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Conferência Nacional de Educação vai discutir a construção de um sistema nacional articulado

Sociedade já se prepara para a Conae, que acontecerá em abril de 2010. Primeiro eixo temático trata do papel do Estado
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 10/08/2009 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Entre os dias 23 e 27 de abril de 2010, Brasília vai abrigar a Conferência Nacional de Educação (Conae), com o tema central ‘Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação – O Plano Nacional de Educação (PNE), Diretrizes e Estratégias de Ação’. Falta quase um ano, mas os preparativos já começaram: o ministro da educação, Fernando Haddad, lançou a Conferência em abril, numa solenidade que tinha como objetivo apresentar o tema central e incentivar a participação da sociedade nas conferências municipais – que já estão acontecendo – e estaduais – previstas para o segundo semestre de 2009.



A Conae foi proposta, de acordo com o professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Dermeval Saviani, por conta de uma pressão: o Plano de Desenvolvimento da Educação foi lançado tendo como prioridade a elevação da qualidade da educação básica. O envolvimento da União nessa etapa do ensino levou à proposta de criação de um sistema nacional de educação básica e, no ano passado, realizou-se uma Conferência Nacional de Educação Básica. “Mas surgiu o problema: como falar em sistema nacional de educação básica se essa é uma parte da educação geral e se o termo ‘sistema’ se refere à articulação das partes em um todo? Em função dessas ponderações se pensou em organizar, na seqüência, uma Conferência Nacional de Educação – geral, portanto – visando à discussão do sistema nacional de educação”, explica o professor.



A idéia é discutir os rumos da educação básica, profissional e superior em todas as modalidades de ensino. Para Saviani, é fundamental que a Conferência resulte também na formulação de propostas para um novo PNE. Isso porque o Plano de 2001, que está em vigência atualmente, ‘vence’ em janeiro de 2011. Como o novo PNE ainda vai precisar ser aprovado pelo Congresso Nacional, é necessário que as discussões sejam feitas o quanto antes. “Na verdade, para que o novo PNE entre em vigor ainda em 2011, estamos até atrasados nos debates: o projeto do atual PNE foi encaminhado ao Congresso no início 1998 e só conseguiu ser aprovado em janeiro de 2001. Para que o novo Plano conseguisse entrar em vigor logo após o término da vigência do atual, no Congresso teria que aprová-lo no máximo até o fim do ano que vem”, observa Saviani.



Para incrementar os debates, a Revista Poli vai publicar, em suas próximas edições, uma série de matérias discutindo cada um dos seis eixos temáticos que nortearão a Conae – o primeiro deles vai tratar do ‘Papel do Estado na garantia do direito à educação de qualidade: organização e regulação da educação nacional’.



O papel do Estado na educação: um breve histórico



O compromisso legal do Estado brasileiro com a educação sofreu alterações a cada Constituição promulgada no país. De acordo com Carlos Cury, professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), foi a Carta de 1934 que marcou o início de uma interferência mais rigorosa nessa área, quando definiu a educação primária como um direito de todos e um dever do Estado. Mas, já três anos depois, a Constituição do Estado Novo flexibilizou o que a anterior havia estabelecido: “Ela se abriu à educação privada e declarou que a educação pública seria apenas para aqueles que não pudessem pagar pelo ensino particular. E mais: as pessoas de baixa renda deveriam cursar educação profissional, enquanto as elites deveriam ter acesso ao ensino superior”, explica.



Durante o regime militar, que começou em 1964, novas decisões enfraqueceram a educação: “Ao mesmo tempo em que ampliou o período de ensino obrigatório de quatro para oito anos, a ditadura desvinculou os impostos que deveriam ser direcionados à educação. Isso significou, evidentemente, que a educação foi prejudicada do ponto de vista da qualidade, da força e do prestígio”, diz o professor. De acordo com Saviani, o ensino privado teve novo impulso nessa época, especialmente no nível superior. “Com isso, a maior parte do alunado do ensino superior passou a ser atendida por instituições privadas, que se organizavam na forma de faculdades isoladas ou integradas, por via de autorizações do Conselho Nacional de Educação. A participação privada no atendimento ao nível superior passou a atingir três quartos do alunado, ficando apenas um quarto na esfera pública”, afirma.



Após idas e vindas, a Constituição de 1988 direcionou ao Estado a obrigação de garantir o ensino fundamental a todos os cidadãos brasileiros. Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 instituiu a necessidade de se ter um PNE. Mas, de acordo com Dermeval Saviani, isso não se efetivou na prática. “Durante o processo de redemocratização houve uma intensa mobilização da sociedade, que conseguiu esses avanços na carta constitucional. Mas a orientação política que passou a predominar mundialmente envolveu a idéia do Estado mínimo, o que fez com que, também no campo da educação, o Estado tendesse a reduzir sua participação e a ampliar a participação do setor privado”, afirma o professor. De acordo com ele, uma das formas pelas quais isso vem acontecendo é a propagação da idéia de que a educação é uma responsabilidade de toda a sociedade, e não apenas do governo. “De modo especial, se introduziu nesse período uma ênfase no voluntariado, o que configura uma situação estranha, uma vez que o desenvolvimento da educação na sociedade moderna caminhou da filantropia para a profissionalização”, diz.



Todos pela educação?



O lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação pelo governo federal gerou, de acordo com Saviani, uma confusão em relação ao PNE. “Como tem o nome ‘plano’, projeta a idéia de que deveria substituir o PNE, o que não procede, uma vez que o PNE ainda está em vigor”, diz o professor. Ele acredita que a proposta da Conae pode ser uma medida para que o PDE passe a ser considerado uma estratégia de execução do Plano Nacional.



Além de ter produzido essa ambigüidade, o PDE apresentou ainda uma novidade que confirma a tendência a pensar a educação como dever de toda a sociedade: o ‘Compromisso Todos pela Educação’, que, segundo Saviani, foi baseado em propostas do empresariado brasileiro. Na opinião do professor, isso representa um risco, uma vez que os interesses do empresariado consistem em fazer com que a educação se ajuste às demandas do mercado. “Os empresários desejam que o governo monte um sistema de ensino que corresponda às expectativas do mercado, em que o importante é a busca pela produtividade e pela maximização dos lucros. Mas é preciso desenvolver um processo que não esteja sujeito a essas demandas. Na verdade, o sentido da educação é o de permitir que a população tenha acesso aos bens culturais produzidos e, assim, tenha a possibilidade de interferir nas decisões”, analisa.





A criação de um sistema nacional e o papel da União



Outro dos temas abordados pelo primeiro eixo da Conae se refere às responsabilidades de cada instância federativa em um sistema nacional articulado de educação. Tanto Cury quanto Saviani afirmam: o papel da União, nesse caso, não pode se restringir apenas a oferecer apoio técnico e financeiro. É preciso que ela seja também uma instância articuladora, formuladora e coordenadora do sistema.



E quais são as dificuldades concretas para que um sistema nacional seja implantado? Para o Saviani, além do financiamento, outros três obstáculos devem ser observados. O primeiro diz respeito à descontinuidade das políticas educativas. “Um sistema nacional envolve uma estrutura sólida, com políticas firmes que se realizem ao longo do tempo, sem as interrupções que nós constatamos no caso brasileiro”, avalia.



O segundo está relacionado à idéia de que um sistema nacional poderia ferir a autonomia das instâncias federativas.  Para o professor, isso não aconteceria, uma vez que se trata de articular as diferentes instâncias, preservando suas peculiaridades. Ele critica essa falta de articulação: “A transferência total da responsabilidade pelo ensino fundamental para os municípios traz a seguinte conseqüência: municípios miseráveis vão ter uma educação miserável e municípios ricos vão ter uma educação rica. Em nome das diferenças, está se consagrando a desigualdade. Se a questão fosse vista como um problema nacional, os municípios com menos recursos poderiam ter seus sistemas desenvolvidos com a mesma qualidade dos demais”, exemplifica.



O último obstáculo, de ordem legal, é a idéia de que tanto a Constituição como a LDB não falam em um sistema nacional, mas sim em sistemas de ensino (federal, estaduais e municipais). De acordo com Saviani, isso gera o argumento de que a criação de um sistema nacional de educação seria inconstitucional. “Mas na verdade a legislação não veta a articulação de tal sistema. Ao contrário, a própria Constituição traz vários dispositivos que apontam para a organização de um sistema nacional como, por exemplo, a prerrogativa de que a União deve organizar as diretrizes de bases da educação nacional e o regime de colaboração”, afirma o professor.