiamento, também fica mais livre para fazer as discussões, que se moveram no sentido de qual é o caminho que devemos seguir enquanto educação popular? O que a educação popular tem a contribuir para nossa organização, para o Movimento Sanitário, para a democracia, para a promoção da autonomia da população e para a promoção do bem viver?", conclui Luanda.