Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

É possível um SUS público e universal no contexto do capitalismo contemporâneo?

O avanço do capital financeiro, as lutas anticapitalistas e o SUS em três décadas estiveram no cerne do debate do primeiro dia do Seminário Internacional
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 06/11/2018 15h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

“Não estamos alegres, é certo. Mas por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado”. Foi com a citação do poeta russo Vladimir Maiakóvski que o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), André Dantas deu início, como mediador, à mesa ‘Balanço e perspectivas da Reforma Sanitária Brasileira: é possível um SUS público e universal no contexto do capitalismo contemporâneo e periférico?’. Promovida no primeiro dia do Seminário Internacional que comemorou os 30 anos do SUS e do Curso Técnico de Nível Médio em Saúde da EPSJV/Fiocruz, bem como os dez anos da Revista Poli, o debate contou com a participação de Áquilas Mendes, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena o grupo de pesquisa ‘Saúde, Estado e Capitalismo Contemporâneo’, e de Sonia Fleury, doutora em Ciências Políticas e pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Duas perguntas, apresentadas previamente aos debatedores, buscaram refletir acerca da possibilidade de uma política social universal, inspirada nas experiências do Estado de Bem-Estar Social, num país da periferia do sistema capitalista como o Brasil, e da luta em defesa do SUS, num contexto de crise econômica e ataque aos direitos, inclusive, nos países centrais. “Em momentos de retrocesso conjuntural como esse, a melhor tática é recuar ou avançar com as bandeiras de luta da esquerda? Seria um devaneio ou uma necessidade histórica retomar a luta anticapitalista de forma consequente e organizada?”, provocou o mediador. Áquilas foi taxativo na resposta: “Temos que avançar com debate aprofundado, com reflexão crítica. Retomar a luta anticapitalista é uma necessidade histórica”. Ainda sob os efeitos do resultado das eleições à Presidência da República, o professor da USP chamou atenção para a necessidade de maior união na resistência contra o avanço do capitalismo contemporâneo. “É interessante ver colegas latino-americanos aguerridos na luta contra a barbárie do capitalismo”, destacou, lembrando o 15º Congresso de Medicina Social e Saúde Coletiva, promovido pela Associação Latino-Americana de Medicina Social (Alames), entre os dias 22 e 27 de outubro, em La Paz, na Bolívia. Ele citou como exemplo desse momento o Sistema Unificado de Saúde da Bolívia, que começou a ser implantado em 2012. “Trata-se de uma construção histórica importante, diante de todas as contradições da Bolívia”, avaliou.

Avanço do capital financeiro

A escalada do capitalismo na contemporaneidade, segundo o professor, entende a saúde como mercadoria. “Por isso, é urgente revisar os 30 anos do SUS e os limites da Reforma Sanitária Brasileira. Trata-se de reconhecer o tempo histórico desses 30 anos, ou seja, como o padrão capitalista vem se processando e tomando à frente no mundo contemporâneo”, resumiu. Na avaliação de Áquilas, a sociedade atual não guarda mais nenhuma proximidade com a etapa anterior do capitalismo, de 1945 a 1975, quando era possível uma relação de sociedade mais solidária. “De 1975 para cá, observamos uma sociedade cada vez mais individualizada. Há derrotas fragorosas com o avanço do capital portador de juros, da sua forma mais perversa, que é a especulação do capital financeiro dominando a lógica dessa etapa contemporânea”, explicou. Ele deu alguns exemplos de luta no contexto atual do capitalismo: a greve dos mineiros de carvão da Inglaterra, que durou um ano e meio, entre 1984 e 1985, sob as mãos de ferro da então primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, que queria à época privatizar as minas de carvão; e a greve dos controladores de voo, nos Estados Unidos, que durou cerca de sete meses, no ano de 1981, durante o governo do ex-presidente Ronald Reagan. “Eu estava lá na Inglaterra, fazendo meu mestrado, e presenciei a escalada da barbárie do capitalismo e a resistência dos trabalhadores. A greve dos mineiros findou, as minas foram fechadas”, lamentou o professor da USP, citando também no mesmo contexto a entrada da China na Organização do Comércio, abrindo as portas para o capitalismo em 2001. “Pensar o SUS e a saúde é então associá-lo ao avanço do capitalismo”, reafirmou.

Para ilustrar o debate, ele recorreu a algumas perguntas que fez em um artigo que será publicado na Revista ‘Saúde e Sociedade’, no fim deste ano: “Por que permanecer no diagnóstico institucional acerca dos ataques aos direitos sociais, ao invés de compreender o mundo capitalista em seu tempo histórico? Por que insistimos na ideia que o limite das políticas sociais decorrem da irresponsabilidade de alguns governos? É possível apostar na construção institucional, nas reformas do Estado social como forma de superação da crise atual?”, questionou. Para o professor, só será possível enfrentar esse avanço se entendermos o Estado e sua relação orgânica com o capital. “Não podemos nos iludir com o Estado de Bem-Estar Social europeu”, alertou.

Áquilas ainda explicou como o capital financeiro vem se apropriando do fundo público nos 30 anos de SUS, a partir da comparação entre os gastos públicos e privados ao longo das últimas décadas: em 1993, enquanto o gasto público foi de 2,8%, o privado foi de 1,4% do PIB; em 2002, a relação foi de 3,2% e 3,9%, respectivamente; já, em 2015, o gasto público foi de 3,9% e o privado subiu para 5,2% do PIB. Ele acrescentou, ainda, como o subfinaciamento passou a ser substituído pela lógica do desfinanciamento da saúde, a partir da Emenda Constitucional 95, que congela os recursos públicos nos próximos 20 anos. “Acho que as instituições são insuficientes. Não podemos mais pensar no ideário emancipatório do SUS sem fazermos essa análise mais profunda do capitalismo”, finalizou.

Balanço da conjuntura

Mobilizada pelo resultado das eleições presidenciais, que tinham acontecido na véspera, Sonia Fleury fez um balanço da conjuntura política brasileira, recordando os protestos populares de 2013 – um movimento que entrou para a história como a maior mobilização de massas dos últimos 20 anos no Brasil, também conhecido como Manifestações dos 20 centavos, ou Jornadas de Junho –, o papel da Justiça “hiperpolitizada”, por meio da operação Lava Jato, e o papel da grande mídia na destruição do Partido dos Trabalhadores (PT). “Precisamos entender o motivo pelo qual se buscou destruir o PT, se o governo do PT foi conciliador, buscou políticas de inclusão através do consumo popular, da financeirização do capital, das desonerações para empresários”, destacou. Uma das explicações para isso, segundo a pesquisadora, diz respeito ao fato de as elites políticas brasileiras não estarem dispostas a conciliar. “Ainda que a conciliação faça parte da democracia, as elites não querem assim fazer, não querem a inclusão do outro, do trabalhador, do pobre, do negro, do periférico”, avaliou. Ela recordou a experiência de ter participado do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social: “Eu fazia parte de um grupo de esquerda que estava sempre fazendo críticas, mas os empresários me ouviam, pois eu estou com o ‘pé na elite’: sou branca, com doutorado, fiz parte da Fundação Getúlio Vargas... Mas, quando era a Jurema Werneck a falar, que agora está como presidente da Anistia Internacional, apesar de todos os doutorados que tem, ela era rejeitada, pois era uma mulher negra, e isso era demais para os empresários”.

Sonia observou que a principal consequência da política de conciliação dos governos do PT foi a inserção das pessoas mais pobres no mundo do consumo, sem a construção, porém, de um projeto político mais amplo e coletivo. “A conciliação foi feita por meio da individualização da pobreza. E a pobreza não é uma condição individualizada, faz parte de uma estrutura de classe e de exploração. Isso nunca foi problematizado”, registrou, seguindo com mais críticas ao papel leniente do Judiciário, que aceitou, por exemplo, que um parlamentar louvasse um torturador do período da ditadura militar durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. “No Chile, há duas semanas, um militar fez qualquer homenagem a alguma pessoa que participou da tortura durante a ditadura chilena e foi retirado de cena”, comparou. A pesquisadora prosseguiu reprovando o aprofundamento da intervenção militar no horizonte do governo de Michel Temer, citando nesse contexto o decreto nº 9.527, de 15 de outubro de 2018, que criou a Força-Tarefa de Inteligência para o enfrentamento ao crime organizado no Brasil. “O chamado AI-1, como ficou conhecido o decreto, vai contra toda uma política pensada de segurança pública”, criticou, questionando logo depois: “Mas por que a população adere a um discurso de violência?”. Para ela, isso se deve primeiramente à crise econômica e, consequentemente, à insegurança que as pessoas sentem diante do desemprego.

No contexto de balanço, Sonia destacou a disputa pelos fundos públicos. Ela observou que, na medida em que os recursos são canalizados para o pagamento da divida pública, para a circulação financeira do capital e a apropriação privada de algumas famílias dos recursos públicos, muito pouco sobra para as políticas sociais, “e as expectativas das pessoas começam a ser frustradas”. “O impeachment de Dilma Rousseff e o autoritarismo que cresce cada vez mais servem a isso. Afinal, a democracia não suportaria que só os trabalhadores e pobres pagassem a conta”, avaliou.

Quanto ao SUS, sugeriu: “Precisamos observar nosso sistema sob alguns aspectos, se foi educativo e ajudou a construir uma noção de coletividade e quanto à ideia de que saúde é um direito, ainda que a população questione esse direito no momento em que não é atendida”. Segundo ela, a Reforma Sanitária deu pouca atenção à construção de hegemonia. “Nós construímos muita institucionalidade, mas a subjetividade foi deixada de lado. A construção de sujeitos para nova correlação de forças foi esquecida. O sujeito não foi objeto de nossa política nesses 30 anos”, lamentou. E acrescentou: “Nós não nos demos conta de que esse populismo de ultradireita é um lugar vazio, é um lugar onde as pessoas projetam o que elas querem”.