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SOS Emergências e Melhor em Casa

Ministério da Saúde lança dois programas para melhorar atendimento no SUS. Pesquisadores falam sobre os desafios do país nessas áreas.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 23/11/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

“O melhor em casa é um sistema de tratamento médico domiciliar que será implantado gradativamente para atender doentes crônicos, idosos, pacientes em recuperação de cirurgias e pessoas com necessidade de reabilitação motora. Estes pacientes terão visitas regulares de médicos e enfermeiros em suas próprias casas, lá receberão medicamentos e se necessário equipamentos fornecidos gratuitamente pelo governo, tudo isso perto do carinho dos seus familiares, com a sensação profunda de segurança que estar em casa dá a cada um de nós e sem as pressões psicológicas que sempre que estamos no hospital cada um de nós sente”, afirmou a presidente Dilma no lançamento dos programas Melhor em Casa e SOS Emergências. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, complementou: “É tratar as pessoas no melhor local onde elas podem ser tratadas que é em sua casa, junto com a sua família, junto com a sua comida, envolvendo o conjunto dos familiares para recuperação do tratamento”.

O Ministério da Saúde sabe, entretanto, que não adianta prever uma atenção domiciliar sem que haja uma pessoa, familiar ou não, que possa se responsabilizar pelo cuidado do paciente dentro de casa. É por isso que, para fazer parte do Melhor em Casa, um critério indispensável é a identificação de um cuidador para aquele paciente. Segundo a coordenadora de gestão hospitalar do Ministério da Saúde, Ana Paula Cavalcanti, a falta dessa pessoa exclui o paciente da possibilidade de ser atendido pela equipe multidisciplinar de atenção domiciliar, prevista na portaria 2029, que institui a atenção domiciliar no âmbito do SUS. Nestes casos, o paciente deve ser tratado em outros tipos de serviços do SUS.

De acordo com a mesma portaria, há duas equipes que farão o atendimento dos pacientes em casa. A equipe multidisciplinar de atenção domiciliar deve ser composta por um médico, um enfermeiro, um fisioterapeuta ou um assistente social e quatro auxiliares/técnicos de enfermagem. Em apoio a esta equipe, também atuará outra, chamada de equipe multiprofissional de apoio, que contará com três profissionais escolhidos entre as seguintes profissões: assistente social, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, odontólogo, psicólogo, farmacêutico e terapeuta ocupacional.

Para o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Daniel Groisman, a iniciativa é muito positiva, mas é preciso não idealizar as possibilidades do tratamento em casa. “Eu concordo que é melhor em casa, mas devemos ter cuidado para não ter uma idealização do que é família e do que é a casa. É preciso verificar que condições essa família tem e que condições essa família oferece, tudo isso deve ser assistido também. É preciso ter recursos para tentar melhorar a situação e apoiar a família de fato. Embora o programa já represente muita coisa, talvez o atendimento técnico que ele está trazendo por si só não baste. Pode ser necessário pensarmos em outras medidas, numa interface entre a saúde e a assistência social, para apoiar esse cuidado em casa, dentro de uma lógica de se incorporar o direito ao cuidado em nosso sistema previdenciário, que inclui o direito à saúde, mas não o direito ao cuidado de maneira explícita e clara”, observa.

Apesar da ampla divulgação das potencialidades do programa, outra dúvida é a abrangência do atendimento. De acordo com a portaria 2029, “cada equipe deve atender a uma população adscrita de 100 mil habitantes, utilizando como parâmetro de referência uma equipe para 60 pacientes”. Em outra parte, o documento afirma que “não serão admitidas superposições de equipes em uma mesma base territorial ou populacional de 100 mil habitantes”. Ou seja, a cada 100 mil habitantes apenas poderá haver uma equipe multiprofissional de atenção domiciliar, mas a média de atendimentos por equipe deve ser de 60 pacientes. E se em 100 mil habitantes houver mais de 60 pacientes para serem atendidos? Questionado, o MS, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que “a regra de 100 mil habitantes por equipe segue a lógica de adscrição de clientela, isto é, a equipe é referência para aquele território onde moram 100 mil pessoas”. E completou: “Caso uma dessas pessoas adoeça e precise de atenção domiciliar, terá sua equipe de referência. O número de 60 é um parâmetro de número de pessoas que, em média, cada equipe dever ter sob seus cuidados ao mesmo tempo. Pode ser mais ou pode ser menos. Se o número for muito superior a 60 pessoas, extrapolando a capacidade de cuidar com qualidade, a equipe deverá contar com a rede de suporte ambulatorial e/ou hospitalar”. 

Apesar das dúvidas sobre a real abrangência do programa, Daniel Groisman destaca que as equipes previstas no Melhor em Casa têm uma boa composição. O professor chama atenção apenas para a falta de um cuidador. “Em algumas situações, ter um cuidador preparado e remunerado pelo estado poderia ser interessante, existem experiências no Brasil de incorporação de cuidadores em programas de saúde. Esse profissional poderia apoiar o trabalho desse cuidador [o doméstico], que pode se sobrecarregar, pode ser uma pessoa idosa, pode adoecer também e não se sentir capaz de desempenhar determinadas tarefas. Muitas pessoas que cuidam do cônjuge ou de outro parente, sobretudo mulheres, são idosas. Embora o programa preveja um apoio ao cuidador, essas pessoas também podem se fragilizar ou adoecer”, alerta.  Para o professor, que coordena na EPSJV/Fiocruz um curso de cuidadores de idosos, um grande desafio é ampliar a visão sobre o cuidado na sociedade. “Nem sempre será necessário que o Estado forneça um cuidador, mas pode reconhecer alguém que está fazendo um trabalho de cuidado, que também é obrigação do Estado. Por exemplo, uma filha que, para poder cuidar de seus pais, precisa deixar de trabalhar, se tem esse trabalho de cuidado como algo reconhecido, pode receber um benefício por estar cumprindo essa obrigação de cuidado, às vezes com uma jornada muito maior, sem descanso. É claro que o fornecimento de um cuidador é uma das opções, mas existem outras também que passam pelo reconhecimento do direito de receber o cuidado e o direito de cuidar tendo apoio financeiro, além do instrumental”, defende.

Daniel destaca como ponto positivo do programa a previsão de que as equipes de atenção domiciliar instruam os cuidadores responsáveis pelos pacientes. Conforme a portaria define, é atribuição das equipes “envolvê-los na realização dos cuidados, respeitando limite e potencialidades de cada um”, além de “abordar o cuidador como sujeito do processo e executor das ações”, “acolher a demanda de dúvidas e queixas dos usuários e familiares e/ou cuidadores como parte do processo de atenção domiciliar” e também “promover treinamento pré e pós-desospitalização para os familiares e/ou cuidador”. “Isso chama a atenção porque o Ministério da Saúde interrompeu no final de 2009 o Programa Nacional de Formação de Cuidadores e, menos de dois anos depois, a qualificação dos cuidadores, embora não no mesmo formato, é tida como obrigação do SUS. Isso é uma contradição que aparece, mas de forma positiva, porque os cuidadores estão aí, precisam de qualificação e apoio”, pontua. De fato, de acordo com Ana Paula Cavalcanti, não há nesse momento em curso no Ministério da Saúde nenhuma política para formação de cuidadores.

Estratégia de Saúde da Família e Melhor em Casa: políticas complementares?

A mesma portaria que regulamenta o atendimento previsto no Melhor em Casa define que há três tipos de atenção domiciliar (AD) – AD 1, AD 2 e AD 3. As duas últimas são as realizadas pelas equipes previstas no Melhor em Casa. Já a do tipo 1 é de responsabilidade das
equipes de saúde da família. Outra diferença dos tipos de atenção é a frequência do atendimento – enquanto na AD 1 o paciente deve ser visitado no mínimo uma vez por mês, nas AD 2 e 3, a visita deve ser no mínimo uma vez por semana. Os atendimentos se diferem ainda quanto à complexidade dos problemas de saúde dos pacientes, com a gravidade e necessidade de equipamentos sendo crescente da AD 1 para a AD 3. As equipes do programa Melhor em Casa devem estar vinculadas a qualquer unidade de saúde municipal ou estadual, a critério do gestor, enquanto as equipes de saúde da família são necessariamente vinculadas à Unidade Básica de Saúde. “A equipe de saúde da família também tem essa atribuição de dar orientações. Tem sido uma tendência alocar a porta de entrada dos pacientes em
uma série de programas na equipe de saúde da família. Nesse sentido, esse programa está um pouco diferente do que vem sendo feito. Acredito que está sendo dessa forma pela origem histórica desse tipo de programa, que nasceu no hospital, com a finalidade de tirar pessoas do hospital. Mas quem necessita desse programa não são só as pessoas que estão hospitalizadas, então, temos que mudar essa lógica”, observa Daniel Groisman.  O professor completa que é preciso acompanhar o programa para poder avaliar a que nível de atenção ele se vinculará mais fortemente. “É interessante acompanhar para onde esse programa estará referenciando mais. Essas equipes estarão mais vinculadas aos hospitais ou às Unidades Básicas de Saúde? Para onde ele está apontando e a quem está servindo de fato? Continuará muito vinculado ao hospital, ou estará mais voltado para a comunidade? São perguntas que temos que manter em aberto”, pontua.

Segundo Ana Paula, o Ministério da Saúde apostou na criação dessas outras  equipes fora do saúde da família porque o programa prevê um trabalho de acompanhamento mais intensivo, com maior periodicidade no atendimento. De acordo com ela, a própria natureza do acompanhamento do programa é distinta, prevendo, por exemplo, a possibilidade de que este paciente receba alta da atenção domiciliar, diferente do que ocorre na saúde da família, embora Ana Paula ressalte que todas as políticas necessitem trabalhar em rede. Para Daniel, o Melhor em Casa só terá êxito se toda a rede de saúde estiver bem estruturada. “O programa depende muito da qualidade da rede, da cobertura da saúde da família nos territórios onde será implantado. Não terá condições de atuar sozinho, precisará da referência e da contra-referência, e se um determinado território estiver muito mal coberto com uma rede funcionando de forma precária, o programa não funcionará bem”, alerta.  

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