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Educação: o novo negócio do mercado

Escolas de diversos estados oferecem cursos técnicos e profissionalizantes em parceria com a iniciativa privada.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 20/09/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Recentemente, o governo do estado do Rio de Janeiro lançou o projeto Dupla Escola. Na ocasião, 50 representantes de grandes empresas como Procter & Gamble (P&G), Embratel, Instituto Ayrton Senna e Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) estavam presentes para fechar ou fortalecer parcerias com a Secretaria Estadual de Educação (SEE) para a criação de cursos técnicos e profissionalizantes nas unidades de ensino público. No entanto, não é exclusividade deste estado este tipo de iniciativa: outros como Pernambuco, Maranhão, São Paulo e Rio Grande do Sul também fecharam parcerias semelhantes.

Em material de divulgação do projeto Dupla Escola, o objetivo apresentado é "transformar a unidade escolar convencional em um espaço de oportunidade para o aluno". Duas indagações surgem a partir daí. A primeira é que porque o espaço convencional não pode gerar oportunidade? E a outra é: oportunidade para quem? A coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho e Educação e professora-pesquisadora do Mestrado em Educação Profissional em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Aparecida Santos, explica que este fenômeno já vem se apresentando nas últimas duas décadas: "Este momento foi marcado pela implantação do modelo neoliberal no Brasil e seu correspondente projeto pedagógico: o que chamo de gerencialismo de mercado, que consiste na ideia de que a escola de qualidade é aquela não apenas voltada para o mercado, mas também produzida pelo mercado. O conceito de gestão pela qualidade do mercado invade as escolas, transformando um direito em um serviço a ser produzido e oferecido pelo mercado".

Nova tendência

De acordo com a professora-pesquisadora da EPSJV, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América Latina e Caribe (PREAL) sugerem este modelo gerencialista de mercado no âmbito da educação. "As orientações do neoliberalismo, desde a Conferência de Jontiem, em 1990, o Consenso de Washington e a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), argumentam que educação deve ser concebida como negócio", explica.

E, segundo ela, este é o modelo que tem influenciado a educação brasileira, tanto no caso do ensino básico como no superior. "Em ambos os casos, quem decide é o mercado, mas quem financia é o Tesouro Público. No caso do Brasil, fizemos o dever de casa direitinho: 90% das instituições de educação superior são privadas e recebem progressivamente verbas públicas. No caso da educação básica, ao contrário, 90% são públicas, mas entregues a institutos privados. Há condicionalidades que obrigam de certa maneira as redes municipais, mesmo aquelas que não decidiriam por isso, a aderirem às parcerias, a fim de receberem recursos. O Movimento ‘Todos pela Educação' vincula projetos da Unesco à gestão privada das escolas, por exemplo", aponta.

Gaudêncio Frigotto, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da pós-graduação da EPSJV, ainda complementa que a tendência se dá em um processo de privatização por dentro daquilo que é um direito social e subjetivo na esfera pública. "A consequência disso é que você acaba introduzindo na escola e nos cursos de formação profissional uma visão particular. E isso atinge um dos direitos fundamentais, que é o direito de ter uma educação profissional, mas integrada a uma educação básica que possibilite a constituição de um cidadão capaz de discutir e fazer valer os seus direitos".

Por outro lado, o subsecretário estadual de educação (SEE) do Rio de Janeiro, Antonio Neto, defende que esta é uma necessidade diante das limitações do setor público. "Com esta parceria, na verdade, a prestação pública cria fôlego para trazer outras oportunidades que sozinha ela não conseguiria", argumenta.

Ensino para quem?

O foco de formação destes diferentes estados é unânime: preparar o aluno para o mercado de trabalho e levar estes profissionais a suprirem demandas específicas desse mercado. Antônio Neto explica que, antes de lançar o projeto, foi realizado um mapeamento junto à secretaria de desenvolvimento econômico. "Depois deste mapeamento, percebemos quais áreas em quais lugares demandam quais tipos de profissionais e quais cursos têm mais aderência nesta região", explica.

O programa ‘Maranhão Profissional', por exemplo, segue esta mesma linha de suprimento das demandas por contratações dos empreendimentos implantados e em fase de implantação no Maranhão. O Programa, em parceria com empresas como a Vale e a Consórcio de Alumínio do Maranhão (Alumar), é responsável pela formação profissional em cursos como assistente administrativo, técnico em elétrica e em mecânica.

Gaudêncio questiona este tipo de formação sob demanda. Ele relembra que o modelo, que era o ideário do sistema S , tornou-se uma política oficial. "É essa a inversão: o interesse particular se sobrepondo a um direito que é universal. E, portanto, essa será uma formação pragmática, particularista e, em certo sentido, alienadora. O aluno deveria ter a possibilidade de escolher qual carreira seguir, optar, e não se formar naquilo que o mercado está precisando para que ele tenha alguma chance de inserção", avalia. O professor cita o artigo ‘Escola e Cidadania ', do economista e professor Luiz Gonzaga Beluzzo, que discute este modelo atual no Brasil sob a ótica "bastarda dos valores originais do humanismo iluminista". "A especialização e a tecnificação crescentes despejam no mercado, aqui e no mundo, um exército de subjetividades mutiladas, qualificadas sim, mas incapazes de compreender o mundo em que vivem. Os argumentos da razão técnica dissimulam a pauperização das mentalidades e o massacre da capacidade crítica", comenta Beluzzo em seu texto.

Parcerias vão além

O Instituto Ayrton Senna é um exemplo de atuação direta na construção do conteúdo pedagógico para a educação pública. Atualmente, a parceria já foi estendida para 25 estados. O objetivo, segundo o instituto,é atuar em grande escala para qualificar a educação pública oferecida a crianças e jovens brasileiros. Esta atuação engloba desde a capacitação dos professores até o projeto político- pedagógico dos cursos. Seguem a mesma linha de atuação a Fundação Itaú e a Fundação Lehmam, ambas com atuação em todo o território nacional. Outro exemplo de interferência direta é o projeto ‘Núcleo Avançado em Educação' (Nave), que começou em 2008, uma parceria da Oi Futuro com os governos dos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco. O Colégio Estadual José Leite Lopes, na Tijuca, Rio de Janeiro, e a Escola Técnica Estadual Cícero Dias, de Boa Viagem, em Recife, contam com um curso técnico de áreas digitais. O ensino médio é desenvolvido pelas secretarias de educação estaduais e a parte profissionalizante é de responsabilidade da empresa, que conta com um departamento denominado 'Diretoria de Educação', em conjunto com os professores da rede estadual de ensino. "O nosso professor participa juntamente com o parceiro e ganha uma gratificação paga pelo governo do estado para que ele permaneça mais tempo na escola por conta do projeto", explica o subsecretário de educação do Rio de Janeiro, Antonio Neto.

O governo de Pernambuco, um dos mais antigos a implantar esse tipo de parceria, e referência para estados como São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, criou dois órgãos para gerir esta relação público-privado: o primeiro é o Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE), que mobiliza a classe empresarial, e outro é o Programa de Desenvolvimento dos Centros de Ensino Experimental (Procentro), que planeja e implanta os centros baseado na Tecnologia Empresarial Socioeducacional formulada pela Odebrecht, uma das empresas parceiras. Neste programa, sob co-responsabilidade de empresas como Philips, Chesf, Abn-Ambro/Bandepe, está a formulação da grade curricular, a elaboração de planos e metas e o levantamento e indicação de investimento em infraestrutura.

De acordo com Aparecida , este é um dos pontos mais críticos deste tipo de parceria porque, além de passar o papel de formulador da política pedagógica do ensino público para a iniciativa privada, o Estado ainda financia estas linhas educacionais e curriculares focadas em nichos de mercado. "O dinheiro continua saindo dos cofres públicos. Quem financia é o Estado, ou seja, o contribuinte. Toda verba investida em educação é recuperada sob três formas: contrapartida fiscal (isenção nos impostos), financiamento direto (o Estado repassa o dinheiro diretamente às empresas) e valorização do capital de marca, que, hoje, é um elemento contábil, considerado ativo intangível, que compõe o valor das ações de uma empresa", enumera.

Por parte da empresa, a estratégia de marketing também é ponto fundamental para a consolidação deste ‘novo negócio'. O Colégio Estadual Erich Walter Heine, considerado a primeira instituição de ensino ecológico da América Latina construída dentro dos padrões da certificação LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), da entidade internacional Green Building Council (Conselho de Construções Verdes) de sustentabilidade, é resultado de uma parceria entre a TKCSA e a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro e é uma das contrapartidas do benefício fiscal concedido à empresa para os serviços realizados na construção e operação de terminais portuários na Zona Oeste do Rio. Embora o colégio tenha recebido prêmio de sustentabilidade, a TKCSA é, atualmente, acusada de causar sérios riscos ambientais e à saúde de trabalhadores e moradores do entorno das instalações da empresa. "Esta empresa vem causando danos gravíssimos à população e ao ecossistema, mas recebe do governo do estado do Rio de Janeiro o título de modelo de parceria público-privado, sendo referência para o ‘Dupla Escola', por sua ‘escola ecológica'. As ações de responsabilidade social e ambiental, o título de empresas-cidadãs são, do ponto de vista financeiro, bons negócios para as empresas e, do ponto de vista pedagógico e político, péssimos para a sociedade", conclui Aparecida.