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EPSJV promove conferência sobre trabalho, educação e movimentos sociais

Evento fez parte da abertura do curso de especialização oferecido pela EPSJV para integrantes de movimentos sociais
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 21/06/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

A relação entre Marxismo e Educação, a produção do conhecimento e a educação no campo foram alguns dos temas abordados na conferência ‘Trabalho, Educação e Movimentos Sociais’, apresentada por Demerval Saviani, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Célia Vendramini, professora do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.

Educação: na escola e fora dela

 Saviani começou explicando que a educação aparece na obra de Marx principalmente em três momentos: quando Marx escreve o Manifesto Comunista, junto com Engels, no qual faz a defesa do ensino público e gratuito para todas as crianças; no momento da instrução aos delegados do congresso internacional de trabalhadores; e em 1875, quando faz a crítica à unificação dos partidos operários alemães. Por isso ele defendeu que, para construir uma teoria pedagógica inspirada no materialismo histórico, não basta recorrer às passagens da obra de Marx e Engels diretamente referidas à educação, como fizeram alguns autores. “A tarefa da construção de uma pedagogia inspirada no marxismo implica a apreensão da concepção de fundo de ordem ontológica, epistemológica e metodológica que caracteriza o materialismo histórico. É necessário penetrar no interior dos processos pedagógicos, reconstruindo suas características objetivas e formulando as diretrizes pedagógicas que possibilitarão a organização do trabalho educativo sob os aspectos das finalidades e objetivos da educação, das instituições formadoras, dos agentes educativos, dos conteúdos curriculares e dos procedimentos pedagógicos-didáticos que movimentarão um novo ethos educativo voltado à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura e um novo homem”.

Saviani disse que fez uma aproximação nessa direção ao formular a proposta pedagógica da teoria histórico-crítica, para a qual recorreu a alguns textos de Marx. “A partir daí, tentei construir um método pedagógico que, embora seja construído tendo como referência a escola, não se trata de uma teoria pedagógica escolar, é uma teoria da educação, que considera a prática social como ponto de partida e ponto de chegada e os momentos intermediários como sendo a problematização da prática social e a busca dos instrumentos para enfrentar os problemas que a prática social coloca”, explicou. E completou: “A absorção desses elementos pelos indivíduos de modo a convertê-las em meios de intervenção na própria prática social buscando transformá-las é um processo educativo que se dá em todas as circunstâncias. Nos movimentos sociais temos o mesmo processo, uma prática social que precisa ser compreendida e em relação a qual é preciso intervir para transformá-las”.

Segundo Saviani, a escola se tornou a forma principal e dominante de educação na sociedade atual. “Na sociedade moderna, a escola se tornou a chave de compreensão da educação e se nós podemos compreender a escola sem precisar recorrer ao conceito de educação, nós não podemos compreender a educação sem recorrer a escola. Isso se dá até no senso comum: hoje quando falamos em educação todo mundo pensa em escola, quando se fala em escola todo mundo pensa em educação”. Para Saviani, a forma escolar, como ficou evidenciada, é indispensável na sociedade moderna, mas é importante articulá-la com outras formas. “É importante que os movimentos sociais se apropriem da forma escolar e dêem a direção de por onde a escola deve se organizar. É nesse sentido que os movimentos sociais populares vão se contrapor à educação dominante e direcionada. Se contrapor à educação dominante não é se contrapor à educação escolar, mas construir outra forma de educação, com outro significado, a serviço dos interesses das camadas dominadas e não dos interesses da classe dominante como hoje está constituído”, disse.

Aprender com a história

Falando sobre como a história pode deixar exemplos para o presente e o futuro, Célia Vendramini destacou dois momentos históricos que deixaram contribuições para a educação. Um deles, a Comuna de Paris, em 1871, quando trabalhadores e operários chegaram ao poder e promoveram mudanças em favor da maioria. O episódio mostrou a possibilidade de tomada de poder, de gestão coletiva e de autogestão nas fábricas que foram abandonadas pelos patrões. “Em termos de ensino, a grande questão posta pela Comuna de Paris foi a construção de uma escola laica, sem a influência da Igreja e da moral burguesa. Uma escola pública e gratuita, que pretendia ainda um alcance muito maior, na direção de uma educação multilateral, vinculada à produção e ao trabalho. Uma educação que pressupõe o desenvolvimento das múltiplas potencialidades e capacidades humanas”, disse.

Outro exemplo foi, segundo ela, a Revolução Russa, em 1917. Os educadores soviéticos tomaram como ponto de partida as ideias de Marx e Engels sobre o desenvolvimento humano e o desenvolvimento multilateral da personalidade no comunismo, e sobre a necessidade de combinar o ensino com o trabalho. “Os experimentos inicias na Revolução Russa indicavam uma escola conectada com a vida material e com a produção industrial, portanto, uma escola que busca experimentar algo diferente da forma tradicional. É uma escola que exerceu também uma experiência de coletivismo, de auto-organização dos estudantes e professores”, disse.

Para Célia, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) tenta recuperar algumas experiências da Revolução Russa em termos educacionais, como a auto-organização, a autogestão e a articulação do ensino com o trabalho, pensando a escola e a educação como um espaço de desenvolvimento mais amplo e profundo das potencialidades humanas. “Marx não fez nenhum tratado sobre a educação, mas lançou os fundamentos para pensar o lugar da escola e da educação na transformação social e aí estava colocado como elemento fundamental a possibilidade de desenvolvimento mais amplo e profundo das capacidades e potencialidades humanas”, explicou.

Campo e cidade

Apontando as diferenças e relações entre o campo e a cidade, Célia lembrou que campo e cidade não são antagônicos, são duas faces de uma mesma realidade, pois as formas de produção da vida no campo não se distinguem das formas de produção da vida na cidade. “O que está colocado na produção da riqueza é a apropriação do excedente da força de trabalho humana. Portanto, isso está colocado tanto no campo quanto na cidade. Aparentemente, você está no campo como pequeno produtor rural e pode parecer que não, mas a produção, tanto a que você consome, quanto a que produz, é uma produção industrial”, lembrou.

Para exemplificar, Célia citou o exemplo do leite que consumimos atualmente e que vem embalado em uma caixa de longa duração. “Se fôssemos questionar: esse produto é rural ou urbano? Difícil dizer. Um leite que é embalado industrialmente, em uma caixinha que é de controle de uma ou duas transnacionais no mundo. Qual é o limite, a fronteira entre o campo e a cidade? Isso é cada vez menos observado. Temos formas diferentes de trabalho e produção social, mas essencialmente, a produção da vida é a mesma, seja no campo, seja na cidade”.

Assim como campo e cidade não são antagônicos na produção da vida, Célia ressaltou que a educação no campo também não é antagônica à educação que acontece na cidade. “Compreendemos que a educação no campo se coloca como uma luta estratégica do MST e de outros movimentos sociais do campo, exatamente por estarem no espaço historicamente desprestigiado em termos de acesso às políticas públicas e, em especial, às escolas. Portanto, a educação no campo é uma grande bandeira de luta”, defendeu.

Para Célia, é preciso pensar na educação no campo enquanto uma especificidade que faz parte de algo que é universal, ou seja, uma escola enquanto espaço universal de socialização dos conhecimentos que todos precisam para viver em sociedade. “Talvez fosse melhor, em vez de falar em educação no campo, falar em educação da classe trabalhadora, com bandeiras de luta em comum”.

 Falando mais especificamente do MST, Célia destacou que o movimento tem desenvolvido muitos experimentos que indicam avanços educacionais, especialmente nas escolas itinerantes, que não estão sob um controle maior do Estado. Para ela, o maior desafio do MST é a possibilidade de uma articulação entre a escola, a educação e a produção da vida que tem se desenvolvido nos assentamentos e nos acampamentos. “Penso que o desafio é essa conexão. Como trabalhar na mesma direção, em todos os aspectos - educacionais, produtivos, sociais, de lazer, de saúde e vários outros. E, principalmente, o desafio maior que é como mudar essa sociedade e continuar a viver nela?”. Para Célia, essa é grande questão que o MST coloca. “Um movimento que luta contra o capital, que hoje se expressa na forma do agronegócio, mas que ao mesmo tempo tem que dar conta da vida das famílias nos assentamentos e nos acampamentos. Esse é o grande desafio: mudar, mas continuar a viver nesse mundo e criar experimentos na direção de uma mudança”, ressaltou.

Saviani destacou que o MST é um movimento da maior importância na liderança da luta dos trabalhadores, na medida em que faz uma oposição clara e frontal ao capital. “Nas condições brasileiras atuais, o MST está à frente da luta dos trabalhadores, de modo especial, em um contexto como esse do neoliberalismo em que se buscou quebrar a espinha dorsal do movimento sindical, dos trabalhadores urbanos, operários. Nesse sentido, é da maior importância fortalecer a luta do MST como uma luta de todos os trabalhadores brasileiros, não apenas dos trabalhadores do campo, mas também dos trabalhadores da cidade”.

Teoria do conhecimento

A produção do conhecimento pelo homem, assim como Marx expõe em ‘O Método da Economia Política’ foi um dos temas abordados por Saviani durante a conferência. Para Marx, o movimento global do conhecimento compreende dois momentos. Primeiro, parte-se do empírico, do objeto tal como ele se apresenta de forma imediata. A partir daí, faz-se a análise para conceituar e categorizar o objeto. Após essa análise, chega-se ao segundo momento do processo de conhecimento, que é a construção do concreto. “Antes, nós temos o empírico, aquele que se manifesta aos sentidos. Só depois de um processo de análise, portanto, pela mediação da abstração, é que vamos chegar ao concreto”, explicou. E, contrapondo a lógica dialética, que não exclui as contradições, à lógica formal, completou: “Normalmente, aprendemos pela lógica que o movimento do conhecimento pode ser indutivo ou dedutivo, analítico ou sintético, abstrato ou concreto e, no entanto, na verdade, o conhecimento não se dá dessa forma, se dá pela articulação desses dois aspectos”.

Nesse processo de conhecimento, de acordo com Saviani, o homem elabora os conceitos e formula em que consiste o concreto, que é produto da elaboração de conceitos a partir da observação imediata e da representação. “São conceitos que o homem elabora, mas não elabora inventando, criando, elabora a partir da análise da realidade. É importante distinguir o concreto real do concreto pensado”, disse Saviani, lembrando que, atualmente, existem concepções que se desenvolvem com o pressuposto idealista de que é o homem que constrói o objeto do conhecimento. “E isso se transpõe para a educação na forma de que é o aluno que constrói seus conhecimentos, com o construtivismo. Com isso, diz-se que o professor não transmite o saber porque é o próprio aluno que constrói seus conhecimentos”.

Discordando das análises pós-modernas, que consideram o marxismo ultrapassado, Saviani defendeu que Marx é um autor da atualidade, que, inclusive, fez a crítica da modernidade. “Se o socialismo tivesse triunfado, poderíamos pensar: será que Marx ainda dá conta? Porque Marx não analisou o socialismo, nem podia fazê-lo porque, como cientista, não podia analisar o que não existia ainda. Ele analisou o capitalismo. Então, na medida em que o capitalismo continua sendo a forma dominante de sociedade, Marx continua sendo a referência para compreender essa sociedade e ultrapassá-la”, disse.

Plano Nacional de Educação

Instigado a comentar o Plano Nacional de Educação (PNE) proposto pelo MEC e que está em discussão no Congresso Nacional, Saviani disse que, diferente do que foi aprovado na Conferência Nacional de Educação, o MEC não elaborou um plano que fixasse apenas as normas fundamentais. Ao contrário, fez uma proposta com 20 metas, mas que se desdobram em estratégias. No Congresso, devido aos interesses em disputa, já foram apresentadas mais de três mil emendas ao PNE. “O problema é a falta de articulação. Seria desejável que houvesse uma articulação para que essas aspirações confluíssem em metas básicas. Seria desejável também que fosse restabelecido o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, que conseguia aglutinar um pouco as propostas de interesse em defesa da escola pública para trabalhar com o Congresso”, disse Saviani.

Outra questão polêmica do PNE é, segundo Saviani, o valor do PIB a ser investido em Educação. Na CNE, foi aprovado que 10% do PIB seriam investidos em Educação. Mas no PNE enviado ao Congresso, a proposta é que esse valor caia para 7% do PIB, o mesmo que estava no plano anterior, de 2001. “Agora, voltam a propor 7%, só que para 2020. Não chegamos nem aos 7% do PIB que era para ser investido em 2011, chegamos a 5%. Até porque o MEC diz que o problema da educação brasileira é um problema de gestão, portanto, não é um problema de financiamento, da mesma forma que a saúde. O Brasil acumula programas, leis e planos que não saem do papel”, completou Célia. Para Saviani, trata-se de uma discussão sobre prioridade. “A questão está ligada a se assumir ou não o discurso que a educação é prioridade. Sem isso, vamos ficar sempre patinando. Só ampliar recursos não basta, mas sem os recursos nada consegue avançar. É o pressuposto sem o qual as outras metas não podem ser atingidas. Como podemos atuar seriamente em educação com professores mal pagos, condições de trabalho precárias e professores tendo que dar aulas em várias escolas diferentes?”, finalizou.

Curso

A conferência fez parte da abertura do Curso de Especialização em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais, realizada no dia 13 de junho, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV). O curso é realizado pela EPSJV, com financiamento do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os alunos são militantes, dirigentes e responsáveis pela educação e formação do MST.

Antes da conferência, foi lançado o vídeo do 13º Encontro Estadual dos Sem Terrinha do Rio de Janeiro, realizado em 2010 na EPSJV.