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Usuário de crack tem o mesmo perfil dos que estão à margem da sociedade

Usuário quer receber ajuda e tem como principal referência de tratamento o serviço público de saúde, aponta pesquisa da Fiocruz.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 26/09/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

O usuário de crack tem média de idade de 30 anos, é não-branco, com ensino fundamental completo. Ele também quer se tratar e costuma ir aos Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas (Caps AD) para isso, embora, essa procura ainda seja pequena. Sua principal fonte de renda para o consumo é o trabalho, mesmo que precário, e não necessariamente sua casa é a rua. Estes dados foram extraídos da pesquisa ‘Perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil', idealizada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) e realizada pela Fundação Oswaldo Cruz, sob responsabilidade dos pesquisadores Francisco Ignacio Bastos e Neilane Bertoni, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz) .

É curioso reparar que, abordada pela mídia comercial na última semana, logo após a divulgação oficial, essa pesquisa, que traz dados tão reveladores, serviu para ratificar o mesmo discurso que há tempos vinha sendo abordado. O único fator que pareceu mostrar a preocupação dos jornalistas foi a região onde se encontrava a concentração dos usuários e o número deles em todo o país. A Folha de São Paulo, no dia 20 de setembro, trouxe na chamada que ‘40% dos usuários de crack das capitais estão no Nordeste'; outra matéria, desta vez do jornal O Globo no mesmo dia, indicava que ‘País tem 370 mil usuários de crack, maior proporção está no NE'. O Estado de São Paulo trouxe uma chamada ainda era mais alarmante: ‘Crack já é usado por 1 em cada 3 consumidores de drogas das capitais'. O que as matérias esqueceram de dizer é que a pesquisa, além de excluir os usuários de maconha, seguiu o critério da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) na hora de classificar a droga, e considerou somente aquelas de ‘particular risco', que no Brasil é liderado por cocaína em pó, anfetamínicos e solventes. Em relação à localidade, o espanto deve ter sido por conta da constante campanha na região Sudeste, que trata o crack como a epidemia local. Ver matéria da Crack - desinformação e sensacionalismo na edição nº 27 da Revista Poli . O resultado da pesquisa mostra que esta sensação de prevalência de usuários na região Sudeste se deve, em parte, pela maior visibilidade das metrópoles e o tamanho expressivo das grandes cenas conhecidas como "cracolândias".

O pesquisador da Fiocruz e responsável pelo estudo Francisco Inácio aponta que o grande alarde em relação ao crack se dá por conta de avaliações errôneas da população em geral, da imprensa e de alguns governos. "Devemos primeiro avaliar a participação do crack no conjunto dos problemas sociais a que o usuário está exposto. Além disso, a imensa maioria das pessoas que usam crack são poli-usuárias, ou seja, usam inclusive substâncias lícitas como álcool e o tabaco", aponta e conclui: "e então, se a abordagem deste usuário não for de maneira integrada você não consegue saber quem ele é, não consegue cuidar desta pessoa ao isolar um único problema, quando essa pessoa está envolta de diversos outros".

O secretário da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), Vittore Maximiano, entende que com o resultado da pesquisa ajuda a ratificar algumas ações dos três eixos do Programa do Governo Federal ‘Crack - É possível Vencer', que são os de prevenção, cuidado e segurança, mas, que também reforça o entendimento da importância do eixo cuidado. "Reconhecemos que o problema está em menor grau na área da segurança e muito mais na área de cuidado. O que vamos tratar na área de segurança é o tráfico de drogas, mas não temos dúvidas de que é no cuidado que o usuário tem que ser encarado. Outro ponto fundamental é que precisamos de um olhar ainda mais cuidadoso para as regiões de maior prevalência dos casos, que são as nordeste e sul", explica Vittore e completa: "A pesquisa não corrige rotas, mas mostra que nós precisamos aperfeiçoar, ampliando a rede e intensificando na região nordeste", avalia.

O principal programa do Governo Federal, o ‘Crack - É possível Vencer', tem um orçamento de R$ 4 bilhões. Até o momento, já foram injetados R$ 840 milhões em 2012 e a previsão é de R$ 1,6 bilhão em 2013. Para chegar a este total, além do Ministério da Saúde, participam também o Ministério da Justiça, do Desenvolvimento Social e da Educação. Estas três últimas áreas juntas investirão R$ 2 bilhões.

Perfil do usuário

O mesmo perfil citado na abertura desta matéria também pode ser encontrado no Mapa da Violência 2012, que demonstra quem são as principais vítimas de violência no Brasil. É com estas mesmas características que a pesquisa ‘O Brasil atrás das grades', desenvolvida pelo portal de informações jurídicas ‘Direito direito' mostra quem é a nossa população carcerária. E têm essa mesma representação os trabalhadores informais ou mais precarizados no Brasil.

"Temos uma inegável ascensão da nova classe média, mas não se fala muito do outro lado, que são as pessoas que estão à margem deste processo, que são os perpetuadores de violência, as vítimas da violência, os usuários de drogas estigmatizadas ou os presos. E em todos estes âmbitos os números só estão aumentando", analisa Francisco Inácio, e completa: "É uma espécie de massa indefinida que está presente em todas as coisas que você analisar como conflito social. Em lugares diferentes de análise, você vai encontrar as mesmas pessoas", explica.

Para o secretario do Senad, este perfil também não mostrou surpresas. "A coincidência do público entre o usuário de crack e o que está atrás das grades não é por acaso. São os mesmos que sofrem com baixa escolaridade, rompimento de vínculo com as famílias e falta de atenção das políticas públicas. A pesquisa vem confirmar que estamos falando de um público de forte exclusão social", diz Vittore.

Tratamento

Um dos dados mais relevantes desta pesquisa, de acordo com Francisco Ignácio, é que 80% dos usuários aceitam algum tipo de tratamento. Este dado mostra que práticas como a internação compulsória, executadas pela cidade do Rio de Janeiro e o governo de São Paulo, por exemplo, são desnecessárias. Este tipo de ação só pode ocorrer em casos extremos, em que o usuário não aceita o tratamento e por meio de decisão legal, definido pela lei nº 10.216, de 2001.

Para Vittore Maximiano, da Sead, este dado esvazia por completo o debate da internação compulsória e da internação involuntária. "Temos agora que fortalecer a rede para atender aos 80% que querem ser tratados e tentar convencer os outros 20%. Temos que entender que a internação compulsória deve ser aplicada em casos raros, absolutamente excepcionais", explicou Vittore e completou: "O Ministério da Justiça está alinhado com o Ministério da Saúde em relação à internação compulsória, por isso não defendemos esta prática".

A pesquisa mostra ainda que os serviços mais acessados para tratamento ambulatorial da dependência química são os CAPs AD. Embora, de acordo com a avaliação dos pesquisadores, a procura ainda seja pequena - com 6,3% do total de usuários -, isso serve para reforçar a necessidade de ampliação e fortalecimento desses equipamentos no âmbito da rede de saúde. Por outro lado, o relatório mostra também que quando considerados equipamentos de atenção em regime residencial ou internação, as comunidades terapêuticas são as mais acessadas com 4,2% das respostas.

Atualmente no país existem 37 Caps AD do tipo 3, que é o modelo que funciona 24 horas e com a possibilidade de internação para o tratamento. Em todo país, apenas 26 estão em pleno funcionamento. A meta, de acordo com o portal ‘Observatório Crack, é Possível Vencer', lançado em agosto deste ano e que disponibiliza dados sobre o programa, é de instalação de 114 até o final de 2013 e 197 até 2014. A região de maior concentração deste modelo é a Sudeste, com cerca de 20 unidades. O outro modelo de Caps AD totaliza 305 unidades em todo o país. O secretário Vittore Maximiano explica que o edital para o maior número de CAPs de todas as modalidades está aberto aos municípios que tiverem interesse. "Não há priorização de forma alguma à política de comunidade terapêutica em detrimento do CAPs. Nós temos um crescimento expressivo desses equipamentos instalados no país e queremos mais. Os recursos estão disponíveis, mas temos que ter contrapartida e vontade política das prefeituras", informou.

Mas editais para financiamento de comunidades terapêuticas de caráter filantrópico, por meio do Programa do Governo Federal, também foram abertos. O repasse federal é de R$ 800 ao município para cada leito utilizado, no período de 12 meses. A exigência prevista no edital é de que a Comunidade Terapêutica articule com as redes locais de saúde (SUS) e de assistência social (SUAS). No total, como informa o Observatório, já foram instaladas cerca de 60, sendo a maior concentração na região Sul. Até agora, foram investidos mais de R$ 150 milhões nesta ferramenta.

Além destas duas citadas acima, fazem parte da estratégia de cuidado os consultórios de rua, unidades de acolhimento de adulto e de crianças, leitos em enfermaria especializada e Centros de Referência. Para a construção do Caps, o Governo disponibilizou de R$ 800 mil a R$ 1 milhão, dependendo do modelo implantado, e para unidades de acolhimento, o edital prevê R$ 500 mil. Em relação ao custo de cada paciente nestes casos, a assessoria do Ministério da Saúde informou que não é possível fazer esse cálculo, porque depende de cada caso a ser tratado.

Francisco Inácio também indica como caminho para o tratamento destes usuários um maior fortalecimento dos consultórios de rua, unidades de acesso da população de rua à atenção integral à saúde, por meio de equipes multidisciplinares. "Para um programa efetivo, deveria se dar uma maior valor aos consultórios de rua, porque são eles que fazem uma ponte com os Centros de Assistência e que estão mais próximos do usuário. O que precisamos é fazer com que as pessoas cheguem ao Caps sem desconfiança", opina.

Criminalização do usuário

A pesquisa aponta ainda que 50% destes usuários já foram presos alguma vez. O principal motivo de prisão foi o porte de drogas, hoje permitido no Brasil, por conta da Lei nº 11.343/ 2006. Esta lei faz a distinção entre traficante, pequeno traficante e usuário de drogas, este último previsto no artigo 28 que determina que ‘Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Francisco Inácio analisa que estas pessoas sofrem com o estigma, por isso, são presas constantemente. "Muitas pessoas são confundidas com traficantes e, devido à sua condição acabam sendo presas. O que percebemos é que é quase uma porta giratória. Quando a pessoa não está de um lado, está de outro", avalia. Os dados da pesquisa apontam que os principais motivos de prisão foram porte de drogas, com 13,6%, roubo, com 9,2%, furto, fraude ou invasão de domicilio, com 8,5% e tráfico ou produção de drogas com 5,5%.

A forma de obtenção de dinheiro para o consumo da droga está em 65% por meio de trabalhos esporádicos ou autônomos, seguido de pedir esmolas com 12,5%, pedir a família, parceiros e amigos com 11,3%. Formas ilícitas, como furtos, roubos, fraudes etc. aparecem em quarto lugar, com 9% dos casos.

Saúde

Embora a pesquisa mostre que o perfil está muito concentrado no sexo masculinho, são as mulheres que sofrem os piores problemas em relação à saúde, quando expostas a esta e outras drogas. Entre as entrevistadas da pesquisa, cerca de 10% estavam grávidas, além disso, mais da metade já havia engravidado desde que iniciou o uso do crack ou de drogas similares. ‘Trata-se de um achado preocupante devido às consequências importantes do consumo do crack durante a gestação sobre o desenvolvimento neurológico e intelectual das crianças expostas', diz a avaliação.

"O usuário de crack é submetido a uma vulnerabilidade extrema e, quando fazemos o recorte de gênero, a situação da mulher é ainda mais grave. 45% das mulheres usuárias revelaram ter sofrido violência sexual. Isso é muito sério. O que revela que o usuário de crack precisa de uma atenção do Estado e da sociedade brasileira. A repressão não deve acontecer entre os usuários, pelo contrário, são pessoas que estão vivendo um sofrimento e precisam de cuidado, atenção e reinserção social", explica Vittore.

A pesquisa mostra ainda que a prevalência do vírus HIV entre os entrevistados é oito vezes maior do que a da população em geral. "Eles têm também muito problema odontológico e respiratório, por razões óbvias, porque estão debilitados e usam substâncias que prejudicam ainda mais esse estado de saúde. Quase 80% das pessoas usam também o tabaco, por exemplo. Eles estão na contramão da população em geral, onde o consumo do tabaco está caindo. O uso do álcool, constante nesta população, também debilita muito o organismo", informa Francsico Inácio, e conclui: "Essas pessoas têm agravos da saúde de forma geral".

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