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Entrevista: 
Adriana Prestes de Menezes Ferreira

‘São profissionais que vivem imersos em um processo de adoecimento’

‘Na corrida contra o tempo e na luta pela vida: o sentido do trabalho e suas implicações na saúde dos técnicos de enfermagem do Samu de Porto Velho (RO)’. Esse foi o título da dissertação de Adriana Prestes de Menezes Ferreira, egressa do Mestrado Profissional em Educação em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Nessa entrevista, ela conta como buscou entender o contexto desses profissionais
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 03/10/2019 12h56 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

‘Na corrida contra o tempo e na luta pela vida: o sentido do trabalho e suas implicações na saúde dos técnicos de enfermagem do Samu de Porto Velho (RO)’. Esse foi o título da dissertação de Adriana Prestes de Menezes Ferreira, egressa do Mestrado Profissional em Educação em Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Em entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz, a professora do Centro de Educação Técnico Profissional na Área de Saúde (Cetas), formada em psicologia, conta como buscou entender o contexto e o processo de trabalho dos técnicos em enfermagem que atuam no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o Samu, revelando como se dão as vivências e a relação entre satisfação e sofrimento desses profissionais. Seu trabalho de pesquisa acaba por chamar atenção para o processo de formação do trabalhador que atua no setor da urgência e emergência do Sistema Único de Saúde (SUS), do qual o Samu faz parte. Na prática, segundo a professora, a atividade é marcada por situações imprevisíveis e por dificuldades quanto à organização do serviço e às condições de trabalho, incluindo ausência de manutenção dos veículos, baixos salários, escassez de materiais e recursos humanos e sobrecarga de trabalho, o que exigiria maior atenção ao cuidado com a saúde desse profissional. Defendida no fim de 2018, o trabalho de Ferreira ajuda a pensar estratégias de acolhimento da demanda de saúde física e psicológica desses trabalhadores, de modo a minimizar questões relativas ao sofrimento e a prevenção do adoecimento.

Qual foi o objetivo do seu trabalho de pesquisa?

Meu primeiro objetivo foi conhecer o perfil do técnico de enfermagem que atuava no Samu e, consequentemente, compreender o sentido e o contexto do trabalho desenvolvido por esses profissionais. E ainda como o processo de formação desse trabalhador impacta sobre as atividades laborais. O estudo utilizou como referencial teórico a Psicodinâmica do Trabalho, de Christopher Dejours, tendo como foco central a análise do indivíduo em relação ao sentido do trabalho e os aspectos relativos as vivências de prazer e sofrimento.

Por que estudar a saúde dos técnicos de enfermagem do Samu?

Esse interesse surgiu pelo contato que tive com esses profissionais atuando como psicóloga na Policlínica Oswaldo Cruz, nosso centro de referência de especialidades em Porto Velho, e também como docente dos cursos de qualificação  do Cetas [Centro de Educação Técnico Profissional na Área de Saúde]. O contato com esses profissionais possibilitou que eu conhecesse a dinâmica, a rotina de trabalho vivenciada por eles. Eu me deparei com muitas queixas quanto à organização, ao processo de trabalho, às condições insalubres, às dificuldades de relacionamento interpessoal e com a equipe, à escassez de material e aos baixos salários. Situações que levam ao desgaste, ao sofrimento, a adoecimentos físico e psicológico do trabalhador. Muitas dessas queixas surgiram de profissionais que passaram pelo Cetas como alunos dos cursos de qualificação. Isso fez com que eu tentasse buscar entender como é que eles se organizavam no seu cotidiano de trabalho.

Quem são os profissionais técnicos de enfermagem que atuam no Samu de Porto Velho?
O grupo é formado majoritariamente por mulheres, com idade entre 31 e 50 anos. São casadas, com dois filhos, em média, têm nível técnico profissionalizante – algumas, nível superior completo. Eles atuam há mais de seis anos no Samu e na ambulância de suporte básico, que é o campo de atuação do técnico de enfermagem dentro do Samu. O regime de contratação desses profissionais é estatutário, com 30 horas semanais. A maioria também apresentou outro vínculo de trabalho, como forma de aumentar a renda.

Qual a importância desse profissional? E como o técnico de enfermagem se percebe na equipe de saúde do Samu?
Eles compõem a maior parte da força de trabalho do Samu. São responsáveis pela realização de intervenções de suporte básico de vida, ou seja, aquelas que não têm risco de vida imediato. Suas atividades compreendem um conjunto de condutas técnicas voltadas à vítima de acidente ou outro tipo de agravo clínico. Eles realizam medidas de suporte, como abordagem inicial da vítima, cuidados básicos de ventilação, circulação e mobilização, com o objetivo de estabilizar o estado de saúde do paciente, de forma que ele possa ser transportado com segurança e rapidez, sem risco. Nos casos mais graves, em situações em que a unidade de suporte básico é chamada, eles identificam a gravidade do caso, são responsáveis por iniciar os primeiros socorros até a chegada da unidade de suporte avançado de vida, que é formada pelo médico e o enfermeiro, com todo o aparato técnico da ambulância.

O que sua pesquisa revela quanto ao cotidiano desse trabalhador?
Eu me deparei com profissionais que demonstraram sofrimento e adoecimento em relação ao trabalho. Eu observei a ausência de ações mais concretas voltadas à saúde no âmbito institucional, que refletem as contradições do processo formativo. Este, por sua vez, dá maior ênfase ao saber técnico, pouco contempla o cuidado integral à saúde do trabalhador. Isso é muito grave, pois se trata de profissionais que lidam com as situações imprevisíveis, entre a vida e a morte, sem falar que estão expostos a vários riscos ocupacionais. A isso se somam situações desgastantes, pressões rígidas da organização do trabalho, riscos ergonômicos e sobrecarga de trabalho, desencadeando problemas de saúde mental ou física. São profissionais que vivem imersos em um processo de adoecimento. A ausência de ações preventivas nessa área, o fato de não haver um setor responsável por acolher as demandas desses profissionais faz com que esse processo de adoecimento e de sofrimento se perpetue. Para se ter uma ideia, dos 29 técnicos que participaram do estudo, 53% relataram sofrer há algum tempo algum tipo de lesão ou distúrbio de ordem física e 63% apresentaram já ter alterações emocionais, desde desmotivação, tristeza e medo até sentimento de impotência.

É possível garantir saúde ao profissional técnico de enfermagem que atua no Samu? Como?
É preciso olhar com maior atenção e de forma mais integral para a saúde desse trabalhador, assegurando a ele apoio e acolhimento. Isso poderia amenizar o risco de sofrimento e adoecimento.  Na pesquisa, eu pergunto a eles como é que se percebem e o que poderia ser feito para que esse cotidiano fosse transformado. Eles relataram que outros profissionais de saúde poderiam contribuir para minimizar o impacto do trabalho. E citaram como proposta a inserção no cuidado dos trabalhadores de psicólogos, fisioterapeutas e educadores físicos. Acredito que seria uma boa alternativa para minimizar as dificuldades que os técnicos em enfermagem do Samu enfrentam em seu dia a dia.