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Aula inaugural do curso técnico em agente comunitário de saúde discute participação popular

Para dar o pontapé inicial na segunda etapa da formação, palestrantes apresentaram experiências de participação da população nos serviços de saúde
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 31/07/2019 09h51 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

A poucos dias do início da 16ª Conferência Nacional de Saúde, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu, no dia 29 de julho, aula inaugural sobre experiências da participação popular no cuidado em saúde. A iniciativa deu início à segunda etapa do curso técnico em Agente Comunitário de Saúde (Ctacs). Com carga horária de 1.340 horas, a formação teve início no ano passado e conta com 29 alunos, que são moradores das cidades do Rio de Janeiro, Nova Iguaçu, Duque de Caxias e Mesquita.

Nesta etapa do curso, temas como cuidado, promoção e vigilância em saúde são trabalhados com os estudantes. Nesse sentido, a professora-pesquisadora Mariana Nogueira, que coordena o Ctacs, destacou a necessidade de se pensar no cuidado territorializado e coletivo produzido pelas equipes de Saúde da Família, que deveria ser construído junto aos usuários. E destacou o papel privilegiado dos agentes comunitários, que têm como sua atividade principal o trabalho educativo em saúde com o estímulo da participação social. “É fundamental não naturalizar que ‘participação social’ é o mesmo que ‘controle social’ e o mesmo que aceitação por parte dos usuários das regras e procedimentos propostos e impostos pelos serviços de saúde”, ressaltou.

Para Mariana, a participação social pressupõe a valorização da autonomia da classe trabalhadora que é usuária dos serviços de saúde. Ou seja, na discussão da participação popular no cuidado à saúde os usuários devem ter protagonismo para pautarem suas necessidades e interferirem no funcionamento dos serviços de saúde. E justamente por isso, a coordenadora apontou que esse debate é tão importante para os agentes comunitários, que têm trabalham no território, são moradores daquela localidade e articuladores em potencial, mas que, ao mesmo tempo, têm sofrido com a reorientação do seu trabalho para uma ação mais burocrática dentro das unidades de saúde.

“A participação popular pode se dar a partir de diversas atividades, como em rodas de conversas, em instâncias institucionalizadas ou não. O conceito tem como característica principal a ideia do protagonismo e autonomia popular, logo, pressupõe uma perspectiva de classe. Então é entender a classe trabalhadora como protagonista na reivindicação por melhores condições de vida e processos de cuidado”, caracterizou.

Experiências

A experiência da participação popular na clínica da família Anthidio Dias da Silveira, localizada na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, foi apresentada por Sophia Benedito, nutricionista e residente do programa multiprofissional em saúde da família da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). A unidade foi tema do trabalho de conclusão de curso da jovem, que irá apresentar um projeto de intervenção sobre participação popular na clínica da família. O objetivo do projeto é superar a ideia da representação da população através de um líder, fazendo assembleias na clínica da família e convocando a população como um todo, de forma direta. “Agora temos que pensar em como a gente mobiliza os trabalhadores e como tornar esse espaço atrativo para a população porque existe um descrédito muito grande em espaços de participação coletiva”, explicou.

Segundo Sophia, apesar do histórico de luta e resistência naquela comunidade, que sofreu durante anos com desapropriações, atualmente é visível a falta de organização e conversa entre os usuários e trabalhadores dos serviços de saúde que, juntos, poderiam pensar em mudanças no cuidado e nos territórios. “Quando o usuário quer fazer reclamação, ele faz através da ouvidoria, das redes sociais ou até mesmo indo na sala da administração. No final das contas, a população tem formas individuais de tratar questões que poderiam ser discutidas e resolvidas de forma coletiva”.

Mas qual é a participação que está faltando? Para responder à questão, Sophia partiu para o conceito de ‘democracia’. “Existem pessoas que acreditam que a democracia é baseada no voto. Ou seja, a gente tem o papel de votar em alguém que vai decidir sobre a gente. E existe uma ideia de democracia participativa, que é pensar sobre o que acontece e se organizar coletivamente para agir sobre isso”, definiu, concluindo: “O que a gente sente falta é de uma participação democrática”.

Sophia diferencia ainda o termo ‘participação popular’ de ‘participação social’ e ‘controle social’. “Este último dá uma ideia de que o governo faz algo e a gente fiscaliza. Então a gente olha para o que acontece, mas não necessariamente faz algo em relação a isso”, destacou. E acrescentou: “Já participação social, que é um princípio do Sistema Único de Saúde, o SUS, traz a noção de que é importante que as pessoas pensem no que está acontecendo e ajam em relação a isso. Mas esse conceito amplo não identifica quem participa. A gente sabe que tem muitos interesses em jogo na garantia de um SUS de fato público e estatal”. Foi definindo esses outros conceitos que Sophia ressaltou a importância da ‘participação popular’ que, segundo ela, inclui a população historicamente excluída dos processos de decisão.

Participação no SUS

Em 1990, a lei 8.142 instituiu mecanismos de participação da comunidade na gestão do SUS, com a criação de conselhos e conferências de saúde. Mas, quase três décadas depois, a conjuntura brasileira não é mais tão animadora, garante Sophia. No estado do Rio de Janeiro, uma crise política e econômica se arrasta há anos, e tem como consequências a reorganização da atenção básica e diversas demissões. No âmbito do governo federal, o decreto 9.769, editado em abril, revogou conselhos e outras instâncias de participação da sociedade nas políticas públicas. “Há um claro movimento de ataque aos espaços de participação, com a justificativa de enxugar gastos”, denunciou.

Diante desse cenário, o agente comunitário de saúde Fabio Monteiro, membro do Conselho Gestor Intersetorial (CGI) de Manguinhos e da Comissão de Agentes Comunitários de Saúde de Manguinhos (Comacs-Manguinhos), ressaltou a importância da consciência de classe na garantia dos direitos sociais. “Nós vivemos uma luta de classes. Não importa se você mora na favela ou não, se tem carro financiado, casa própria... Quando a gente fala de organização popular, a gente precisa entender a qual classe nós pertencemos”, apontou, explicando: “Temos todo o direito de usufruir desse espaço público, mas temos que ter a noção de que muita gente da classe trabalhadora lutou para que estivéssemos aqui”. Como exemplo de organização popular, Fábio citou a conquista do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde (Sindacs-RJ) na luta para que os profissionais que tivessem formação em técnico em enfermagem ou em ACS recebessem uma gratificação.

Fábio destaca que a questão da luta de classes ficou ainda mais evidente recentemente com a aluna do curso de ACS da EPSJV, Rosilaine Santiago. Mãe de dois filhos e moradora do bairro de Manguinhos, ela perdeu a guarda do filho de oito anos para o pai, um militar que mora na cidade de Joinville, em Santa Catarina. Os dois principais argumentos do juiz do caso foram seu endereço  e a necessidade de a criança ter um exemplo paterno, por ser do sexo masculino. “É a luta de classes, é um juiz contra a favela”, lamentou.

Participação popular na saúde mental

E a luta de classes ainda se acentua com a divisão da classe trabalhadora. “A gente tem uma grande capacidade de mobilização. Se a gente decide que um colega nosso está sendo explorado, nos unimos e promovemos atos em sua defesa. Mas acabou o ato e cada um vai para sua casa. A capacidade de se manter mobilizado que é o problema”, apontou o psicanalista Matheus Pereira, diretor do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Neusa Santos Souza, em Senador Camará, na zona oeste do Rio de Janeiro. Ele apresentou a experiência da participação popular na unidade. Segundo ele, o passo anterior ao trabalho direto com a população é fazer com que os integrantes da equipe de saúde se reconheçam enquanto trabalhadores, independentemente das funções que ocupem. “Isso é uma tentativa de combater a divisão que existe entre nós da classe trabalhadora. Se alguém da unidade, por exemplo, sai para falar em algum local, essa pessoa vai em nome da instituição e não em nome próprio. Se faz um curso durante o expediente, volta para dividir o conhecimento com os outros”.

Segundo Matheus, durante anos, incutiram na cabeça da população o discurso de que um médico é mais importante que um agente comunitário. “Quando demitiram ACS tem reportagem diária falando isso? Não, mas quando falta um médico, tem. Quem discursivamente é mais importante? Isso tem a ver com o discurso, mas não é a verdade. A partir do momento em que a gente consegue romper essa ideia de cada um por si, começamos a ter uma capacidade de organização mínima”.  E no Caps é assim, garantiu Matheus: “Lá você não sabe quem é o médico, o ACS e a enfermeira. Todos atendem do mesmo jeito, apesar das especificidades. Uma vez, um usuário me disse que “se não tem o ACS para dizer que estou doente, não tem o emprego do médico”.

A forma de participação popular encontrada no Caps foi a realização de assembleias porque é lá, segundo Matheus, onde “as pessoas que foram privadas do direito de falar têm o lugar de fala”. “Os trabalhadores tem que tomar esse espaço como lugar essencial de fala dos usuários, têm que transmitir a eles a importância de estar ali. Podem tentar tirar tudo da gente, menos o direito de falar”, concluiu.

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