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Educação e justiça social

Sexto eixo da Conae pauta relação entre desigualdades sociais e processos educativos.
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 15/12/2009 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Como pensar um modelo de educação que possa, ao mesmo tempo, garantir a participação dos segmentos historicamente segregados e formar sujeitos sociais para transformação da realidade que os segrega? A questão, que aponta para um dos debates fundamentais do campo da educação – a sua relação com a sociedade em que está inserida –, permeia grande parte das discussões quando se pensa nas contradições do sistema instituído e seus reflexos nos processos educativos. O reconhecimento das desigualdades sociais e a proposição de políticas públicas para a educação que congreguem para sua superação são o ponto de partida do debate pautado principalmente pelos movimentos dos setores oprimidos organizados e refletido no sexto e último eixo da Conferência Nacional de Educação (Conae): ‘Justiça social, educação e trabalho: inclusão, diversidade e igualdade’.

O documento-referência da Conae aponta que as questões que envolvem o sexto eixo permeiam o processo de criação do Sistema Nacional Articulado de Educação, proposta geral do documento para o debate na Conferência. Nesse sentido, o texto destaca que, para a concepção de educação democrática, esse debate é central. Os segmentos para os quais o documento aponta propostas concretas são: relações étnico-raciais, educação especial, do campo, indígena, ambiental, de jovens e adultos, questões de gênero e diversidade sexual, crianças, adolescentes e jovens em situação de risco e formação cidadã e profissional.

Miguel Arroyo, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), questiona o fato de esse ser o último dos seis eixos da Conae: “Ele deveria ser o primeiro, para dar sentido aos outros. O fato de ter ficado para o final dá a impressão que, com a criação de um Sistema Nacional de Articulado de Educação, se consegue como consequência a justiça, a articulação com o trabalho, a igualdade, etc. Esse debate teria que ser ponto de partida para repensar radicalmente a própria teoria pedagógica, as políticas educativas e a conformação do nosso sistema educacional”, avalia.

Pressão dos movimentos

O professor destaca que a atuação dos movimentos sociais organizados é responsável por grande parte do debate e conhecimento acumulados sobre a desigualdade e a justiça social na educação: “Esses debates estão cada dia mais presentes nas pesquisas, na produção de teoria pedagógica e sociológica. E quem está pressionando são os próprios coletivos em sua diversidade, que se fazem presentes nos campos, nas cidades, nas lutas pelo teto, nas lutas dos povos indígenas, quilombolas, do movimento feminista, do movimento de diversidade sexual”, diz.

A atuação dos movimentos tem grande peso também para a formulação dos projetos e para a conquista de sua implementação. É o que avalia Roseli Caldart, assessora pedagógica do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra), do Movimento os Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e coordenadora curso de Licenciatura em Educação do Campo (parceria entre Iterra, Universidade de Brasília e Ministério da Educação). Segundo Roseli, a pressão dos movimentos é fundamental porque a lógica do Estado não está voltada para atendê-los: “O Estado tem outra hegemonia, e quando se tem pressão e é necessário atender parte dela, é preciso buscar as experiências feitas na contra-ordem, na resistência. Essas experiências, hoje, como a educação do campo, vêm muito dos movimentos sociais e de outros tipos de organização, como o movimento sindical”.

No entanto, ela destaca a permanente disputa de projeto e concepção que permeia a relação entre os movimentos sociais e o poder instituído: “Essas experiências são aproveitadas, mas com um limite, que é o formato da sociedade que nós temos. O Estado precisa torná-las palatáveis à lógica do sistema”, analisa. E prossegue: “Esse é o grande fio de navalha. Os movimentos pressionam, e não apenas pelo direito, mas pelo conteúdo da política. Essa é uma característica importante dos movimentos que integram a articulação por uma educação do campo, por exemplo. Não é o direito a qualquer escola: é a que escola, que curso? Essa pressão de conteúdo cria uma tensão, e na correlação de forças que temos hoje, sabemos qual o pólo que acaba sendo vitorioso”.

Para Roseli, essas contradições que marcam a relação entre as pautas dos movimentos e as políticas de Estado impulsionam os processos de tomada de consciência: “Ainda que a política não avance, essa formação pode, em médio prazo, ressurgir sobre a forma de pressão, sobrecarregando o sistema até que efetivamente se esgote e possamos ter acesso universal a muitas coisas, e não apenas à educação”.  

Educação dos oprimidos: polêmicas da ‘diversidade’

Muito presente no documento-referência da Conae, a noção de ‘diversidade’ suscita uma série de debates sobre o tratamento que deve ser dado às diferenças e desigualdades sociais. No campo da educação, há perspectivas que buscam identificar nas especificidades de cada segmento oprimido o conteúdo para a formulação de um projeto de educação específico, que busque afirmar as diferenças e estreitar os laços entre tais segmentos. Outras perspectivas, no entanto, buscam compreender nas raízes estruturais de cada tipo de opressão aquilo que as unifica, e partir da especificidade dos sujeitos para a formulação de um projeto de educação comum aos explorados. As diferentes concepções materializam-se também no caráter das políticas sociais reivindicadas pelos diferentes segmentos.

Para Miguel Arroyo, a tentativa de formulação de uma política universalista diante de uma realidade diversa é um equívoco: “De fato não podemos unificar todos os coletivos diversos nem todas as ações coletivas. Precisamos, sim, estar atentos ao que têm em comum: o fato de terem sido colocados como uma categoria inferiorizada. É preciso haver contraposição às concepções universalistas segregadoras dos ‘outros’, aqueles que não cabem nesse ‘nós’ hegemônico, com concepções afirmativas dos ‘outros’ em relação ao ‘nós’. Porque a própria política que se julga universalista e única não o é, e nunca foi. O que temos que propor é como por em diálogo essa diversidade”, opina.

Já Roseli Caldart, exemplificando com a educação do campo, chama atenção para a possível pulverização que a noção de diversidade pode trazer: “Essa armadilha está no próprio conceito de diversidade, que é perigoso porque pode ser usado de distintas maneiras. Muita gente considera que a escola do campo tem que ser diferente, que a educação voltada para os trabalhadores do campo tem que ser diferente da educação voltada para os trabalhadores da cidade. Considero essa visão tremendamente simplista e simplificadora do debate”, diz. Na sequência, ela reafirma a necessidade de construção de um projeto de educação dos trabalhadores: “Nós nos colocamos na perspectiva de que é preciso reconhecer a especificidade, que não é da educação e sim do sujeito, dos processos produtivos, dos processos culturais que se produzem a partir desses processos produtivos e que se produzem principalmente hoje desde as lutas sociais que estão no campo. Então, trabalhar com isso, para que essa especificidade ajude a interrogar as respostas gerais dadas para a questão da educação, não é defender uma escola para o campo, mas sim pensar, partindo da realidade do campo, aquilo que pode nos ajudar a redesenhar a escola como um todo, ou no caso, a escola para a classe trabalhadora”, defende.

Propostas

O documento-referência traz algumas propostas objetivas para cada um dos segmentos que compõem o sexto eixo. No que se refere às relações étnico-raciais, valoriza a necessidade de efetivação do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Lei 10.639/2003). Além disso, destaca a importância de políticas de acesso e permanência para populações de diferentes origens étnicas ao ensino superior e indica, especificamente, as ações afirmativas como opção.

Para a educação especial, a principal proposta é a criação da Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, assegurando o acesso à escola dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades na educação básica e na educação superior. As propostas para a educação do campo centram-se na criação da Política Nacional para a Educação do Campo e na garantia de acesso, padrões básicos de infra-estrutura e oferta das diferentes modalidades para as escolas de áreas rurais. No que se refere à educação indígena, o documento propõe a criação de cursos de licenciatura indígena nas IES e a garantia de implementação da Lei 11.645/08, que prevê o estudo das temáticas indígenas nas escolas de educação básica.

O documento também propõe a implementação e acompanhamento da Lei da Política Nacional de Educação Ambiental (Lei 9795/1999), que afirma o direito à educação ambiental nas instituições de ensino e fixa padrões para sua oferta. Sobre as questões de gênero e diversidade sexual, o documento propõe que os temas integrem as políticas de formação dos profissionais de educação, apontando sua inclusão no currículo das licenciaturas. Outra proposta do documento, referente às crianças, jovens e adolescentes em situação de risco, é a garantia de políticas públicas de inclusão e permanência, em escolas, de adolescentes que se encontram em regime de liberdade assistida e em situação de rua. Para os dois últimos segmentos, a formação cidadã e profissional e a educação de jovens e adultos, o documento propõe a articulação entre formação cidadã e profissional, a consolidação da expansão da educação profissional e de uma Política de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com garantia de formação integral, alfabetização e demais etapas de escolarização. “Acho que as políticas mais interessantes são as estruturais, como a criação de um sistema de educação do campo com base nas escolas. Isso significa acabar com a política de retirar as crianças do campo e levá-las para as cidades, construindo uma rede para que cada comunidade e assentamento tenha sua escola, que é também um símbolo de identidade. O mesmo deve valer para favelas, periferias e demais locais segregados”, finaliza Miguel Arroyo.