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Unidades nas lutas, radicalidade contra o capitalismo

Representantes de diversos movimentos sociais, sindicais, estudantis e do controle social falam sobre suas lutas e convergem para a urgência daunidade no enfrentamento ao capital.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 02/04/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Militantes da saúde, entidades e movimentos sociais no Seminário da 'Frente' Foto: EPSJV/Fiocruz

Do profissional da saúde no México, que vai às ruas por melhores condições de trabalho, ao indígena expulso do território e empurrado para um acampamento na beira de estrada, passando pela Dona Deca, moradora de São Gonçalo, que sofre na pele as consequências da falta de planejamento urbano, indo além para o cotidiano de cada um dos trabalhadores brasileiros. Muitas lutas, mas um só sentido: enfrentar o capital. Essa foi a grande conclusão que o público e os participantes da mesa ‘Lutas e resistências em defesa da saúde e da vida’ chegaram no dia 28, durante o V Seminário Nacional da Frente Contra a Privatização da Saúde no Rio de Janeiro.

Coube a Virgínia Fontes, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), alinhavar tantas perspectivas diferentes: “A classe trabalhadora tem todas as cores, todos os gêneros, mora em muitos bairros, alguns especialmente perversos onde é segredada. Nenhuma luta singular pode ser deixada de lado; em todas, a luta contra o capital tem que estar claríssima e temos que nos redescobrir trabalhadores. Ou enfrentamos cada luta singular na radicalidade que ela exige ou estamos fadados a nos ver divididos pelo capital, bem pagos para gerir a distribuição de migalhas para nossos setores. Cada vez que a gente fingir que não é o que é, eles vão matar pelo que a gente finge e pelo que a gente é”.

Por território, terra e moradia

Sonia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), falou sobre a luta do movimento e as várias ameaças aos direitos dos povos originários. “Hoje somos obrigadas a ouvir a ministra Kátia Abreu [do Meio Ambiente] dizer que os índios desceram para os campos de produção. Ou seja, a gente é quem está chegando, não o capital que chegou às aldeias e expulsou os índios para as cidades e beiras de estrada”. Além da defesa de um modelo de desenvolvimento que avança contra os modos tradicionais de vida, Sonia destacou que o Executivo vem numa ofensiva a favor da privatização da saúde indígena. Em 2014, o Ministério da Saúde anunciou a intenção de enviar um projeto de lei para o Congresso Nacional para aprovar a criação do Instituto de Saúde Indígena (INSI), um serviço social autônomo de direito privado que será responsável por toda a atenção à saúde. Hoje, essa atribuição é da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai/MS), criada em 2010.

Na atual conjuntura do Congresso, a bancada ruralista e os interesses privados ganham espaço e também se voltam contra os indígenas. A ameaça mais premente é o Marco Geral da Biodiversidade (PLC no 2/2015), que tramita no Senado depois de ser aprovado na Câmara dos Deputados no último dia 25. Muito criticado, por atender apenas aos interesses do capital privado, o projeto prevê o uso dos bens comuns naturais e conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento de produtos e experimentos científicos. “Nosso conhecimento está sendo negociado para servir a grandes transnacionais da indústria farmacêutica e de cosméticos”, alertou Sonia. Já a bancada ruralista conseguiu emplacar a volta da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 à pauta legislativa. A PEC visa transferir a demarcação de terras indígenas, reconhecimento de quilombos e criação de unidades de conservação do Executivo para o Legislativo, o que deve, na prática, extinguir novas demarcações. “Quando defendemos nossos territórios, defendemos a natureza da entrada das grandes mineradoras, hidrelétricas, ferrovias, estradas. Muita gente não entende e acha que estamos lutando por privilégio ou que tem muita terra para pouco índio. Como fazer com que a sociedade compreenda que nossa luta pelo território é a luta pela permanência de um modo de vida?”, questionou.  

Grandes empreendimentos e ruralistas também estão na base dos enfrentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Kelli Mafort, da coordenação nacional do MST, falou sobre a mudança qualitativa na luta por reforma agrária frente ao fortalecimento do agronegócio, com o uso intensivo de agrotóxicos e sementes transgênicas, e o avanço das mineradoras e hidrelétricas sobre os territórios. “Há alguns anos, vemos o avanço da apropriação do capital sobre todos os recursos naturais. Nós, que lutamos por terra e território, estamos nos confrontando com aquilo que é estratégico para o capital”.

Em março, o MST mobilizou mais de 30 mil pessoas em 22 estados, tendo recebido destaque a ocupação da empresa FuturaGene que pertence à Suzano Papel e Celulose em Itapetininga (São Paulo). Realizada no Dia Internacional da Mulher, a ação chamou atenção para a possível liberação do plantio do eucalipto transgênico, em análise pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Kelli também destacou a criação da Frente pelas Reformas Populares, considerada um espaço importante para articular as lutas por direitos e afirmou que a leitura da Via Campesina e do MST é que os movimentos sociais devem avançar na unidade. “Não conseguiremos enfrentar nenhuma pauta específica – movimento popular, sindical, social – se não for a partir da construção de uma unidade nas lutas e nas ruas”, disse.

Unidade foi o norte da intervenção de Vitor Guimarães, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST): “Nesse momento em que precisamos tanto de unidade, precisamos entender que nossas lutas não são dissociadas. A gente tem que entender, e isso é muito difícil, que quando os companheiros do MST mobilizam milhares de pessoas, é uma vitória nossa. Quando nós conseguimos fechar as rodovias, é uma vitória do movimento sindical. Quando o movimento sindical faz um ato, é uma vitória dos sem terra. E quando o movimento indígena acampa em frente ao Congresso, é uma vitória de todo o povo brasileiro”.

Com a tarefa de enfrentar a especulação imobiliária e o capital a partir da organização dos trabalhadores das periferias urbanas na luta pela moradia, o MTST, explicou Vitor, acredita na importância de se encarar os problemas concretos e reais da população. Ele trouxe a história da Dona Deca, uma das principais lideranças do Cano Furado, comunidade de São Gonçalo (RJ). “Dona Deca trabalha, tem um bar e mora na beira do valão. Sempre que chove, o valão sobe e inunda a casa dela. Há dois anos, a Deca tem micose no pé. Ela toma remédio e melhora. Chove de novo, a micose volta. Fizemos uma oficina de plantas medicinais, para ensinar a fazer óleo, pomada com as plantas da comunidade. A pomada resolve a micose da Deca, mas quando chover de novo, vai voltar. A nossa luta contra o capital – porque é o capital que faz que ela tenha que morar ali – tem que partir dos problemas concretos e reais das pessoas”.

Por controle social

A presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Maria do Socorro de Souza, anunciou que a15ª Conferência Nacional de Saúde não terá só participação dos representantes dos usuários, trabalhadores e gestores. Serão mil vagas para convidados, como representantes de movimentos sociais, e também deve haver vagas para o livre credenciamento. “Temos que pensar em uma agenda que dialogue com a expectativa da população. Discutir SUS, saúde pública e direitos tem que ser traduzido em questões concretas para o povo brasileiro. É uma forma de não setorizar o debate e não alimentar o corporativismo”, disse.  Socorro também ponderou que, embora a conferência seja alvo de críticas sobre o esgotamento dessa forma de participação, não convém abandonar “um espaço histórico de construção da política de saúde do país”.

Por direitos trabalhistas

Do México, Jose Antonio Galícia relatou as lutas da Aliança dos Trabalhadores da Saúde e Empregados Públicos contra a precarização do trabalho no setor saúde. “Nossa luta é para criar 32 mil novos postos de trabalho com base nas necessidades dos serviços de saúde e contra a privatização da saúde”, afirmou.

Índio, da Intersindical, alertou que no Dia Mundial da Saúde, 7 de abril, a Câmara dos Deputados vai votar o PL 4330/2004, que fará avançar a terceirização. “Nós estamos diante do maior ataque aos direitos trabalhistas dos últimos 70 anos. Dos 45 milhões de trabalhadores com carteira assinada, 12 milhões estão submetidos a contratos precários. São os terceirizados. Essa realidade, que já é uma tragédia, vai se ampliar numa escala que não temos a dimensão ainda”. Índio explicou que o PL 4330 vai permitir a terceirização para todas as atividades econômicas no setor privado e no setor público e destacou que a terceirização além de fragmentar a classe trabalhadora, é comprovadamente pior para a saúde do trabalhador. “A maioria dos terceirizados é mulher, jovem e negra que ganha, na média, 25%  a menos do salário de um contratado direto, embora tenha uma jornada de trabalho maior, sendo que 80% dos acidentes ocorrem com terceirizados e 90% dos trabalhadores que foram resgatados em condições análogas à escravidão são terceirizados. Se o PL for aprovado, vamos descer escada abaixo da barbarização das condições de trabalho”.

Eduardo Serra da Unidade Classista, corrente sindical ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), falou sobre a conjuntura de crise do capital. “O capitalismo com a interligação das empresas, o grau de concentração dos grandes grupos tira do horizonte a possibilidade de pactos capital-trabalho que geram certa igualdade mantendo a taxa de lucro para os capitalistas. Esse bonde já passou. Hoje, nossa tarefa é reconstruir o projeto socialista”, avaliou. Serra destacou a centralidade da disputa de ideias, num cenário em que cada vez mais gente embarca na crença de que a saúde privada é melhor e pode resolver o problema da maioria da população.

Cíntia Santos, da CSP-Conlutas, destacou que frente à polarização entre o governo e a direita, cabe à esquerda apresentar uma alternativa para a classe trabalhadora. Cíntia também lembrou a derrota que representou a aprovação da lei das Organizações Sociais (OSs) no Rio de Janeiro, em 2009. Segundo ela, somente nos hospitais, o estado repassa anualmente R$ 2 bilhões para OSs e o município R$ 1 bi.

Por um movimento estudantil autônomo

Suelen Nunes, da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), e Júlia Vaz, da Executiva Nacional dos Estudantes de Farmácia (Enefar) representaram as lutas do movimento estudantil na universidade. Ambas destacaram que em um cenário onde a União Nacional dos Estudantes (UNE) oferece planos de saúde coletivos para seus associados, a luta pelo SUS é feita pelas executivas nacionais dos cursos de saúde. “O movimento estudantil nacional impossibilita qualquer luta. Dentro do Conselho Nacional de Saúde, a UNE ou está ausente ou está defendendo posições governistas”, criticou Suelen.