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“A esperança de mudança está na coragem do povo”

Dom Tomás Balduíno profere aula inaugural do ano letivo na EPSJV


 Dom Tomás Balduíno profere aula inaugural do ano letivo na EPSJV



 



Compreender que a luta pela saúde deve estar presente nos territórios, em contato com a população e a realidade local; entender que o projeto do Sistema Único de Saúde só se realizará com a participação dos segmentos historicamente excluídos e oprimidos na formação social brasileira; nesse contexto, destacar a produção de conhecimento, a formulação de políticas públicas e a luta em favor dos direitos das populações camponesas e indígenas como necessidades para a implementação de um projeto de saúde pública e de sociedade justos.



 



Esses foram alguns dos princípios que sustentaram a escolha do tema para a aula inaugural do ano letivo na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Com o tema ‘Gênese e Evolução das Organizações Indígenas e Camponesas no Brasil’, a aula, que aconteceu no último dia 16, foi proferida por Dom Tomás Balduíno, no Auditório Joaquim Alberto Cardoso de Melo da EPSJV. Bispo-emérito de Goiás, Dom Tomás participou ativamente, durante a ditadura civil-militar, da criação de organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e é uma referência nessa área. Filósofo e teólogo, ele é Doutor honoris causa pela Universidade Católica de Goiás.



 



Urbanização e sociabilidade do campo



 



Destacando o papel protagonista que os movimentos do campo desempenharam em diferentes momentos da história e em todo o mundo, Dom Tomás Balduíno lembrou que, mesmo com correlações de força muitas vezes desfavoráveis, o ‘mundo rural’ construiu “uma linda história de luta e enfrentamento à opressão e à desigualdade”. O bispo-emérito lembrou que há uma campanha ideológica muito forte, com participação ativa das grandes corporações de mídia, que subestima as demandas e estudos do campo no Brasil contemporâneo: “O que ouvimos nos grandes jornais é que esses são temas ultrapassados, e que demandas como a reforma agrária são coisa do passado”. Mas, segundo ele, dentro da inspiração de luta desses segmentos, historicamente excluídos pelo desenvolvimento das sociedades de classes, há valores e princípios muito positivos, que não são apagados pelas forças conservadoras.



 



Dom Tomás Balduíno lembrou que o forte processo de urbanização por que passou a sociedade inverteu a concentração de pessoas na cidade e no campo. “De um cenário geral com 80% das pessoas morando no campo e 20% nas cidades, passamos a uma realidade que conta com 80% de concentração nas cidades e apenas 20% no campo”, destacou, lembrando que os problemas trazidos pela urbanização tal como foi realizada são preocupantes: inchaço das grandes cidades, queda na qualidade de vida, desemprego, aumento do número de carros, aumento da poluição urbana e outros temas são, segundo ele, alguns dos elementos que configuram esse processo.



 



Ele também destacou que esse processo é marcado pela perda de valores e princípios típicos da sociabilidade construída no campo, que caracterizam o que chamou de ‘cultura rural’. Para Dom Tomás, essa cultura é caracterizada por laços de companheirismo e comunhão que precisam ser resgatados: “Morei por onze anos em Conceição do Araguaia, no Pará, e convivi com populações indígenas nas afluentes do Rio Tocantins. Na língua dessas populações, o verbo ‘ter’ não existe. A noção de propriedade não existe, e eles vivem muito bem assim. A urbanização e a perda de valores como esses são dados reais, mas é possível reverter isso e fazer com que a cultura rural se torne hegemônica na cultura nacional. E isso só será feito pela pujança dos movimentos sociais indígenas e camponeses”, disse, lembrando ainda que mesmo nas cidades esse tipo de sociabilidade ainda resiste: “Nas periferias e nas áreas de base ainda permanecem laços e relações próprias da sociabilidade rural. O vínculo com rua e o bairro se assemelha, por exemplo, ao vínculo com a terra ”.



 



Origens: colonização e apropriação da terra



 



Para tratar do surgimento das organizações desses segmentos na sociedade brasileira, Dom Tomás abordou os conflitos gerados no período do Brasil Colônia. A escravização das populações indígenas que acompanhou a colonização inaugurou, segundo ele, uma história de desigualdade. “Essas populações viviam construindo uma relação mais profunda com a terra, através da utopia da ‘terra sem males’. Mas a terra que habitavam começou a se tornar inviável. Aparecem, então, os conflitos como forma de resistir à escravização”, disse, citando como exemplos a Confederação dos Tamoios, criada como um pólo de resistência indígena na metade do século XVI, e as lutas organizadas através da figura do índio Ajuricaba, no Amazonas do século XVIII. 



 



Ele destacou também as lutas travadas pela população negra, seqüestrada na África e escravizada nas áreas rurais no Brasil. “O Quilombo dos Palmares durou quase 100 anos e foi uma terra de partilha, da comunhão fraterna e da produção comum. Um grande símbolo de libertação e um pólo de atração para os negros escravizados”, lembrou. Outro exemplo histórico de luta e resistência no campo lembrado por Dom Tomás Balduíno foi a construção de Canudos, já no final do século XIX, no interior da Bahia: “Foi uma realização muito linda em busca de um relacionamento entre irmãos, diferente, em que havia acolhimento. Através da figura de Antônio Conselheiro, se buscava uma cidade alternativa”, explicou.



 



Na raiz de todos esses conflitos e tensões, segundo Dom Tomás, está o problema do acesso à terra. Disputada como um meio de produção e fonte de riqueza, a terra foi historicamente usurpada das populações tradicionais e apropriada pelas classes dominantes. “Um exemplo é a aprovação da Lei de Terras, em 1850 – antes da abolição da escravatura, portanto. Ela definiu que o direito à terra só seria possível por compra ou herança, o que excluía os negros. A terra se tornou privatizada e os conflitos começaram a recrudescer, atingindo as populações camponesas em geral”, detalhou.



 



Lutas contemporâneas



 



A concentração fundiária, portanto, estendeu-se como um problema ao longo da história do Brasil. Dom Tomás lembrou, nesse sentido, que o país é hoje o segundo na lista dos que contém mais latifúndios no mundo. “Vivemos em um país em que 1% dos proprietários tem 50% das terras; e 50% dos que têm terras possuem apenas 1% de sua extensão total”, denunciou. É nesse esteira, da luta pelo direito à terra, que se organizam os movimentos indígenas e camponeses contemporâneos. Dom Tomás lembrou o surgimento das Ligas Camponesas, refundadas nos anos 1950 – lembrando as ligas organizadas nos anos 1930 com influência do Partido Comunista –, que chegaram a ter 10 mil associados e grande influência no cenário político nacional. “Elas foram desestruturadas pelo golpe militar de 1964, que tinha como um de seus principais objetivos justamente a desarticulação dos movimentos rurais. Havia um temor, por parte das elites, de que o comunismo viria, no Brasil, através das lutas no campo”.



 



Também foi destacado o papel da organização das Trombas de Formoso: na década de 1950, em Goiás, essas organizações lutavam contra a grilagem (um mecanismo de obtenção de falsos documentos de propriedades de terra), que expulsava famílias de terras públicas nas quais viviam há décadas. “Houve organização e mobilização dos posseiros [os que viviam nas terras], com formação política: eles estudavam seus direitos e formas de organização. Isso acabou, também, com pressão da justiça e o golpe militar”, contou Dom Tomás, lembrando que nesse contexto surgiu a CPT: “A Comissão surgiu em meio aos conflitos entre posseiros e grileiros. Os sindicatos e organizações camponesas eram duramente reprimidos pela ditadura militar, e a perseguição aos membros da comunidade incomodou os bispos. Em 1975, agentes de pastorais e bispos se reuniram em Goiânia, e foi criada a CPT”.



 



Ele destaca que isso foi parte de um processo maior dentro da própria Igreja Católica, que havia realizado a 2ª Conferência Episcopal latino-americana de Medellín (Colômbia) em 1968. O encontro teve como resolução a abertura da Igreja e a opção prioritária pelos oprimidos, pobres e perseguidos. “Foi uma mudança considerável: o pobre deixou de ser considerado como objeto da ação de caridade e passou a ser considerado sujeito, autor e destinatário da sua própria caminhada”, destacou Dom Tomás. Ele explicou que foi essa mesma perspectiva que orientou a criação do Cimi, com uma proposta de autonomia na relação com os indígenas que rompia com a lógica das antigas missões – voltadas para a doutrinação religiosa. “A base do projeto era a criação de assembléias de chefes indígenas, dos meios e possibilidades para os índios se reunirem, conversarem entre si e proporem suas próprias soluções”, disse.



 



Dom Tomás ressaltou que essa é a origem das organizações que hoje atuam no campo, cujo principal expoente é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. “O MST é um referencial. Não é único no campo, mas é mais forte e notável. E traz princípios importantes, como o de direção coletiva, divisão de tarefas, disciplina, e estudo. Defende a luta pela terra, a reforma agrária e consegue uma vinculação com as massas, o que muitos partidos políticos perderam”. Avaliando que hoje vivemos em um período de descenso das lutas no campo e em toda a sociedade, Dom Tomás Balduíno encerrou sua fala ressaltando a esperança nas mobilizações populares: “A esperança está na coragem do povo, mesmo que não seja nas instituições organizadas. Esperamos que esteja presente no coração das massas populares a nossa semente para a construção do Brasil que queremos. As organizações populares vão ter uma seqüência e continuarão a partir da experiência do povo”, concluiu.



 



O evento foi encerrado com um coquetel de lançamentos dos livros 'A formação dos trabalhadores técnicos em saúde no Brasil e no Mercosul' (Marcela Pronko, Anamaria Corbo,  Anakeila Stauffer, Julio Cesar Lima e Renata Reis), 'Conceitos e métodos para a formação profissional em laboratórios de saúde - vol. 2' (Etelcia Molinaro, Luzia Caputo e Regina Amendoeira - org.), 'Iniciação científica na educação profissional em saúde: articulando trabalho, ciência e cultura - vol. 6' (Maurício Monken e André Dantas - org.), 'Juventude e iniciação científica: políticas públicas para o ensino médio' (Cristina Araripe, Simone Peres, Cristiana Braga e Maria Lúcia Cardoso) e 'Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história' (Carlos Pontes e Ialê Falleiros - org.), editados pela EPSJV. Além disso, os presentes puderam conferir, no pátio da EPSJV, a exposição 'Na corda bamba de sombrinha: a saúde no fio da história'.