Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Alunos da Escola Politécnica debatem sobre segurança pública

Deputado estadual Marcelo Freixo participou do encontro, que faz parte das atividades em comemoração aos 25 anos da Escola.
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 14/05/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


 Criminalização da pobreza, Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), dignidade humana, Projeto Ficha Limpa, sistema penitenciário, trabalho escravo, crime organizado e segurança pública, entre outros temas, foram debatidos por alunos e professores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) com o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). O parlamentar esteve no dia 13 de maio, na EPSJV, para participar dos colóquios de ciência e política, que integram as atividades em comemoração aos 25 anos da Escola. “O debate sobre a criminalização não pode ser separado do debate da criminalização da pobreza. Está naturalizado que o crime está na favela. Existe crime lá, mas não há mais de 1% dos moradores envolvidos com isso. O Estado precisa criminalizar os setores pobres para colocar contra eles os sistemas de proteção. A repressão não é sobre o crime, é sobre a favela”, afirmou Freixo.



Destacando a necessidade de se lembrar o passado para entender a sociedade atual, ele explicou que, hoje, os pobres, moradores de favelas, são os inimigos públicos que o sistema precisa eliminar. Segundo ele, que traçou um panorama histórico desde a ditadura militar, a partir da década de 1990, a força do neoliberalismo fez com que se produzisse não mais um ‘exército de reservas’, como em outras fases do capitalismo, mas uma massa de pessoas que não servem mais. E que, portanto, podem ser eliminadas. “A partir de 1985, começou a se debater que outra ordem era necessária. Na década de 1990, com o processo de acumulação de riquezas da economia, o desemprego se tornou estruturante, e se criou uma massa de pessoas que não servem mais e que precisam ser destituídas de existência. Essas pessoas, se não estão na lógica do mercado, não são consumidores e o Estado usa as forças de proteção contra elas para manter a ordem estabelecida”, explicou.



As estratégias para lidar com esse contingente que, segundo o deputado, não cabem nem se adequam mais ao sistema, são, entre outras, a produção da invisibilidade dessas pessoas, desprovidas de dignidade humana, e a criminalização da pobreza. “O debate sobre a Segurança Pública também é um debate sobre a dignidade humana. Hoje, a pessoa não tem que cometer um crime para ser considerada violenta, basta ser pobre. O inimigo público do Estado é quem sobrou da sociedade de mercado”, disse.



E essa criminalização, segundo ele, acontece em diversos aspectos. “É preciso criminalizar, inclusive, organizações como as associações de moradores e os movimentos culturais. Criminalizaram o funk porque é uma linguagem da favela, do pobre. Para o Estado, não se pode imaginar que a favela tenha sua própria linguagem. Por isso, mesmo as favelas pacificadas não têm baile funk”, exemplificou, informando que  a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) tem organizado Rodas de Funk, que funcionam como espaço de debate político sobre o funk e outros temas nas favelas. “Eles cantam os refrões dos funks, sem proibidão, sem apologia, para debater a temática daquele lugar. Existe um funk que produz isso”, defendeu.



Veja, abaixo, alguns dos principais trechos da palestra de Marcelo Freixo e do debate que se seguiu com os alunos da EPSJV.



Forças de proteção

“As forças de proteção do Estado (justiça criminal, sistema prisional, a polícia) têm uma relação com a ordem estabelecida. Isso acontece desde a República, passando pela Era Vargas, a ditadura militar, até os dias de hoje. Na ditadura, a produção do inimigo interno (os subversivos, os estudantes, os comunistas) era necessária e era necessário que fossem reconhecidos não como inimigos do governo, mas como inimigos do povo, para legitimar as ações do esquema de proteção da ordem do Estado contra eles, como a tortura, a perseguição e as mortes”.



Dignidade humana e invisibilidade

“O Globo publicou uma matéria com o título: “Madrugada em claro ao som de tiros e explosões” e o subtítulo: “Vizinhos do morro não conseguem dormir e têm medo de sair à rua”. Quer dizer: no morro, está tudo tranquilo, né? Ou seja, o morro não tem problema, ele é o problema. O morro não é importante, porque ele é invisível nesse aspecto. Os vizinhos, que não moram no morro, é que importam”.



“Mais um exemplo de invisibilidade é a matéria, também do O Globo, “Em Ipanema, a vida no bueiro”, com o subtítulo “Banhistas são surpreendidos por menores que saem drogados dos buracos do calçadão“. A matéria inteira fala do incômodo que é para os banhistas ir a praia e ver os garotos que saem dos bueiros. A questão é: se eles ficassem lá dentro, tudo bem, não haveria problema. A lógica da matéria é que os garotos não têm problema, mas sim que representam um problema. Ninguém se preocupa em saber o nome dos garotos, de onde eles vêem. Quem são? Qual a sua história? Eles não nasceram no bueiro. A eliminação da dignidade é a eliminação da identidade”.



Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)

“A UPP é um bom programa policial, porque ocupa e não mata, mas não é um bom programa de segurança pública porque é muito próxima da ideia fascista de policialização. A lógica da UPP é policialesca, não contribui para a autonomia e legitimidade dos moradores sobre seus direitos. Em nenhum lugar que a UPP foi instalada houve uma reunião com a comunidade antes da instalação, só depois da ocupação. Não existe pacificação possível sem autonomia e dignidade das pessoas. Do contrário, não é paz, é controle. No Morro Dona Marta, por exemplo, que já está pacificado há mais de um ano, ainda não há um posto de saúde, porque não é prioridade para o Estado, mas é para os moradores”.



“Claro que a UPP é melhor que o tráfico, mas é preciso discutir a razão e a lógica da UPP. É melhor a polícia que ocupa, do que a que mata, mas também é preciso dar autonomia, oferecer educação, saúde, para essas pessoas”.



“Se olharmos o mapa das UPPs, vamos ver que elas estão em todo o corredor da Zona Sul, na Cidade de Deus (no corredor imobiliário da Barra), no entorno do Maracanã (visando a Copa do Mundo de futebol) e a Zona Portuária. Porque são os lugares que mais interessam economicamente”.



Trabalho escravo

“O estado do Rio de Janeiro, segundo dados de 2009 do Ministério do Trabalho, é o que tem a maior concentração de trabalhadores escravos do Brasil. A cidade de Campos dos Goytacazes, que tem forte presença do agronegócio, é a que tem mais trabalhadores escravos no estado, principalmente por causa da presença das usinas de açúcar e álcool, operadas por grandes grupos industriais como o J Pessoa, um dos grandes financiadores da campanha do Lula, e a rede Othon. Fizemos uma audiência pública, na Câmara Municipal de Campos, sobre o trabalho escravo e participaram 400 trabalhadores, mas nenhum vereador”.



População carcerária

“A população carcerária do Brasil explodiu na década de 1990. Passou de 148 mil presos em 1995 para 400 mil em 2006, um crescimento de 170%. Mesmo assim, o que mais escutamos é que o Brasil é o país da impunidade. Nós temos a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia”.



“A população carcerária do Brasil cresce 10% ao ano, enquanto a população total cresce 1,4%. Temos um problema a ser resolvido porque a proporção de presos em relação ao restante da população fica cada vez maior. Fazendo uma conta lógica, nesse ritmo, em 2083, 100% da população estará presa”.



“O sistema prisional é o que melhor funciona no Brasil. Porque sua principal função é deter pobres e ele faz isso com excelência. Quem disse que o sistema tem a função de ressocializar? Nunca teve. A prisão é uma pena de morte social. E é um lugar muito caro para tornar as pessoas piores. O Estado deveria investir mais nas penas alternativas, mas o poder judiciário é conservador e mantém presas as pessoas que estão afastadas da sociedade de consumo”.



“A reincidência ao crime é muito grande no mundo inteiro e também no Brasil. No Rio de Janeiro, é de 70%, mas na Suíça, é de 60%. Isso é um desafio mundial para o sistema penitenciário. No meu trabalho nas prisões, já encontrei vários presos que foram e voltaram. Muitos voltam em situação muito difícil porque quando foram presos pela primeira vez, foram jogados para uma facção e quando foram soltos não podiam voltar para o lugar onde moravam porque havia sido tomado por outra facção. E aí, quando são presos de novo, não têm para onde ir porque não são de facção nenhuma. Isso mostra como o crime, esse do varejo, não tem nada de organizado”.



Crime organizado

“O que acontece nas cadeias é o seguinte. Quando um preso chega na Polinter, a primeira pergunta é: “Qual sua facção?”. Aí o cara fala: “Não tenho facção”. Então eles perguntam: “Mas você mora onde?”. O cara diz que mora em tal lugar e eles dizem: “Esse lugar é da facção tal, então você vai pra cela dessa facção”. A partir daí, o preso só pode cumprir pena nas prisões daquela facção. E quem organiza isso é o Estado porque é mais fácil organizar o crime pela lógica do crime. Essa lógica é a perpetuação da pobreza também dentro do Estado. O crime organizado não está no morro, está dentro do Estado porque é o Estado que organiza a sociedade. A milícia é crime organizado porque é dentro do Estado”.



“O comércio de drogas e armas do crime organizado é um dos mais lucrativos do mundo. É um dinheiro bem vindo para a ordem econômica e importantíssimo para a economia mundial. Só fazem apreensão de drogas e armas nas favelas, não fazem nos portos e aeroportos. Porque não se trata de um enfrentamento do crime, e sim da favela. A lógica do tráfico é bem vinda na lógica econômica neoliberal”.



Segurança Pública

“A polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata no mundo. Segundo os dados oficiais, são 3,4 pessoas mortas por dia e as principais vítimas são pobres, negros, jovens, de baixa escolaridade, moradores de periferia e favelas. Para se ter uma idéia, de 2000 a 2006, foram mortos 729 jovens por armas de fogo no conflito Israel X Palestina. No mesmo período, na cidade do Rio de Janeiro, 1.857 jovens foram mortos por armas. E o Rio de Janeiro não está em guerra”.



Muros nas favelas

“Existem dois casos diferentes de muros nas favelas cariocas. O primeiro é o que o governo do Estado construiu no Dona Marta para, segundo ele, proteger a Mata Atlântica da ocupação. É estranho porque o Dona Marta não cresce há mais de dez anos. É claro que a preocupação não é ecológica, é um cerco. Ocupa, coloca a polícia lá dentro e vira um lugar de cumprimento de ordens. Esses muros custaram R$ 20 milhões. O que poderia ser feito com esse dinheiro? O posto de saúde do Dona Marta, por exemplo”.



“O segundo são os muros da Linha Vermelha e da Linha Amarela, que têm a desculpa de serem construídos para funcionarem como um isolamento acústico para as comunidades. Quer dizer que a Prefeitura está preocupada com o barulho das favelas? Que esse é o grande problema para comunidades onde não se constrói creche, posto de saúde, escola, não há saneamento?”.



“O muro é um projeto muito evidente da concepção de cidade baseada num modelo de especulação imobiliária e afastamento dos pobres. Temos que propor outro modelo de cidade, em que a favela tenha protagonismo. Mas a sociedade também tem que se organizar para isso, em torno dos temas que atingem suas vidas. Há morador da favela que é favorável aos muros porque tem vergonha de morar na favela. Não fica indignado com a situação. Do mesmo jeito que tinha morador que era a favor do Caveirão. Isso requer trabalho pedagógico”.



Medo

“Medo é uma coisa que todo mundo tem, o que nós temos que debater é o que fazer com ele. O importante é saber que a produção do medo é necessária para a manutenção da ordem do poder”.



Ficha Limpa

“Sou a favor do Projeto Ficha Limpa. Acho que tem que radicalizar mesmo para evitar que criminosos possam se candidatar. Mas temos que discutir até que ponto a elitista justiça brasileira não vai impedir, por exemplo, a eleição de um líder social, que é criminalizado no atual modelo de sociedade. Boa parte das lideranças do MST é criminalizada e talvez não pudesse concorrer. Além disso, o Ficha Limpa não vai resolver todos os problemas de corrupção do Brasil porque o Judiciário é tão ou mais corrupto que o Legislativo”.



Movimento estudantil

“O Movimento Estudantil não está fragilizado por causa da repressão e do medo, é por causa da alienação de boa parte da juventude. Hoje temos uma sociedade individualista, de consumo. Um debate como esse que estamos fazendo aqui hoje é coisa rara, é difícil despertar o interesse dos jovens. A juventude foi atingida em cheio pela fragmentação da sociedade atual. Quero elogiar e destacar a participação dos alunos desta Escola no debate e dizer que isso é raro hoje em dia, em um momento de grande despolitização da juventude”.



Força da sociedade

“Uma vez, ouvi o (Eduardo) Galeano falar que o neoliberalismo é como um rinoceronte, indestrutível. Mas que só havia uma coisa capaz de derrubar o rinoceronte: uma nuvem de mosquitos. Vamos nos mobilizar para aumentar essa nuvem de mosquitos e enfrentar o rinoceronte”, conclui Freixo.







Leia também:



Entrevista

Marcelo Freixo: O Brasil precisa superar a dinâmica que existe entre justiça e vingança



Revista Poli

O direito por trás das grades





Saiba mais sobre o tema