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Aula inaugural da Escola Politécnica discute a invisibilidade do trabalho do cuidado da mulher

Atividade contou com a presença da deputada federal Talíria Petrone
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 07/03/2024 12h07 - Atualizado em 14/03/2024 15h43

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) realizou, no dia 5 de março, a Abertura do Ano Letivo 2024. Com a participação da deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ), o evento teve como tema central “Políticas públicas para o enfrentamento à invisibilidade do trabalho do cuidado realizado pelas mulheres no Brasil”. Também estiveram presentes na mesa: Hilda Gomes, coordenadora de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa) da Fiocruz; e Ana Carla Santos, estudante do 4º ano do Curso Técnico de Nível Médio em Saúde, da habilitação de Biotecnologia. A discussão, inclusive, apareceu como tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023 - “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

Em uma fala de abertura, Anamaria Corbo, diretora da EPSJV/Fiocruz, explicou o conceito de Técnicos em Saúde entendido pela instituição e destacou alguns dados do Observatório dos Técnicos em Saúde (OTS). “Quando falamos de técnicos, falamos de todos os trabalhadores que não são de nível superior, todos os técnicos da área da saúde e todas aquelas categorias que são auxiliares no processo de atenção à saúde. São cerca de 60% da força de trabalho da saúde no país e quando olhamos para o Sistema Único de Saúde (SUS), esse segmento de técnicos equivale a 80%. Ou seja, é a maioria dos trabalhadores do SUS”, apontou. Anamaria justificou ainda a importância de se pensar no tema da aula inaugural a partir da interseccionalidade entre gênero, classe e raça: “Quem desenvolve esse trabalho no SUS, em sua maioria, são mulheres. Quando se faz o recorte por raça, são mulheres negras. E quando se faz pela classe social, é a parte mais empobrecida da classe trabalhadora”. 

A estudante Ana Carla também ressaltou a importância do tema: “Precisamos entender a realidade da mulher, onde estamos, em que momento estamos que nos faz refletir sobre isso. Há 20 anos a conversa não era essa, não falávamos sobre o cuidado da mulher, não falávamos sobre quem são as mulheres que estão em posição de poder, na frente da educação e do trabalho”.

Para a coordenadora da Cedipa, Hilda Gomes, é fundamental discutir o conceito de economia do cuidado, ou seja, lançar luz sobre o trabalho de cuidado não remunerado, caracterizando-o como fundamental para o bem-estar social. “Eu penso em olhar para as companheiras e perguntar se está tudo bem. A gente tem uma quantidade muito grande de taxas de depressão, estresse, ansiedade, que são reflexos e resultados da pressão exercida sobre as mulheres, brancas, negras, indígenas, com deficiência, cis, trans, ribeirinhas, quilombolas. É como acontece”, afirmou.

Em seguida, foi a vez da deputada federal Talíria Petrone, que explicou por que o cuidado deve estar no conjunto de direitos garantidos pelo Estado. Segundo ela, não tem como pensar a democracia brasileira sem colocar o tema do cuidado no centro do debate. “Porque todo mundo vai precisar de cuidado em algum momento da vida. Cuidado é uma necessidade para a manutenção da vida. Bebês precisam ser cuidados e quando envelhecemos também precisamos de cuidado”, defendeu, acrescentando que também não tem como pensar a existência humana sem o cuidado: “Para haver cuidado, alguém tem que cuidar. E se cuidado é uma necessidade para a vida humana, cuidado é também um direito humano. E se é um direito humano, cuidado também é papel do Estado”.

De acordo com Talíria, o cuidado precisa ser entendido como trabalho, justamente, por ser entendido como uma necessidade e um direito humano. “E esse trabalho é fundamental para todo o resto acontecer. Para roda girar, inclusive do ponto de vista do capital. É muito importante mudarmos a dimensão do olhar sobre o cuidado e entender que precisamos romper com a lógica do cuidado delegado ao privado”, frisou. 

Para Talíria, a história do Brasil no mundo, os quase quatro séculos de escravidão, o patriarcado e o racismo, “marcas da sociedade”, fizeram com que o lugar da mulher na sociedade fosse o lugar do privado e, portanto, o lugar do cuidado. “Isso foi entendido como natural e foi sendo repetido na reprodução social desses papeis. E nisso ainda tem uma dimensão que precisa ser colocada: o racismo estrutura todas as relações sociais brasileiras e o trabalho de cuidado, infelizmente, ainda é visto como lugar de servidão. Quando a gente conquista a ida para o mercado de trabalho, há uma delegação do que mulheres exerciam para outras mulheres. E qual era a cor dessas mulheres? Por que as trabalhadoras domésticas só conseguiram direitos trabalhistas recentemente, muito depois da CLT? Porque o trabalho é entendido como servidão, que nos remete à escravidão”, apontou.

E quais caminhos seguir? 

De acordo com Talíria, é preciso debater sobre o cuidado não remunerado, mas também pensar nas trabalhadoras de cuidado que necessitam de melhores remunerações e mais valorização. “Não se muda esse cenário sem políticas públicas, pensadas desde estruturas como creches, espaços de cuidados noturnos; sem proteção social, sem licença, sem discutir modelos novos de aposentadoria. Temos que estruturar uma rede de políticas públicas para enfrentar a sobrecarga das mulheres, em especial negras e pobres, que sustentam cada pedacinho desse mundo”, disse.

Talíria comentou ainda sobre o fato de que, muitas vezes, quem formula as políticas não viver a realidade das mulheres. “Podemos ter muitos parceiros solidários, mas quem não vive determinada realidade, dificilmente vai dar ênfase a essa realidade na produção de política pública. Então, é óbvio que precisamos ter equidade e paridade nos espaços de poder, seja nas cadeiras legislativas, seja nos espaços de direções em instituições públicas e privadas. É um desafio. Se a realidade da maioria do povo não está refletida na caneta, onde se toma as decisões, então estamos reproduzindo desigualdades. E isso é questão de saúde”, considerou.

A deputada lembrou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 72/2013, que foi construída em conjunto com as trabalhadoras domésticas e que garante a essas mulheres aposentadoria especial, dentre outros direitos. “É um trabalho pesado, violento, muitas vezes. Tínhamos que ter uma aposentadoria especial e não tem. Não há categoria que faça o mundo funcionar e seja tão precarizada”, lembrou.

Ela citou ainda o Projeto de Lei 1741/2022 [PL das mães cientistas], que dispõe sobre a prorrogação dos prazos para defesa de dissertação de mestrado e tese de doutorado em virtude de parto, nascimento de filiação, obtenção de guarda judicial para fins de adoção ou licença adoção. “Esse PL veio de uma demanda de mães cientistas que perdiam suas defesas de dissertação e teses porque não havia uma declaração mais global que garantisse uma espécie de direito à maternidade. Temos muitos outros projetos e estou confiante que vamos avançar. Estamos lutando, em Brasília, para instituir uma Frente Parlamentar em Defesa de uma Política Nacional do Cuidado, mas ainda não conseguimos as assinaturas. Seria importante para darmos visibilidade e avançarmos em termos de legislação”, concluiu.

Debate

Durante o debate, vários estudantes trouxeram relatos pessoais sobre como o tema do cuidado atravessam suas vidas. Letícia Carvalho, estudante do Mestrado Profissional em Educação Profissional em Saúde, da EPSJV, destacou que também é preciso voltar os olhares para a área da educação, que também é um espaço feminino. “Quando a gente precisa de uma creche, quando precisamos colocar nossos filhos na escola, também delegamos o cuidado a uma outra mulher, que, na maioria das vezes, é mulher preta”, comentou.

Cristiani Machado, vice-Presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, afirmou que o tema da aula inaugural é fundamental para a instituição. “A Fiocruz é profundamente comprometida com a redução das desigualdades, que fazem mal à saúde. E as desigualdades de gênero na nossa sociedade são brutais e estão entrelaçadas com questões de raça, renda, classe, territoriais e muito mais. Isso tem uma repercussão violenta para a saúde das pessoas. O volume de horas do trabalho de cuidado não remunerado é muito maior para as mulheres. Obviamente, isso acarreta uma sobrecarga, que tem repercussões na saúde, além das possibilidades do exercício dos direitos”, observou.