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Educar para o setor produtivo

Pronatec é carro-chefe das parcerias público-privadas na Educação Profissional
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 28/05/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

"Nossas crianças estão sendo enganadas, a cabeça delas vem sendo trabalhada, e o efeito disso será sentido em poucos anos. É isso o que deseja o MEC? Se não for, algo precisa ser feito, pelo ministério, pelo congresso, por alguém". Esse apelo foi escrito pelo jornalista Ali Kamel, num artigo de 2007, em que questiona duramente o conteúdo do livro didático ‘Nova História Crítica', de Mario Schmidt, utilizado então nas turmas de 8ª série de algumas escolas da rede pública. Segundo ele, o livro era "uma tentativa de fazer nossas crianças acreditarem que o capitalismo é mau e que a solução de todos os problemas é o socialismo". Mas tanto o apelo quanto o comentário bem poderiam ter sido feitos, às avessas, por alguém que lesse, por exemplo, a apostila que ensina ‘Economia e Mercado' aos alunos do Colégio Estadual Erich Walter Heine, em Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro.

"As pessoas parecem não enxergar o capitalismo como um sistema que tenha elevado a qualidade e a expectativa de vida ou que tenha distribuído, a muitos, bens antes reservados a poucos. Ainda se vê o capitalismo como um mecanismo criado para enriquecer os capitalistas. Rever conceitos distorcidos como esse é premissa para que a sociedade encare o ganho coletivo como a soma de lucros individuais", diz o enunciado de um exercício da apostila produzida pela ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) para o curso técnico de administração da escola pública que funciona por uma parceria da empresa com o governo do estado do Rio de Janeiro, no Programa Dupla Escola. Ao estudarem sobre o desemprego, por exemplo, os alunos aprendem, a partir de conceitos e definições apresentadas pedagógica e cientificamente, que os "trabalhadores são despedidos porque o empregador não tem como suportar grandes períodos de produções e vendas baixas" e ao entrarem em contato com uma discussão sobre distribuição de renda, aprendem que a desigualdade de renda é não apenas justificável como coerente com uma noção de "justiça distributiva": "Um engenheiro, por exemplo, está acima de um pedreiro no nível de renda; pois, obviamente, a capacidade que o primeiro coloca em função do esforço de produção é mais valiosa que a do segundo".

Embora o exemplo seja do Rio de Janeiro, a estratégia da parceria público-privada como política de educação profissional no Brasil não é uma ação isolada nem propriamente uma novidade. Segundo Marcela Pronko, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), esse processo começou já na década de 1940, num momento em que, enquanto vários países da América Latina criavam sistemas estatais de educação técnica, no Brasil se apostou na criação do Sistema S, uma rede de escolas privadas ligadas a confederações de empresas de diferentes segmentos da economia, como indústria (Senai) e comércio (Senac), financiadas com recursos que são considerados públicos (ou parafiscais). "Essa era uma reivindicação de todo o empresariado: que ninguém poderia formar os trabalhadores que eles precisam tão bem quanto eles próprios. Mas, naquele momento, só no Brasil eles encontraram espaço para implantar um sistema como esse", diz.

E esse espaço não só se mantém, como tem sido ampliado pelas políticas mais atuais de educação profissional no Brasil, que hoje se concentram no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Para o Secretário de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC), Marco Antonio de Oliveira, não há problema na presença da lógica empresarial na formação profissional. "Esse é um falso debate", diz. E completa: "É óbvio que organizações do porte do Senai e Senac estão em estreita cooperação com o mundo empresarial e a tendência natural é que elas formem em função dessa necessidade. Agora, isso não significa prescindir de conteúdos críticos ou de uma visão geral da educação, que deve pautar qualquer esforço educacional. Não adianta eu formar um torneiro mecânico, ensinar a ele a luta de classes e não ensinar como se opera o torno".

Demanda empresarial

Da mesma forma, o secretário acredita que as áreas de oferta de formação profissional devem ser orientadas também pela demanda dos setores produtivos. Ele avalia, inclusive, que um dos problemas das políticas no passado estava na "lógica ofertista", com "cursos de prateleira". "Muitas vezes esses cursos não estavam em linha com a economia local e, consequentemente, pouco acrescentavam em termos de chances ocupacionais", opina, e explica a mudança: "Nós estamos partindo de diagnóstico. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) elaborou um mapa da educação profissional na indústria. Nós estamos identificando as ocupações que deverão ser mais demandadas nos próximos cinco anos e fazendo uma aposta de qualificação nesses segmentos". Para o professor da Universidade Feevale e pesquisador da área de educação e trabalho, Gabriel Grabowski, o Pronatec é o instrumento que o governo Dilma Rousseff está utilizando para estabelecer um diálogo com o setor empresarial. "O problema é a qualificação profissional? O governo disponibiliza o programa e o dinheiro e diz para as empresas executarem. Entrega inclusive a gestão a elas. Foi exatamente o que Getulio Vargas fez em 1942 com o Sistema S", compara. E completa: "O dividendo político que o governo espera é a credibilidade e o apoio desses setores".

A valorização do diálogo com o setor privado, na avaliação de Marco Antonio Oliveira, tem a ver diretamente com a compreensão da atual política de educação profissional como estratégia de desenvolvimento econômico. "Quando falamos em qualificação, não se trata mais de melhorar as condições de ingresso do trabalhador no mercado de trabalho, mas de melhorar as condições da própria economia e permitir que, por meio dessa elevação de qualidade, você tenha ganhos de produtividade e competitividade", explica, completando: "Estamos criando uma massa de mão de obra que seja capaz de acompanhar esse novo ciclo de desenvolvimento que o país está requerendo". A principal preocupação, portanto, não é inserir as pessoas no mercado de trabalho a partir da formação profissional, mas aumentar a qualificação dos trabalhadores para atender a essas demandas. "Hoje nós não temos um cenário de desemprego. Há segmentos que falam em apagão de mão de obra. Isso é um exagero, mas há, sem dúvida nenhuma, uma necessidade de ampliação de qualificação, particularmente no nível técnico, nos setores mais intensivos de tecnologia, que demandam mais mão de obra especializada", diagnostica o secretário.

O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, também acha que o foco da atual política de educação profissional é responder às necessidades do crescimento econômico brasileiro. Mas, de acordo com a sua análise, a estratégia é aumentar o exército industrial de reserva, atendendo à demanda empresarial de forçar os salários e direitos trabalhistas para baixo. Ele explica: a política neoliberal dos anos 1990 jogou milhões de pessoas, jovens inclusive, na pobreza absoluta. Dependentes de programas assistencialistas, nos moldes do Bolsa Família, essa parcela da população deixou inclusive de disputar vagas no mercado de trabalho. "Mas isso não era um problema porque, como se tratava de um período de baixo crescimento econômico, os trabalhadores disponíveis já eram suficientes para manter o salário num patamar mais aviltado", conta. Já em meados dos anos 2000, com o aquecimento da economia, aumenta a inserção no mercado de trabalho e a pressão pela elevação de salários em setores como, por exemplo, a construção civil.

"Fica claro que o exército industrial de reserva não fornece mais um grande número de trabalhadores disponíveis, porque eles são muito mal formados. São famílias que já estão organizadas para estar fora do mercado de trabalho, pessoas que não buscam mais emprego. E aí há uma mudança de foco", explica. Segundo ele, a atuação do Estado passaria a se dar, por um lado, no ensino fundamental, enfatizando um processo de socialização que permitisse a esses jovens se verem como força de trabalho; e, por outro, diretamente na educação profissional, com uma série de políticas de formação para os jovens desses bolsões de pobreza, que incentivasse essas pessoas a voltarem a procurar emprego. "Isso explica parcialmente, inclusive, a expansão de Ifets [Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia], com cursos muito direcionados para ‘gargalos de força de trabalho'. Não é que exista um apagão de mão de obra, mas é preciso que haja uma oferta maior de trabalhadores para que as empresas possam contratar por preços baixos", resume. E exemplifica: "Em Goiás, na cidade de Catalão, há uma montadora da Mitsubishi. Já existia um curso do Senai que preparava força de trabalho para essa montadora, e que dava vazão perfeitamente, já sobrava gente. Posteriormente, o governo federal criou um Ifet em Catalão, também voltado para a Mitsubishi. Hoje há uma derrama de mão de obra na região, permitindo que a empresa funcione com um enorme número de estagiários e, ao mesmo tempo, tenha uma alta rotatividade de trabalhadores, sempre com um patamar salarial muito baixo".

Nacionalmente: público e privado no Pronatec

A necessidade do setor produtivo também determina, em última instância, a crescente participação das instituições privadas de ensino na política de educação profissional brasileira atualmente. Isso porque, de acordo com o secretário da Setec, a CNI calcula que a indústria vai precisar empregar 7,2 milhões novos técnicos até 2015. Para dar conta dessa demanda, a meta do Pronatec - que deve ser ampliada - é formar 3,5 milhões de técnicos até 2014. "Para expandir a oferta no ritmo necessário para fazer frente à demanda da indústria, do serviço, da própria agricultura, é preciso encontrar outros meios que não seja apenas o setor púbico", justifica.

O resultado, segundo Gabriel Grabowski, é que a maioria esmagadora dos cursos do Pronatec está sendo desenvolvida pelo Sistema S. E o investimento tem sido pesado. Para se ter uma ideia, segundo o Portal da Transparência, em 2012, o Senai, serviço do Sistema S ligado exatamente à CNI, foi a instituição sem fins lucrativos que recebeu o maior volume de transferência de recursos do governo federal: R$ 808 milhões, sendo mais de R$ 807 milhões para "apoio à formação profissional e tecnológica". O segundo lugar nesse ranking ficou com o Senac, outra instituição do sistema S vinculada à Confederação do Comércio, que recebeu quase R$ 367 milhões. O professor explica que parte das ações do Pronatec, especialmente o investimento no sistema público, como a expansão da Rede Federal e do Brasil Profissionalizado, são iniciativas anteriores ao programa. O que realmente há de novo, o "Pronatec propriamente dito", diz, é o investimento na oferta de cursos privados, principalmente via Sistema S.

Outras parcerias privadas

Além do protagonismo do Sistema S, o Pronatec conta com outras três formas de parceria público-privada, previstas pela Medida Provisória (MP) 593/2012. Uma consiste na participação tanto de escolas particulares de nível médio quanto de instituições de ensino superior (IES) privadas na oferta de cursos do Pronatec, na modalidade de bolsa-formação, voltada para jovens e trabalhadores que já concluíram o ensino médio. A outra é o Financiamento Estudantil (Fies), que se subdivide em dois formatos. No Fies técnico, o estudante recebe do governo um crédito individual para pagar a mensalidade do curso em uma instituição privada e paga por esse empréstimo juros de 3,4% ao ano.

o que há de comum em todos os casos é a participação das empresas na orientação pedagógica dos cursos técnicos, seja pelo currículo, pelo material educativo ou por outros caminhos

Já o Fies Empresa é, segundo o secretário da Setec, uma forma de incentivar empresas que queiram investir na qualificação dos seus funcionários. Primeiro, a empresa monta, ela própria, um plano de qualificação profissional, em que define não só a área da formação como também carga horária, tempo de duração do curso e o montante que quer gastar, por exemplo. Depois ela procura uma escola privada credenciada - do Sistema S, técnica ou de ensino superior - e, juntas, montam o plano do curso que será oferecido. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) aprova o plano e a escola recebe os recursos necessários na forma de papéis do tesouro, que podem ser usados para abater dívidas ou serem recomprados pelo MEC, numa operação feita com a mediação do Banco do Brasil. Esse dinheiro que foi repassado para a escola é, na verdade, um empréstimo à empresa, com a mesma taxa de juros praticada com o estudante individual no Fies técnico - 3,4% ao ano -, embora com um prazo de carência menor. "É uma taxa de juros bastante vantajosa, negativa, se considerarmos que temos uma inflação analisada superior a 6%", diz o secretário. Segundo Grabowski, essa é, principalmente, uma forma de desonerar as empresas que já desenvolviam programas de treinamento, mas não tinham como abater o investimento que faziam.

Empresas e fundações

Embora o Pronatec seja a grande política nacional, as parcerias público-privadas acontecem também nas experiências estaduais de educação profissional. A presença de fundações empresariais é muito menor na educação profissional do que na educação básica - entre os parceiros e mantenedores do Todos pela Educação, por exemplo, apenas a Fundação Roberto Marinho e a Fundação Vale mantêm ações permanentes nessa modalidade, sendo esta última mais especificamente na integração com a Educação de Jovens e Adultos. No entanto, alguns governos têm investido em iniciativas nesse sentido. Um exemplo é o Projeto Dupla Escola, aquele da cartilha da TKCSA que abre esta matéria. Desenvolvido no Rio de Janeiro, e com perspectivas de ampliação, ele hoje consiste na parceria de três escolas estaduais com empresas. A Oi, pioneira nessa iniciativa, oferece, por meio do projeto Nave, cursos profissionalizantes nas áreas de elaboração de roteiros, multimídia e programação para jogos. O Grupo Pão de Açúcar desenvolve cursos técnicos nas áreas de panificação e laticínios. Já a TKCSA é parceira do governo estadual no curso técnico de administração. Em todos os casos, a educação profissional se dá na modalidade integrada ao ensino médio. Segundo Maria Aparecida Freitas, coordenadora do Dupla Escola, a Secretaria Estadual de Educação é responsável pela base nacional comum, da formação geral, e o "parceiro" entra na parte de educação profissional.

Não existe, no entanto, uma regra única para a participação do parceiro. A Oi e o Pão de Açúcar, por exemplo, pagam o salário dos professores dos cursos técnicos. Na primeira, o prédio onde funciona a escola também é da Oi. Já com a TKCSA, como explica a coordenadora, a parceria "se restringiu à construção do prédio". Ela explica o processo: "A empresa diz até onde pode ir e nós negociamos". E o que a empresa ganha com isso? Na opinião de Maria Aparecida, os principais interesses são promover a própria imagem e garantir a formação de mão de obra qualificada. Nesse ponto, o programa também não deixa claro como se dá a contrapartida que as empresas recebem: a TKCSA, por exemplo, divulga a sua logomarca no prédio da escola pública, no uniforme dos alunos e no material que ela produz. "A escola não tem verba para a merenda. O número de alunos triplicou desde a inauguração e a quantidade de comida se mantém. As crianças ficam com fome", relata um professor que não quer se identificar, denunciando o pouco investimento no Colégio Estadual Erich Walter Heine.

Mas o que há de comum em todos os casos é a participação das empresas na orientação pedagógica dos cursos técnicos, seja pelo currículo, pelo material educativo ou por outros caminhos. De acordo com o professor, representantes da TKCSA estão presentes em uma variedade de reuniões da escola e interferem nas questões pedagógicas também indiretamente, por exemplo, ao participarem da seleção dos professores que, nesse caso, são da rede pública estadual. No que diz respeito especificamente ao conteúdo dos cursos, segundo Maria Aparecida, funciona assim: a empresa elabora uma proposta de currículo, divide os conteúdos pelos anos de estudo e submete à Secretaria de Educação, que aprova e acompanha. "Temos que nos livrar de preconceitos. O professor, antes de ser do parceiro, é professor", defende.

Marise Ramos, professora-pesquisadora da EPSJV, no entanto, diz que essa proximidade das empresas com a educação pública, no caso da educação profissional, fere o caráter "laico" da escola pública. Ela defende que a laicidade precisa ser entendida como independência não apenas em relação à interferência religiosa, mas também em relação a interesses de grupos específicos. "O princípio da escola democrática converge com o da escola laica. E o caráter empresarial de qualquer formação fere esse princípio", diz, concluindo: "Colocar a educação profissional nas mãos de empresários significa submeter essa formação a interesses particulares e antagônicos à classe trabalhadora". Wiria Alcântara, da direção do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe), concorda. Segundo ela, logo que foi lançada a primeira experiência do Dupla Escola, na parceria com a Oi, o sindicato chegou a receber denúncias de um gerenciamento empresarial e autoritário, com grande interferência no trabalho do professor em sala de aula. "Não é escola, é um ambiente de empresa", resume.

Ela chama atenção também para uma situação de conflito de interesses envolvendo o Dupla Escola, a partir de um problema em que o sindicato tem atuado ativamente: as denúncias de danos ambientais e à saúde da população local promovidos pela ação da siderúrgica TKCSA, uma das parceiras do programa. A empresa, cuja regulação que permite o licenciamento ambiental é de responsabilidade da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, responde a ações civis e penais no Ministério Público Estadual. A coordenadora do Dupla Escola reconhece o dilema: "Evidentemente isso é uma coisa que incomoda: temos uma escola verde, que já ganhou inclusive certificado, e existem também as denúncias contra a ThyssenKrupp", diz, mas pondera: "Nosso relacionamento com a TKCSA é em relação ao [colégio] Erick Heine. E eu acho que o poder público precisa investigar e apurar e, se for o caso, cobrar dentro do campo jurídico, administrativo, seja lá de que maneira for, todas as irregularidades que por ventura existam. O papel do poder público é garantir à população uma vida em sociedade de forma harmônica. Se tem alguma empresa que está fugindo dessa proposta, tem que ser investigada e punida, se for o caso". Para Maria Aparecida, não é um problema que o mesmo governo - estadual - que deveria regular as questões que geraram as denúncias mantenha uma parceria com a empresa acusada. "Nós somos da Secretaria de Educação. As secretarias são divididas exatamente por causa da natureza do trabalho que desenvolvem. Se tem um ministério público que vai apurar, ótimo. Ao final da apuração, se a gente perceber que existe um contrassenso, a gente senta e vê o que se pode fazer. Até o momento, a gente fica aguardando as apurações cabíveis", conclui.