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Crise do capital, emergências sanitárias e SUS

Mesa-redonda debateu o papel do SUS nas emergências e reemergências sanitárias no Brasil hoje e sua relação com a crise social, econômica e política
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 07/11/2018 09h33 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

‘Emergências sanitárias, indicadores de saúde, e doenças reemergentes: as determinações sociais da saúde 30 anos depois’: esse foi o tema da mesa-redonda realizada na tarde de terça-feira (30/10) durante o Seminário Internacional 30 anos do SUS e 10 anos da Revista Poli na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Mediada pelo professor-pesquisador da EPSJV Alexandre Pessoa, a mesa reuniu o especialista em Vigilância em Saúde do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), Eduardo Hage, o coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Rivaldo Venâncio, e o reitor da Universidade Andina Simon Bolívar no Equador, Jaime Breilh.


SUS: 30 anos depois, qual é o balanço?

Eduardo Hage destacou a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) para as melhorias significativas dos indicadores de saúde no Brasil nos últimos 30 anos, e indicou os principais desafios nessa área para os próximos anos. Segundo ele, o SUS foi central para que índices como a expectativa de vida ao nascer no país passasse de 67,8 anos em 1990 para 74,4 anos em 2015. Nesse mesmo período, por outro lado, a mortalidade de crianças menores de cinco anos apresentou queda substantiva, de 52,5 óbitos para cada mil nascidos vivos para 17, uma redução de 68% em 25 anos. “Tivemos um avanço enorme”, comemorou Hage, que destacou ainda a redução na mortalidade materna no período, de 50%. Segundo ele, embora muitos indicadores reflitam melhoria, não só do ponto de vista da saúde, mas das condições de vida da população, o contexto epidemiológico brasileiro é caracterizado por uma grande complexidade. “Ao mesmo tempo em que houve nas últimas três décadas uma redução na mortalidade por doenças transmissíveis e também na mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis a partir de 2010, o quadro epidemiológico brasileiro mostra, do ponto de vista da morbidade, ou seja, da ocorrência de doenças, uma sobreposição de uma alta carga de doenças transmissíveis com um conjunto de doenças não transmissíveis, associado, sobretudo entre os jovens, de violências, suicídios, outros eventos relacionados ao que é denominado como causas externas, bem como transtornos mentais que vem cada vez mais tendo relevância importante no nosso perfil epidemiológico”, disse o especialista do Isags.

A redução da mortalidade por doenças transmissíveis nos últimos 30 anos deve muito ao SUS, segundo Hage, que destacou políticas como o Programa Nacional de Imunizações (PNI). “Estamos falando de vacinação gratuita, universal, com incorporação de tecnologia, com parque produtivo nacional, público, que propiciou não somente a ampliação do número de vacinas como mudanças tecnológicas que foram desenvolvidas no país. Isso permitiu introduzir vacinas como a do rotavírus, em 2006, contra pneumococo e meningocócica C, em 2010, e mais recentemente a vacina contra a HPV”, enumerou.

O SUS teve efeito positivo também sobre as doenças diarreicas em menores de cinco anos, por meio de estratégias como a ampliação e qualificação da atenção primária, especialmente pela Estratégia Saúde da Família. Em relação às não transmissíveis, a importância do SUS na redução dos indicadores de mortalidade e morbidade também foi significativa, ressaltou o especialista do Isags. “As ações de promoção da saúde organizadas por meio do plano nacional de enfrentamento das doenças crônicas não-transmissíveis, em 2011, possibilitou uma série de intervenções positivas. Por exemplo, contribuíram na redução de alguns fatores de risco, como a prevalência do tabagismo, que caiu de 36% para 15%”, apontou Hage, que destacou ainda iniciativas como a redução do sal nos alimentos, eliminação da gordura trans e promoção de atividades físicas como avanços do SUS.

Segundo Hage, um dado preocupante atualmente é a reversão da tendência de queda na incidência de doenças como a malária, especialmente na região amazônica, e tuberculose, que ainda se mantém em alguns grupos mais vulneráveis, como populações indígenas e presidiários. Outras doenças, como a hanseníase, embora tenham caído significativamente desde a criação do SUS, tem apresentado elevação nos últimos dois anos. Embora o país caminha hoje para a eliminação de doenças transmissíveis como a peste, a doença de Chagas, a raiva, o tracoma, e a esquistossomose, a emergência doenças como a dengue, a zika e a chikungunya, bem como as epidemias de febre amarela e sarampo nos últimos anos, aponta para uma tendência de aumento na incidência de doenças transmissíveis no Brasil. “A emergência mais recente foi a do sarampo, com aproximadamente 2,5 mil casos, concentrados em dois estados da região Norte, mas com transmissão em outros estados, inclusive no Rio de Janeiro. E a febre amarela, cuja última epidemia se iniciou no final de 2006 e veio até meados deste ano, atingindo um grande número de pessoas e afetando de forma inédita nos últimos 40 anos a região Sudeste do país”, destacou.

Para Hage, a tendência atual é de aumento da desigualdade social na esteira do esvaziamento do SUS e de outros direitos sociais como consequência das políticas de austeridade fiscal. Ele teme que isso represente uma reversão generalizada da tendência de melhoria nos indicadores de saúde obtidos pelo SUS ao longo dos últimos 30 anos. “Já observamos aumento na mortalidade infantil em 2016 e 2017. Isso tem tudo a ver com a piora nas condições de vida nos últimos anos”, destacou. A ampliação da incidência de doenças não transmissíveis, como a tuberculose e a sífilis, o aumento da violência, o surgimento de epidemias de uma forma mais frequente e intensa e a exposição a alimentos de menor qualidade, entre outros, são todos problemas que tendem a aumentar por conta do empobrecimento da população, segundo Hage. “Algumas publicações demonstram cabalmente que essas medidas de austeridade fiscal tiveram em outros países, e já estão apresentando em nosso país. O que a gente precisa é de mais SUS e não menos”, concluiu.

Emergências e reemergências sanitárias e a Fiocruz

Coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, Rivaldo Venâncio apresentou as contribuições da Fundação nas emergências sanitárias no país ao longo das últimas décadas, principalmente a partir da gestão de Sergio Arouca na presidência da Fiocruz. “A primeira grande contribuição, que marca o início de um processo de retomada de alguns espaços institucionais no país, do ponto de vista de uma nova proposta de formulação da política de saúde mais ampla, mais generosa, é justamente a criação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, em 1985”, destacou. “Ela já demarca uma ousadia em relação à formação de recursos humanos para a saúde. No mesmo espaço temos a combinação do ensino, da pesquisa e da cooperação social com outras instituições nacionais e internacionais e movimentos sociais. Essa formação é uma grande contribuição que a Fiocruz dá para a criação e consolidação posterior do SUS”, frisou. Rivaldo lembrou também da criação do Centro de Estudos sobre Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh), na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), também no ano de 1985. “Coloca a saúde do trabalhador, a ecologia humana, no centro das atenções do sistema de saúde, coisa que de certa forma era relegado até então. Já mostrando naquela época uma visão estratégica na compreensão desses aspectos que seriam cada vez mais importantes no estudo do processo saúde-doença, indo além da análise da presença ou não do agente causador, do vírus, da bactéria”, pontuou. Os efeitos deletérios do uso do amianto, dos agrotóxicos, a intoxicação por metais pesados e os crimes ambientais como o que ocorreu em Mariana há três anos, foram outros aspectos importantes da atuação da Fiocruz destacados por Venâncio na construção do SUS.

Outra contribuição destacada por ele foi a criação do Centro Latino-americano de Estudos da Violência e Saúde, o Claves, em 1988. “Foi outro marco importante, que colocou, já naquele momento como um problema emergente a violência, cada vez mais presente no nosso país. A criação do Claves mostra a ousadia de pensar a saúde num contexto mais amplo, com toda a sua determinação social”, lembrou. Segundo ele, o país vive hoje uma “epidemia” de mortes pelas chamadas causas externas, entre elas os índices de violência e também os de acidentes de trânsito. Em 2000, segundo ele, foram registrados cerca de 2,5 mil casos de mortes por acidentes de motocicleta. Em 2015, esse número passou a 12,6 mil anos depois. “Infelizmente os meios de comunicação muitas vezes nos levam a acreditar que o acidente de moto é uma fatalidade por imperícia ou irresponsabilidade do condutor, e muitas vezes é, mas temos que lembrar que são trabalhadores que estão indo e voltando do trabalho. Enquanto não houver uma política de mobilidade urbana que permita a esses trabalhadores um transporte de massa de qualidade, seguro, esse número só tende a aumentar”, ressaltou. Segundo Rivaldo, estima-se que o número de internações por causa de acidentes de trânsito cheguem a 200 mil em 2018. “Muitos deles vão ter algum membro amputado. Estamos criando uma verdadeira geração de amputados muito mais grave do que países que passaram por guerras”, assinalou. O número de assassinatos também aumenta, segundo Venâncio. “A expectativa para 2018 é algo como 70 mil assassinatos. Não podemos ignorar esse quadro da violência desenfreada”, alertou.

O coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz destacou também como contribuição da Fundação para a consolidação do SUS a constituição de uma rede de laboratórios de referência. “São cerca de 50 laboratórios especializados que dão resposta para um conjunto de enfermidades que provocam epidemias explosivas. Por exemplo, a influenza, o sarampo, as hepatites, malária, entre outras”, ressaltou Rivaldo Venâncio, que lembrou ainda de alguns marcos da Fiocruz no enfrentamento à algumas epidemias, como a identificação do vírus HIV no Brasil em 1987 e o isolamento dos vírus da dengue em 1986, 1990 e 2001. “Mais recentemente houve a contribuição importante da Fundação Oswaldo Cruz em relação tanto a identificação de aspectos até então obscuros do comportamento do vírus da Zika, como também nas alterações congênitas até então desconhecidas pela literatura científica mundial”, lembrou. 

Para Rivaldo, o SUS tem um “desafio gigantesco” hoje para controlar as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como a dengue, a zika e a febre amarela. “As epidemias mostram a falência de um modelo que empregamos há quase 100 anos, baseado quase que exclusivamente  no uso do inseticida em larga escala no meio ambiente”, disse Venâncio, que ressaltou ainda que o quadro de emergências e reemergências sanitárias hoje no país é um retrado do que chamou de “apartheid social” nas regiões metropolitanas brasileiras. “Evidentemente não tem política de controle de vetores que se sustente enquanto as condições ambientais nas favelas e bairros pobres permanecerem como estão”, apontou. “Essas epidemias de arboviroses são graves problemas de saúde pública, indiscutivelmente, mas tanto as origens quanto as soluções definitivas estão fora do setor saúde” concluiu.


Crise global da vida e da saúde

O reitor da Universidade Andina Simon Bolivar e um dos expoentes do pensamento em saúde coletiva e medicina social na América Latina, Jaime Breilh fez a apresentação que encerrou a mesa-redonda. O médico equatoriano argumentou que a crise da saúde vai além de um cenário que envolve a emergência e reemergência de algumas enfermidades. “Precisamos penetrar com um pensamento crítico na crise global da vida e da saúde no capitalismo da quarta revolução industrial. Quanto às doenças chamadas emergentes e reemergentes, é indispensável aplicar a epidemiologia crítica para repensarmos a noção de emergência”, assinalou Breilh. A quarta revolução industrial, continuou ele, não só implica uma aceleração da acumulação do capital e da concentração econômica mas também uma potencialização dos recursos de dominação e hegemonia do capitalismo. “Este não é qualquer capitalismo. Não é o capitalismo do século 19 ou do século 20. Este é o capitalismo do novo milênio, que mostra todo o seu potencial destrutivo, em várias esferas da vida”.

Para Breilh, a epidemiologia nesse contexto deve ir além da análise dos chamados “fatores de risco” para a saúde, que segundo ele contribuem para desvincular as emergências sanitárias dos agravos causados pelas atividades econômicas sob o capitalismo. “As ciências positivistas se converteram em ciências forenses. Não conectam o que está acontecendo com a expansão vertiginosa e colossal do capitalismo do século 21”, pontuou Breilh, para quem há duas noções de emergência sanitária, uma funcional ao sistema e outra crítica.

“No início da pandemia de H1N1 ela era descrita como gripe suína, vinculando a emergência do vírus com a forma como se dá a criação industrial de porcos. Em 72 horas a mídia mudou o discurso, falando de H1N1. Tirou-se o foco da atividade econômica para o vírus causador da doença. No grupo da OMS que declarou que havia uma pandemia de nível 6 havia cinco pessoas com vínculos diretos ou indiretos com produtores de antivirais ou de vacinas. É um giro conveniente ao negócio da indústria farmacêutica-biomédica”, assinalou Breilh, para quem os sistemas de saúde, por melhores que sejam, não podem dar conta do movimento global de epidemias. “É um barco de papel contra um tsunami de destruição”, complementou.

Para ele, o “empirismo analítico” da ciência positivista, “ciência oficial” do Estado capitalista, obscurece as relações de poder subjacentes às emergências e reemergências sanitárias. “Ela só vê a ponta do iceberg. Invisibiliza a determinação social da saúde para produzir paliativos que contribuem para a acumulação de capital. Quando as ciências da saúde separam a realidade em fatores de risco, faz desaparecer a realidade em sua essência, que são as relações sociais, políticas e econômicas do capital”, argumentou.
Para o reitor da Universidade Andina Simon Bolívar, o singular do que chama de “crise global da vida e da saúde” na atualidade envolve a perda da sustentabilidade, soberania, solidariedade e biossegurança. “É uma crise de sustentabilidade porque trabalhamos, comemos, descansamos e vivemos rodeados de venenos tóxicos e cancerígenos, desperdiçando recursos vitais como a água; a soberania está destruída porque perdemos a direção da nossa vida pessoal e coletiva; perda de solidariedade, porque vivemos em uma era de individualismo extremo e consumismo radical; e de biossegurança porque crescem espaços insalubres, crescimento exponencial do lixo, etc.”, explicou Breilh.