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Sobre as reformas trabalhistas e previdenciária: posicionamento da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

As reformas trabalhista e previdenciária, que no momento tramitam no Congresso Nacional, são motivo de grande preocupação para a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, unidade da Fundação Oswaldo Cruz, instituição de pesquisa na área de saúde que há mais de 100 anos produz ciência de forma comprometida com a formulação e execução das políticas públicas sociais no Brasil. A própria concepção de saúde que orienta o trabalho da Fiocruz, uma das herdeiras do Movimento da Reforma Sanitária que criou o Sistema Único de Saúde (SUS), será profundamente abalada com a eventual aprovação dessas duas reformas. Nela, a garantia da saúde está estreitamente ligada às condições de vida das pessoas – ou o que se convencionou chamar de “determinação social da saúde e da doença”. E, por consequência, as políticas de saúde são indissociáveis de um sistema de proteção social que inclui as relações de trabalho e o direito à aposentadoria. Essa foi a marca principal da Constituição Federal de 1988, que resultará profundamente abalada caso vinguem as mudanças agora propostas.

O discurso de que se trata de um “sacrifício” inescapável, imprescindível para o país sair da crise econômica e que deve ser feito em prol da própria população, não encontra consenso na Academia entre as correntes econômicas e grupos que estudam o mundo do trabalho e a seguridade social, nem tampouco tem respaldo na sociedade. Em relação à reforma trabalhista, que tem tramitação mais adiantada no Congresso, há controvérsias importantes, baseadas em estudos e análises de experiências concretas, sobre sua real capacidade de atacar o trágico problema do desemprego que o país atravessa. Há argumentos e evidências várias, por exemplo, de que a autorização para a chamada “jornada intermitente” - que permite que um trabalhador seja contratado por vários empregadores para cumprir períodos parciais, em função da demanda das empresas – deverá ter efeito inverso, diminuindo o número de trabalhadores necessários para desempenhar o mesmo trabalho e, ao mesmo tempo, reduzindo a remuneração e a proteção daqueles que estiverem empregados. O mesmo vale para outras medidas previstas no Projeto de Lei, como a ampliação do número de horas do chamado “trabalho parcial” e a ampliação do tempo legal de trabalho temporário, gerando, todas, um contexto de flexibilização que significa mais insegurança para o trabalhador. Combinada com a lei que regulamenta a terceirização - recentemente aprovada pelo Congresso e que agora está sendo questionada pela Procuradoria Geral da República -, a conclusão de muitos pesquisadores e estudos científicos é de que essa medida poderá provocar ainda mais desemprego. Pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em parceria com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) mostra que, entre outros indicadores negativos, os terceirizados no Brasil trabalham em média três horas a mais do que os empregados diretos, o que, matematicamente, reduz o volume de força de trabalho que as empresas precisam contratar.

Segundo esse não desprezível número de pesquisadores críticos, os efeitos da desproteção causada pela reforma trabalhista – combinada com a ampliação da terceirização - serão sentidos mais fortemente pelos setores mais pauperizados e mais jovens da população – que já recebem remunerações mais baixas e desempenham funções de maior rotatividade, parcelas da sociedade às quais, segundo nossa perspectiva, se deve maior atenção, sobretudo em momentos de crise.

Riscos importantes dizem respeito também à proteção à saúde do trabalhador, tema que toca diretamente a área de atuação e preocupação da Fiocruz. Vale registrar, por exemplo, que a garantia legal de uma hora de almoço – que agora se propõe reduzir para até 30 minutos – não se deu aleatoriamente, mas baseada em evidências científicas produzidas por estudos da área de Saúde do Trabalhador, como o mínimo necessário para reduzir o desgaste naturalmente causado pelo trabalho – desgaste esse que é substancialmente maior em trabalhos ocupados pelas camadas mais baixas da população, nas zonas urbana e rural.
Da mesma forma, a proposta de reforma traz um conjunto de medidas que esvaziam o importante papel que a justiça trabalhista desempenha neste país como espaço possível de proteção do trabalhador, elo necessariamente mais fraco das relações de trabalho. Argumentos suficientemente convincentes sobre isso – e críticos também ao conjunto da obra do Projeto de Lei (PL) – estão expostos, por exemplo, no manifesto encaminhado ao Senado por juízes do Tribunal Superior do Trabalho (TST), além de inúmeras manifestações públicas da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), entre outros especialistas no tema.

Preocupações semelhantes desperta a reforma da previdência, que, nos moldes em que está tramitando, representa um ataque direto ao sistema de seguridade social previsto pela Constituição de 1988 e que inclui a área da saúde. Nesse caso, é preciso questionar os próprios pressupostos, lançando mão do conhecimento científico produzido sobre o tema. Aqui, mais uma vez, não existe consenso na Academia sequer sobre os cálculos que concluem sobre o alardeado déficit da previdência. Inúmeros estudos de pesquisadores renomados, de reconhecido valor acadêmico, argumentam, matematicamente, que, do lado da receita, as contas apresentadas pelo governo e pelos defensores da reforma não levam em conta as contribuições sociais (PIS, Cofins e CSLL) que, por lei, devem ter seus recursos destinados para o orçamento da seguridade social. E, do lado das despesas, não consideram também o enorme volume de recursos desse orçamento que, por opção dos governos, tem sido desviado para outros fins, por meio da Desvinculação de Receitas da União (DRU). Junta-se a esses pesquisadores, que produzem esses questionamentos por dentro da Academia, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), que tem produzido um importante trabalho de divulgar cálculos distintos a partir de dados oficiais do próprio governo. Também nesse caso, parece, portanto, que abrir espaço para esse contraditório é de fundamental importância como caminho mais democrático para uma decisão tão impactante e definitiva como a que resultará da reforma da previdência.

Sendo a Fiocruz uma instituição da área da saúde, é preciso questionar também os próprios termos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que pretende reformar a previdência social brasileira. A instituição de uma idade mínima, que desconsidera as diferenças regionais de expectativa de vida e as especificidades que fazem com que, no Brasil, diferente de muitos países citados como exemplos contrários, a população mais pobre comece a trabalhar muito cedo, sendo a parcela mais prejudicada por essa medida, é um dos pontos críticos que merecem ser apontados. Com a mesma preocupação, destacam-se as mudanças no Benefício de Proteção Continuada (BPC), mecanismo exemplar da complementaridade e proteção que caracteriza o sistema de seguridade social. Nesse caso, a ampliação gradativa da idade mínima atingirá diretamente a renda de uma parcela da população que, em muitos casos, depende diretamente desse benefício do Estado para garantir sua sobrevivência, cenário em muito agravado num contexto de crise econômica e alto desemprego. A ampliação do tempo de contribuição, associada a um mecanismo de cálculo que só permite o acesso ao benefício total da previdência (teto do INSS) após 40 anos de contribuição, representa uma punição para o conjunto da população brasileira, em especial para as parcelas submetidas a trabalhos mais degradantes. Como consensual no campo científico da saúde, o tempo de trabalho precisa ser considerado como acúmulo de desgaste físico e emocional do trabalhador e, portanto, como elemento central das condições de vida de uma determinada população. Combinadas, a ampliação da jornada de trabalho – prevista em diversos mecanismos da reforma trabalhista – e a ampliação do tempo de trabalho ao longo da vida – prevista na reforma da previdência – significarão uma redução brutal da qualidade de vida da população brasileira, com impactos diretos sobre suas condições de saúde e sobre o sistema público de saúde como um todo.

Por fim, vale mencionar o processo pelo qual essas medidas têm sido impostas à sociedade brasileira. A Fundação Oswaldo Cruz é uma instituição de pesquisa, das mais reconhecidas no Brasil e no mundo. Pela natureza da sua atividade, zela pela valorização da ciência como subsídio à formulação e às decisões políticas – e, como exposto, não faltam evidências científicas que contradizem os cálculos e os argumentos que vêm sendo utilizados para justificar essas reformas, clamando, no mínimo, por um debate mais amplo que respeite o contraditório. Pela sua história de luta contra o autoritarismo e pelo seu compromisso social, a Fiocruz defende que, para ser real, a democracia precisa se expressar no fazer político diário - e isso significa que à população não pode ser negada a participação em decisões com tamanho impacto sobre a sua vida presente e futura. Numa democracia, portanto, qualquer “remédio amargo” precisa passar pela aprovação popular. Não parece, então, excessivo ressaltar que essas reformas não passaram pelo crivo do voto popular, já que não foram objeto de nenhum programa político submetido às urnas – nem mesmo pelo atual presidente da República, principal proponente das reformas, que, como candidato a vice na chapa vencedora das eleições majoritárias, não inseriu essas medidas na plataforma de governo apresentada. Somado a isso, a impopularidade dessas reformas é inegável. Segundo pesquisa realizada em junho deste ano pelo Instituto Datafolha, 71% dos brasileiros são contra a reforma da previdência e 64% acreditam que a reforma trabalhista beneficiará mais os empresários do que os trabalhadores, impressão reafirmada pelo resultado da consulta pública feita pelo site do Senado Federal, em maio de 2017, em que mais de 90% dos votos foram contrários à medida. Nos últimos meses, sucessivas manifestações populares reforçam e dão concretude a essa insatisfação. Não há, portanto, consenso científico nem fórum de legitimação dessas medidas. E a Fiocruz defende que, numa democracia real, o Estado não pode agir de costas para a sociedade.