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Universalidade, integralidade e equidade contra a política de austeridade

O desafio de consolidar os princípios do SUS em uma conjuntura adversa foi o tema da segunda mesa de debates da 16ª CNS, nesta segunda-feira
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 06/08/2019 09h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

Trinta e três anos depois da conferência que criou as bases do Sistema Único de Saúde, a consolidação dos princípios que ele consagrou – universalidade, equidade e integralidade – continuam sendo um desafio central da saúde no país.  Não é por acaso que este é um dos três eixos que norteiam das discussões da 16ª Conferência Nacional de Saúde, e que serviu de tema para a segunda mesa de debates da conferência, nesta segunda-feira (05). Para isso foram convidadas a farmacêutica, militante da Reforma Sanitária e participante da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, Jussara Cony; Maria do Socorro de Sousa, primeira mulher a presidir o Conselho Nacional de Saúde e atualmente pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília; e o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e representante da Rede Unida, Alcindo Ferla.

Encruzilhada histórica

Jussara Cony alertou para as dificuldades que o momento político do país impõe para o SUS e para a participação popular na construção das políticas públicas, mas destacou que o controle social pode “ficar inerte”. “Temos a certeza de que não podemos nos dar o direito de ficarmos inertes nesse momento. Hoje na investida de desmonte das conquistas históricas da luta do povo brasileiros, estamos em compasso de espera. Mas nosso compasso de espera é de trabalho, de prospecção, para forjar unidades, amplitudes e resistências”, afirmou.

A 16ª CNS ocorre em um momento em que, segundo ela, o afastamento do Estado de suas obrigações constitucionais chega a um nível sem precedentes. “Estamos em uma encruzilhada histórica entre civilização e barbárie. É preciso resgatar as etapas que permearam as conquistas dos dois pilares básicos que sustentam o SUS: o Estado democrático de direito e a Seguridade Social. Ganha centralidade a urgência de forjarmos unidades na nossa luta a partir dessa conferência, estabelecendo o diálogo com as instituições democráticas, com os movimentos sociais, entre outros, pela defesa dos princípios do SUS”, disse Jussara.

Ela defendeu a criação de estratégias de comunicação que possam contribuir para informar a população brasileira sobre a importância do SUS enquanto um projeto nacional de desenvolvimento. “Precisamos reforçar que todo brasileiro usa o SUS. A população precisa saber do significado do SUS para a saúde e para a geração de emprego e renda no país; para a geração de ciência e tecnologia. Temos que defender o SUS enquanto um patrimônio imaterial do povo brasileiro, um direito de todos e um dever do Estado”, reivindicou Jussara, para quem uma “defesa intransigente” do SUS é de suma importância no contexto atual. “Devemos atuar nos territórios como contraponto a hospitalização desnecessária, investindo no nosso cotidiano, como decisão política, no conceito de atenção básica enquanto coordenadora das ações. Não à nova PNAB, que de nova não tem nada”, alertou Jussara, fazendo referência a Política Nacional de Atenção Básica, que foi alterada por uma portaria aprovada em 2016, durante o governo de Michel Temer.

Retomada do SUS enquanto processo civilizatório

Alcindo Ferla, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lembrou da fala de Sergio Arouca, coordenador da 8ª CNS em 1986, quando argumentou que um desafio para a consolidação do SUS é garantir que ele seja não só uma política de Estado, mas um processo civilizatório. “Sergio Arouca, na abertura da 8ª Conferência, defendeu que a Reforma Sanitária é um processo civilizatório, que para se organizar precisa ter dentro dele valores que não podemos perder. O direito à moradia, ao trabalho, à educação, ao meio ambiente que permita uma vida digna, a um sistema político que respeite a livre opinião e a um governo que não submeta seu próprio povo a violência e a perseguição para defender interesses que não são os do povo. Tudo isso permanece completamente atual”, afirmou.

Para Alcindo, consolidar o SUS é defender o processo da Reforma Sanitária que culminou na conferência realizada há 33 anos. “Para ter saúde é importante não estar doente, mas isso não é suficiente. Há mais coisas além da assistência médico-sanitária”, pontuou.

Alcindo alertou para o chamou de processo político de esvaziamento da atenção básica. Para ele, o conceito preconizado pelo SUS tem perdido centralidade em favor do conceito de atenção primária. “Há diferenças marcantes entre os dois do ponto de vista epistemológico e político”, disse o pesquisador da UFRGS, explicando que a atenção básica foi adotada pelo SUS como contraponto a uma tendência internacional de expansão da atenção primária em saúde a partir da Conferência de Alma-Ata, em 1978. “Nela alguns países resistiram à ideia de considerar a saúde como direito humano e dever do Estado, devido principalmente a projeções de custos do sistema norteamericano. O consenso possível foi o da expansão das ações de menor custo, a partir da ideia de atenção primaria em saúde. Mas essa ideia foi construída a partir de uma premissa racionalizadora, contrária ao conceito de integralidade da atenção básica”, apontou Alcindo. Ainda que o SUS tenha consagrado a atenção básica como modelo, ela foi sendo minada, perdendo parte de seu escopo original. “A redução do número de ACS nas equipes de Saúde da Família na nova PNAB é um exemplo, assim como a mudança recente no financiamento da atenção básica, com base na população cadastrada”, destacou.

Nesse sentido, o pesquisador alertou para outra distinção conceitual importante hoje para a consolidação do SUS, que é entre cobertura universal de saúde, que vem ganhando centralidade em âmbito global a partir da Organização Mundial da Saúde, e o de acesso universal. “A cobertura universal pode ser feita através de um seguro privado de saúde, quebrando a ideia do direito e da equidade. Por outro lado, acesso universal significa que os diferentes níveis de atenção, de densidade tecnológica dentro de um sistema de saúde, são direitos das pessoas, são indissociáveis da atenção básica”, ressaltou.

Por fim, o pesquisador afirmou acreditar na retomada do processo civilizatório no Brasil, e no papel da saúde para produzi-lo. “Mas para isso se consolidar vamos precisar de muita luta e resistência”, ressaltou, para em seguida concluir sua apresentação parafraseando um poema de Mario Quintana. “Eles que estão atravancando o SUS, eles passarão. Nós que estamos aqui para consolidar e fortalecer o SUS, nós passarinho”.

Sem democracia não há saúde

Maria do Socorro de Sousa, ex-presidente do CNS e pesquisadora da Fiocruz Brasília, comemorou a realização da 16ª Conferência em uma conjuntura tão adversa. “Conseguimos fazer uma conferência à altura do desafio que nos foi colocado. Eu não vi uma conferência esvaziada. Eu vi delegados e delegadas, vi juventude, trabalhadores recém-ingressos no SUS, gente disputando o espaço nessa arena para mandar a mensagem principal de dizer que democracia se faz ouvindo e respeitando o povo”, destacou, elogiando a escolha de retomar o tema da 8ª Conferência Nacional de Saúde. “A gente tem muita proposta para defender o SUS e a saúde pública, mas mais do que reiterar todas elas temos que recuperar valores éticos e políticos, de cidadania, porque essa foi a grande capacidade da 8ª CNS, que teve a capacidade de juntar quem produzia saúde, produzia conhecimento com quem fazia as lutas sociais nas favelas, nos sindicatos, nas comunidades, nas igrejas. Foi o que deu legitimidade e credibilidade a conferência”, resgatou.

Sozinho, continuou Maria do Socorro, o SUS não vai ter condição de melhorar a condição de vida das pessoas. “O que melhora é a nossa capacidade de dizer para o Estado que ele tem que garantir distribuição de renda. Disputar poder, a favor da classe trabalhadora”, apontou, complementando: “O contexto é complexo, e precisa de muita reflexão e análise, mas temos ainda muita capacidade de resistência de fazer o SUS ser política de redistribuição de renda, de garantia da qualidade de vida, de cidadania”. 

Segundo ela, a 16ª CNS deve produzir um documento com mais de 300 propostas, com contribuições das mais diversas frentes. “Não faltam propostas. Mas a grande questão é: qual é a condição política de que isso não fique só na intencionalidade ou que fique apenas registrado nos anais das conferências? Corremos o risco de não termos uma 17ª CNS se o pensamento ultra neoliberal prevalecer. Não nos iludamos”, alertou a pesquisadora da Fiocruz Brasília, concluindo sua apresentação relembrando o tema da conferência. “Em 2019, para ter saúde tem que lutar pela democracia. Tem que ter a capacidade de ter orgulho de ser povo brasileiro”.