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‘Barbárie e Estado de Exceção’ é o tema da aula inaugural da EPSJV

Marildo Menegat falou sobre a crise atual da sociedade e os diversos aspectos da barbárie
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 26/03/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

 ‘Barbárie e Estado de Exceção’, foi o tema da aula inaugural da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), no dia 14 de março, apresentada por Marildo Menegat, doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).



Menegat iniciou sua fala situando o conceito de barbárie, que nasceu na Grécia, por volta do ano 5 a.C., quando os gregos chamavam de bárbaros todos aqueles que não eram gregos e que não eram considerados civilizados como os gregos, que usavam o termo também para se diferenciar de outros povos. Ao longo da história, o termo voltou a ser utilizado e passaram a ser chamados de bárbaros os que não eram europeus. “Quando Cabral chegou aqui (no Brasil) em 1500 e viu os índios, ele também os chamou de bárbaros”, destacou o professor, acrescentando que, anos mais tarde, na Europa, durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), um dos conflitos mais morticidas da história, em que um milhão de pessoas morreram nos confrontos entre católicos e protestantes, o termo bárbaro foi usado também para denominar os próprios europeus.



Na história da humanidade, o que se observa é que momentos de barbárie são seguidos de uma evolução das sociedades. “Obrigatoriamente, a humanidade precisa evoluir e, às vezes, é possível regredir, com a barbárie, para depois avançar novamente”, ressaltou o professor. Durante as duas guerras mundiais, explicou, houve uma regressão à barbárie que foi superada, após 1945, com os chamados ‘30 anos gloriosos’ do capitalismo, como denominou o historiador inglês Eric Hobsbawm. A partir dos anos 1970, começou a crise estrutural do capitalismo e uma nova regressão à barbárie. “Eu digo que é uma crise estrutural porque é permanente. É como uma dor de cabeça que não passa nunca, não é uma dor que passa com remédio”, observou Menegat.



Em uma sociedade capitalista como a atual, as crises sempre têm um fundo econômico, pois, na vida burguesa, tudo é realizado pelo dinheiro. Quem produz, tem que vender, mas nem todo mundo tem dinheiro para comprar quando não consegue vender sua força de trabalho. “Se não há emprego, não tem salário. E aí acontecem as crises causadas pelo excesso de produção”, disse o professor.



Para Menegat, o conceito de barbárie deve ser usado para pensar a sociedade burguesa atual, que ele considera estar em decadência. “O fim de uma forma social não é uma novidade. A sociedade grega antiga, por exemplo, não existe mais. Na história humana, algumas sociedades desapareceram, então não podemos pensar que a nossa sociedade atual é eterna e vai durar pra sempre. Temos mais de 440 anos de sociedade burguesa e, nesse momento de decadência, é possível pensar a morte dela e as escolhas que fazemos diante disso”.



Barbárie



Durante a palestra, Menegat citou alguns exemplos de como a barbárie causada pela crise do capitalismo pode ser observada em diversos aspectos da sociedade atual. Um deles é a tecnologia, que está substituindo os seres humanos na produção de bens e é uma das causas do desemprego estrutural. É o caso, segundo ele, da produção de automóveis: nos anos 1960, um carro era montado por 18 operários em 48 horas; hoje, um veículo pode ser montado em 12 horas por seis operários. Além da drástica redução na mão de obra, os operários de hoje se tornaram operadores de computadores e máquinas, que fazem o trabalho que antes era manual. “Para sobreviver, o ser humano vende sua força de trabalho, se não fizer isso, não sobrevive. Por isso, dizemos que o desemprego hoje é estrutural e não mais circunstancial, como no passado. A partir da década de 1970, por mais que a economia estivesse bem, países como França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos mantém uma taxa de cerca de 10% de desemprego. Sem emprego, as pessoas não tem como suprir suas necessidades básicas”, disse o professor.



É essa parcela da população que vem sendo excluída das relações sociais. E uma das consequências disso é o aumento da violência cotidiana, que cresce junto com o desemprego, assim como aumenta o número de presos nos países. O professor da UFRJ explicou que até a década de 1970, países como Estados Unidos, Alemanha e Brasil tinham uma pequena população carcerária. A partir daí, junto com a crise do capitalismo, aumentaram também o número de prisões. Nos Estados Unidos, existem 2,4 milhões de presidiários (de cada 100 mil pessoas, 700 estão presas). No Brasil, em cada 100 mil pessoas, 400 estão encarceradas, totalizando cerca de 550 mil presos no país. “Isso vem aumentando em todos os países. É a forma encontrada para conter a massa de desempregados que não encontram mais lugar na sociedade. Mas a prisão é estúpida, não recupera ninguém. A sociedade não tem mais lugar dentro delas para essas pessoas e as deposita no leprosário, que é o que se tornaram as prisões”, observou Menegat, lembrando ainda que a prisão é uma invenção do capitalismo, mas, que nos chamados ‘ anos gloriosos’, a necessidade de prisão era pequena. “Mas, hoje, vivemos em um estado de totalitarismo econômico, temos um estado democrático que toma medidas de estado de sítio, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que não são compatíveis com um regime democrático. Aquela população é um refugo que precisa ser controlado para não atrapalhar o capitalismo”, destacou.



Menegat apontou ainda outra forma de conter essa massa de excluídos: o genocídio que acontece hoje no Brasil. Nos anos 1970, as mortes violentas no país somavam 11 mil por ano. Hoje, são 30 mil a cada ano. Entre os mortos, a maioria é de jovens, de 15 a 25 anos, homens e negros. “É um genocídio em largas proporções que não provoca nenhuma comoção porque atinge uma parcela da sociedade que já é considerada um refugo social que deve ser eliminado. Mata-se cada vez mais de forma monstruosa e cruel”, destacou o professor. Além disso, mesmo quando não morrem, essas pessoas já têm o que se pode chamar de ‘morte social’, quando são excluídas da sociedade. Por fim, há a ‘morte social’ das mães e familiares desses jovens mortos, que não tem seu sofrimento reconhecido pela sociedade, apesar de estar se tornando um fenômeno de largas proporções.



Essa invisibilidade de uma parcela excluída da sociedade já pôde ser observada em outros momentos da história. Um exemplo é o genocídio de judeus na Alemanha nazista. “Seis milhões de judeus não foram para o campo de concentração sem que ninguém tivesse visto. Os alemães sabiam e não faziam nada porque a maior parte dos alemães considerava que os judeus não existiam socialmente. É a mesma lógica que se aplica hoje”, lembrou o professor.



Outra forma de barbárie pela invisibilidade e exclusão social é o racismo, que separa alguns grupos das sociedades. “O trabalho humano é necessário para a produção de riquezas, mas sempre sobra para algum grupo os piores postos de trabalho, mais explorados e com menos direitos”, disse Menegat. No caso da formação da classe operária brasileira, esses piores postos foram sempre ocupados pelos negros. “O negro pobre é sempre mais pobre que o branco pobre. Esse racismo funcional ninguém questiona, no dia a dia, todo mundo se cala. E ele é mais problemático do que o do futebol, por exemplo, que se manifesta”, observou o professor, acrescentando que outro exemplo de racismo funcional acontece com as empregadas domésticas que, no Brasil, são cerca de seis milhões de trabalhadoras, a maioria negras, enquanto na maior parte do mundo essa é uma função em extinção. “O capitalismo não existe sem uma classe excluída. Ou você está incluído no mercado e existe socialmente ou não existe. O mercado produz como regra o que chama de exceção. Não é Estado de Exceção, é a regra”, completou.



Outros aspectos da crise do capitalismo lembrados por Menegat são o aumento do uso de drogas e a criminalização do uso de algumas dessas substâncias que não são legalizadas. Enquanto isso, o uso do álcool, que é uma droga lícita, é cada vez maior. “As pessoas bebem cada vez mais, para suportar o mundo em que vivemos. Assim como o Brasil tem um grande consumo de medicamentos, é o segundo país que mais consome ansiolíticos do mundo. As drogas de farmácia são tão ou piores que as outras”, observou o professor, acrescentando que a não liberação do uso de drogas atende a interesses políticos e econômicos. “Faz parte do Estado de Exceção a guerra às drogas, que produz o genocídio de jovens negros. A sociedade é hipócrita. A CIA sabe que a política de drogas é um fracasso no mundo inteiro, mas os americanos dependem economicamente do dinheiro da venda das armas usadas para o combate às drogas no mundo”.



Crise



Para Menegat, a transformação da sociedade atual só é possível se todos tiverem consciência do que está acontecendo. “Quando Roma colapsou, boa parte da sociedade romana não sabia de nada, foi pega de surpresa. Não devemos ser pegos de surpresa. Temos consciência que esse mundo não deve mais existir e precisa ser transformado. É melhor termos uma felicidade superficial ou uma tristeza profunda que tenha saída? Ao entrar em crise, criamos um novo mundo, bem melhor do que vivemos até agora. Temos que pegar o touro pelo chifre, porque senão não haverá futuro”.



O professor destacou ainda que não existem soluções prontas para a crise atual do capitalismo, por ser uma crise inédita. “Se a crise é nova, as soluções também têm que ser. E essas saídas podem vir do que eu chamo de ‘novíssimos movimentos sociais’, como o MST, os Zapatistas do México ou o Movimento dos Desempregados da Bolívia, que tem formas próprias de organização que podem servir de exemplo para a nova sociedade”, disse Menegat, acrescentando que mobilizações como as que começaram em junho de 2013 no Brasil, também podem colaborar para a construção de um novo mundo. “Quando as pessoas saem para ocupar as ruas com propostas de mudanças, mostram que as coisas estão mal. Tivemos muitos anos de lutas sociais em baixa no Brasil. A barbárie foi colocada em banho-maria”, concluiu.