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Vacinação privada gera incertezas

Colaboração, “camarote da vacina”, fura-fila ou cortina de fumaça? Indefinição e diferentes avaliações sobre a participação do setor privado na imunização contra a Covid-19
Leila Salim - EPSJV/Fiocruz | 03/05/2021 14h03 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Breno Esaki - Agência Saúde

Foi grande a repercussão da aprovação do projeto de lei 948 na Câmara dos Deputados, no início de abril. Como o PL aguarda tramitação no Senado, ainda não há nada definido. Mas, mesmo assim, a discussão suscitada no plenário da Câmara acendeu um conjunto de preocupações sobre os rumos da participação do setor privado no processo de vacinação contra a Covid-19. De autoria de Hildo Rocha (MDB-MA) e relatado por Celina Leão (PP-DF), o PL pretende alterar aspectos da chamada ‘Lei da Vacina’, a 14.125. A ideia é, principalmente, derrubar a obrigatoriedade de doação de 100% das doses compradas pelo empresariado para o SUS enquanto ainda houver pessoas dos grupos prioritários a serem vacinadas. A doação passaria a 50% das doses, sem necessidade de esperar o fim da imunização dos grupos prioritários. Além disso, diferentemente do setor público, o empresariado estaria liberado para adquirir e administrar vacinas que não tenham sido aprovadas pela Anvisa, desde que sejam previamente autorizadas por agências regulatórias internacionais reconhecidas pela OMS.

Os deputados favoráveis à aprovação do PL enfatizaram que as mudanças não alterariam a ordem de vacinação, já que o empresariado apenas iniciaria a compra de imunizantes após o governo federal receber as doses já negociadas. Como contraponto, os parlamentares contrários ao projeto argumentaram que, em um cenário de escassez global na oferta de vacinas, as doses adquiridas pela iniciativa privada – cuja destinação será decidida pelos próprios empresários – deixariam de ser compradas pelo PNI e, assim, a população que aguarda na fila segundo os critérios do Plano Nacional de Vacinação ficaria para depois. Os deputados contrários ainda reforçaram que não havia oposição à participação do setor privado em sentido colaborativo. Ou seja: não se questionava a possibilidade de a iniciativa privada colaborar com a União para a compra de vacinas, desde que isso não significasse uma vacinação por fora do Programa Nacional de Imunizações. Afinal, a participação da iniciativa privada já está permitida desde a aprovação da lei 14.125.

Para Ligia Bahia, no entanto, as ameaças residem mais na própria lei  14.125 do que no PL que ainda aguarda tramitação no Senado e talvez nem venha a ser aprovado definitivamente. “Há muitas divergências entre o próprio empresariado. Uma parte dele não está a favor [da fila dupla para vacinação, com separação entre vacina pública e privada] e nunca esteve. E esses são os maiores empresários brasileiros”, diz. Bahia destaca, ainda, que as mudanças específicas previstas pelo PL 948 não têm relevância, porque não mexem concretamente com as ações de combate à pandemia. Para a pesquisadora, diante da escassez na oferta de imunizantes, os empresários teriam dificuldades para comprá-los e, assim, os desdobramentos concretos da possibilidade de compra pelo setor privado sem doação integral para o SUS seriam dificilmente sentidos. Quanto à fragmentação, que coloca novos entes além do governo federal como atores no processo de negociação e compra das doses, ela argumenta que já é permitida pela Lei da Vacina.  “Há um problema estrutural de oferta, tanto de leito quanto de vacina. Essa pauta tem feito um enorme barulho e acaba impedindo que a agenda real de enfrentamento da pandemia seja levada adiante, funcionando mais como um veto ao debate objetivo sobre uso de máscara, distanciamento social, lockdown e outras medidas urgentes”, diz.

Para os pesquisadores dos grupos de estudos sobre Planos de Saúde (da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro), este último integrado por Bahia, é a própria Lei da Vacina que institui essa quebra no princípio da equidade e, ao autorizar a participação de estados, municípios e setor privado na compra de imunizantes, lança as bases para uma “dupla fila” de vacinação. Artigo publicado conjuntamente pelos grupos de pesquisa salienta que a lei atualmente em vigor vai na contramão de experiências internacionais bem-sucedidas e, tanto no que se refere à compra de vacinas pela iniciativa privada como pelo poder público de forma descentralizada, pode “perpetuar desigualdades de acesso à imunização, com prejuízos ao processamento de informações, ao acompanhamento da cobertura vacinal e à vigilância pós vacinação”.

Já para Ana Luiza Viana, no entanto, é preciso notar que a proposta aprovada na Câmara e defendida por alguns setores do empresariado brasileiro traz novidades e é uma ameaça à saúde pública. A pesquisadora afirma que, com a possiblidade de que o empresariado adquira vacinas não autorizadas pela Anvisa (enquanto essa obrigação permanece para o setor público), um mercado paralelo de aquisição e aplicação de imunizantes pode surgir. “Pode ser que a iniciativa privada não consiga comprar vacinas dos grandes laboratórios, que já têm contratos com a União, mas a constituição de um mercado paralelo entre empresariado e laboratórios cujos imunizantes não foram aprovados pela Anvisa é uma possibilidade”, preocupa-se.

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