Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Qualidade e gestão democrática da educação

Segundo eixo da Conae vai discutir participação popular e a criação de um Subsistema Nacional de Avaliação
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 10/09/2009 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

O principal indicador da qualidade da educação básica no Brasil é, hoje, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) – um valor que pode variar de zero a dez, calculado com base na taxa de aprovação de alunos e nas notas obtidas por eles. A última avaliação, feita em 2007, mostrou que o índice brasileiro nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e durante todo o ensino médio ainda eram bastante baixos: 4,2, 3,8 e 3,5, respectivamente. A grande meta do governo federal é que o país chegue ao ano de 2022 – quando se comemora o bicentenário da independência – com uma média de 6,0 para a primeira fase do ensino fundamental. Esse valor, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), equivale à qualidade observada nos países com sistemas educacionais mais desenvolvidos.



A discussão dos educadores sobre a qualidade do ensino, no entanto, vai além da construção de rankings e do cumprimento de metas, e esse é justamente um dos temas que serão discutidos no segundo eixo da Conferência Nacional de Educação (Conae): ‘Qualidade da educação, gestão democrática e avaliação’.





Como avaliar a qualidade social da educação?



O professor Luiz Fernandes Dourado, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás, chama atenção para o fato de que o termo ‘qualidade’ pode ser visto a partir de diferentes concepções de mundo, de educação e de sociedade: “Duas posições são bem antagônicas: a primeira vislumbra a educação sob o eixo empresarial, enfatizando a questão do rendimento, com foco em uma gestão educacional feita nos moldes de uma gestão empresarial – trata-se da ‘qualidade total em educação’. Já a segunda se preocupa em construir o que se denomina ‘qualidade social em educação’, ou seja, em pensar políticas educacionais a partir de um conjunto de dimensões internas e externas à prática educativa. Essa concepção considera que qualidade tem a ver com o direito à educação, com as condições em que esse direito se efetiva, com as condições de acesso dos diferentes estudantes e com a formação de sujeitos críticos e atuantes”, explica o professor.



Para ele, parece haver um esforço por parte do Ministério da Educação (MEC) para implantar políticas que trabalhem com essa segunda concepção, mais abrangente – e exemplos disso são os espaços abertos para a discussão das diversidades regionais e das questões étnico-raciais. Mas, para Álvaro Hypolito, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, a grande contradição está em avaliar o processo educativo a partir de critérios quantitativos, baseados em exames – como o Ideb. “São usados critérios de mensuração, baseados em notas e avaliações que não condizem com qualquer ideia que se possa conceber como qualidade social de educação”, afirma, criticando o que considera uma ‘política gerencialista’ por parte do Estado.





Um subsistema nacional de avaliação



Segundo Álvaro Hipolyto, é preciso estabelecer outros indicadores sociais de qualidade, que não sejam mais baseados em rankings de alunos, escolas ou países. “Diz-se que o Brasil deverá melhorar seus índices até que cheguemos ao padrão dos países mais desenvolvidos, como a Finlândia. Mas não há como fazer isso sem que as crianças brasileiras tenham as mesmas condições socioeconômicas e nutricionais das crianças desses países e sem que sejam boas as condições de trabalho dos professores, os materiais disponíveis, os salários. Não se pode iludir a população afirmando que vamos atingir um determinado padrão, porque, sem essas mudanças, nós não vamos conseguir”, diz.



De fato, elementos como a desigualdade social, os contextos culturais, as condições físicas das escolas, a relação entre o número de professores e de estudantes e o tempo de permanência do aluno na instituição aparecem no documento-referência da Conae como fatores que devem ser considerados para uma boa avaliação do ensino. A proposta do documento é que seja efetivado um subsistema nacional de avaliação da educação básica e superior, articulado ao Plano Nacional de Educação.



Segundo Luiz Dourado, há exemplos de indicadores mais completos que os nossos em alguns países europeus, especialmente na França. Mas, para ele, é preciso ainda pensar alternativas para o caso brasileiro, que tem um sistema mais complexo. “Somos um país grande, com 50 milhões de alunos na educação básica, áreas periféricas no campo, grandes cidades e grupos específicos como quilombolas e indígenas. Pensar uma dinâmica de qualidade e, portanto, de avaliação da qualidade, implica considerar essa condição. Quais seriam as referências para um padrão nacional? E em que medida esse padrão garante elementos que interpretem e deem retorno para as especificidades locais?”, indaga.



Para Álvaro Hypólito, a dificuldade em atender a essas especificidades é uma razão para que a avaliação deva ser descentralizada, e não disposta em um subsistema nacional, como propõe o documento. “A melhor avaliação é a feita nas comunidades. O Brasil é um país muito grande e com muita diversidade cultural, o que deve ser atendido pelo sistema educacional. É claro que podemos ter um padrão curricular mínimo a ser adotado, mas ele precisaria ser flexível o suficiente para absorver essas diferenças. Por isso, acredito que a avaliação deva ser pensada a partir de cada local”, afirma. Mas, para Luiz Dourado, diretrizes nacionais de avaliação não prejudicam, necessariamente, as dinâmicas avaliativas implementadas por estados e municípios: “As políticas nacionais devem guardar um determinado padrão de referência, em articulação com os entes federados. O subsistema garantiria as grandes diretrizes e implementaria, numa alçada nacional, o processo de avaliação. Mas esse processo teria uma construção coletiva, e sua implementação também se daria de maneira coletiva”, defende.





Gestão democrática





É possível ter educação de qualidade sem a participação da sociedade na tomada de decisões? De acordo com o documento-referência da Conae, a garantia de espaços de deliberação coletiva está intimamente ligada à melhoria da qualidade e ao aprimoramento das políticas educacionais. E está no artigo 206o da Constituição Federal: um dos princípios da educação brasileira é a gestão democrática do ensino público, o que foi reafirmado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996, e ainda pelo Plano Nacional de Educação de 2001. Mas até que ponto ela está concretizada? Hoje, a participação da sociedade na gestão pode se dar tanto dentro das unidades de ensino – por meio de colegiados de instituições de educação superior e conselhos escolares – como, numa escala maior, por meio de instrumentos como os conselhos municipais, estaduais e nacional de educação. No entanto, há muito o que melhorar em termos de participação social, nas duas dimensões.



De acordo com Álvaro Hypolito, a participação de professores e da comunidade no âmbito das unidades educativas ainda é muito restrita. “Mesmo que haja um conselho escolar eleito, nem sempre ele interfere em decisões importantes. É preciso pensar um modelo em que todos os sujeitos envolvidos possam pensar e deliberar dentro do ambiente da escola em pelo menos três aspectos importantes: a gestão de recursos, a gestão administrativa e a própria democratização do conhecimento”. O professor, que estudou alguns casos na região de Pelotas, afirma que muitas escolas resolveram problemas de violência e depredação de prédios depois que passaram a incentivar uma aproximação entre os professores e as famílias dos alunos e a participação da comunidade na tomada de decisões.



A gestão democrática do sistema de educação também deve ser aprimorada, na opinião de Álvaro: embora reconheça a importância dos conselhos de educação, ele acredita que sua composição nem sempre é a desejável. “Eles são fundamentais porque são órgãos de deliberação coletiva, mas, na prática, muitos conselhos ainda são muito burocratizados. Os estaduais, por exemplo, não têm poder deliberativo sobre políticas orçamentárias. E há cidades em que os conselhos municipais contam com uma representação social ampla, com a presença do sindicato dos professores, entre outros, e cidades em que isso não ocorre. Então, creio que ainda há um longo caminho a percorrer”, afirma.



O estabelecimento de diretrizes nacionais mais sólidas para a gestão democrática da educação poderia, para Luiz Dourado, ajudar nesse sentido. “Mas participação não se decreta. Ela se constrói”, ressalta Luiz Dourado, lembrando que, embora a democratização da composição dos conselhos seja importante, só isso não é suficiente. “É preciso também que haja uma maior articulação dos conselhos municipais e estaduais entre si e ainda com os conselhos escolares, de modo que haja uma interação cada vez mais viva com os sistemas de ensino”, aponta.