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Realidade mascarada?

Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 02/09/2019 11h01 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

De acordo com a edição de 2016 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE no ano seguinte, cerca de 1,8 milhão de pessoas entre cinco e 17 anos trabalhavam no Brasil naquele ano – o equivalente a 4,6% do total da população nessa faixa etária. Desse universo, 54,4% (998 mil) estavam em situação de trabalho infantil.

Para o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), os números reais são bem maiores, na ordem dos 2,5 milhões. A contestação acontece por que o IBGE teria mudado a metodologia na Pnad 2016, passando a usar a metodologia da Pnad Contínua, excluindo das contas crianças e adolescentes que trabalham para o próprio consumo – que foi de 716 mil.

“A partir dos dados da Pnad Contínua, o IBGE divulgou que, em 2016, cerca de 1,8 milhões de crianças e adolescentes exerceram alguma forma de trabalho. Acrescidos daqueles que exerceram atividades na produção para próprio consumo ou na construção para próprio uso, o montante de crianças e adolescentes trabalhadoras aumenta para aproximados 2,5 milhões de pessoas”, calcula o estudo ‘O trabalho infantil no Brasil: uma leitura a partir da Pnad Contínua (2016)’, elaborado pelos colaboradores do FNPETI Júnior César Dias e Guilherme Silva Araújo.

Para a procuradora do Ministério Público do TrabalhoPatrícia Sanfelici, os números da Pnad 2016 não retratam o que de fato acontece no país e, por este motivo, confirma também usar como referência a edição de 2015 da pesquisa. “Se somarmos os dados do trabalho infantil explorado por terceiros com os do trabalho infantil para o próprio consumo ou próprio uso, chegaremos a 2,5 milhões, mais ou menos, número próximo ao que foi identificado em 2015”, elucida. “Portanto, não houve redução expressiva do trabalho infantil de 2015 para 2016, apenas uma mudança de metodologia para seguir orientações internacionais estatísticas, proposta pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)”, explica, anunciando que, em outubro deste ano, devem sair dados mais precisos, “com essas considerações mais esclarecidas”.

“Quando estudamos a fundo as formas de produção das famílias, veremos que não existe mais produção exclusivamente voltada ao próprio consumo”, critica Soraya Conde, pesquisadora da UFSC. Segundo a especialista, todo mundo, hoje em dia, trabalha para o mercado, direta ou indiretamente. “Você é filha de pequenos proprietários agrícolas, que produz fumo, frango ou qualquer outro produto. Seus pais vão para a roça trabalhar. Você fica em casa, porque trabalho na agricultura faz parte da lista das piores formas de atividade laboral na infância e na adolescência. Mas no domicílio, você fica cozinhando, lavando, passando roupa, fazendo todas as tarefas que os seus pais necessitam, mas que não dão conta de realizar. Você, neste caso, não está sendo diretamente explorado por terceiros, no contexto da produção da mais-valia. Mas, a realização de atividades no interior da casa é fundamental para que os seus pais consigam trabalhar integralmente na pequena empresa agrícola familiar, que está submetida à lógica de mercado, ou seja, ao sentido do trabalho explorado por terceiros”, exemplifica. E finaliza: “Na prática, parte das crianças e dos adolescentes submetidos ao trabalho infantil não está ligada diretamente à produção de um produto, mas sua atuação em atividades domésticas, caracterizada muitas vezes como uma ‘ajuda em casa’, é essencial para que a produção de uma mercadoria que vai ser comercializada no mercado se realize”.

O fato é que, independente nos números, criança e adolescente que trabalham estão comumente fora da escola. Cenário semelhante a 2015, a Pnad 2016 estima que 18,6% das crianças de cinco a 17 anos ocupadas estavam longe dos espaços escolares. São quase 335 mil crianças e adolescentes frente a 1,4 milhão que estavam estudando. E esta situação de ocupação tende a interferir mais na escolarização das crianças mais velhas: dos meninos e meninas trabalhadoras de cinco a 13 anos, 98,4% estavam na escola. Já no grupo entre 14 e 17 anos, apenas 79,5% estudavam.

O tipo de atividade também variou conforme a idade. Quem tinha entre cinco e 13 anos de idade, no levantamento de 2016, trabalhava principalmente na agricultura, que concentrou 47,6%, ou 90.440. Já para os ocupados de 14 a 17 anos, a principal atividade identificada foi o comércio, concentrando 27,2%, ou 219.776.

Além disso, enquanto 66% do grupo de 14 a 17 estavam ocupados na condição de empregado, 73% das crianças de cinco a 13 anos eram trabalhadores familiares auxiliares, em situação análoga ao exemplo dado por Soraya Conde. Neste caso, foram encontradas 138.700 adolescentes.

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