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Estudantes da EPSJV visitam fábrica ocupada da Flaskô

Alunos do curso técnico de gerência em saúde puderam conhecer de perto a experiência de uma fábrica gerida pelos seus próprios operários na cidade de Sumaré.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 11/05/2016 14h59 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Foi uma aula diferente a que os alunos do 3º e 4º anos do curso técnico de gerência em saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) tiveram na última sexta-feira de abril. A ‘sala de aula’: uma fábrica de tambores plásticos em Sumaré, na região metropolitana de Campinas, distante cerca de 500 quilômetros do Rio de Janeiro.  Os professores: os trabalhadores da Flaskô, única fábrica sob controle operário do Brasil. Ocupada pelos seus funcionários em 2003, em meio ao processo de falência de seus antigos donos - ligados à gigante Tigre -, a fábrica permanece produzindo e gerando emprego e renda para dezenas de trabalhadores, que administram, eles mesmos, todas as etapas da produção. Conhecer de perto essa experiência foi o objetivo da visita à Flaskô pelos alunos da EPSJV.

"Queríamos que os alunos conhecessem uma possibilidade real, uma experiência concreta de gestão operária, uma gestão na perspectiva marxista: horizontalizada, com decisão colegiada, participativa, onde não há grandes distanciamentos entre o escritório e o chão de fábrica", explica o professor-pesquisador da EPSJV Marcelo Coutinho, atual coordenador do curso técnico de Gerência em Saúde. Ele foi um dos organizadores da atividade, juntamente com o também professor-pesquisador da escola Leandro Nardaccio. Segundo Coutinho, a visita foi uma oportunidade para que os alunos pudessem estudar, na prática, princípios de gestão do trabalho com os quais eles têm contato em sala de aula. "A gestão que a gente os ensina a fazer aqui na Escola é que todo trabalhador deve se tornar classe dirigente. Não precisa de patrão. É um discurso que é consoante à ideia da Flaskô, de que se a gente dominar a técnica, consegue fazer uma gestão ainda melhor, não visando ao lucro, mas ao bem estar do trabalhador e à superação desse sistema de exploração", avalia Coutinho.

Desde a ocupação - que ocorreu no dia 12 de junho de 2003 - os trabalhadores da Flaskô implementaram medidas que, logo de cara, explicitam a diferença entre uma fábrica gerida por um patrão e uma gerida pelos operários. Imediatamente após a ocupação, os trabalhadores votaram pela redução da jornada de trabalho na fábrica, que era de 44 horas semanais. Atualmente, a jornada na Flaskô é de 30 horas semanais. "Temos sábado e domingo livres, podemos ficar mais tempo com a família, descansar. E ainda geramos empregos, porque com a redução da jornada contratamos mais cinco pessoas para fazer o turno da meia-noite às seis da manhã", revela Carlos Donizete, que trabalha na Flaskô há 20 anos. Outra medida implementada após a ocupação foi a redução da diferença entre o maior e o menor salário pago, que hoje obedece à proporção de três para um: de R$ 1,5 mil a R$ 4,5 mil. Além disso, a Flaskô ainda instituiu licença-maternidade de seis meses e licença-paternidade de um mês aos seus trabalhadores.

Elizeu Domingues é uma boa fonte para falar sobre o antes e o depois da ocupação. Ele é funcionário da Flaskô há 24 anos. Metade desse tempo trabalhou para o patrão, a outra metade sob a gestão operária. "No tempo do patrão não tinha muito respeito pelo trabalhador, era aquela coisa: ou você faz do jeito que eu tô mandando ou tá fora. Hoje não. Hoje os trabalhadores têm liberdade para se expressar, para reclamar, para criticar. E a gente faz o máximo possível para não demitir. A empresa tem uma responsabilidade com o trabalhador", pontua. Abordagem completamente oposta a de antes da ocupação, diz ele. Pouco antes da ocupação, em meio ao processo de falência dos antigos proprietários da Flaskô, os trabalhadores chegaram a ficar sem receber. "O cara abandonou a gente sem energia, sem matéria prima, se salário, sem nada. Abandonou mesmo, literalmente. A parte mais triste do patrão é essa. Ele não quer saber se a sua família está passando necessidade, ele está comprando sua força de trabalho e acabou", critica.

Dívida e dificuldades

O patrão sumiu, mas deixou uma dívida de mais de R$ 100 milhões, em grande parte referente a salários atrasados e outros direitos trabalhistas que a empresa simplesmente deixou de pagar. Tanto que, atualmente, 2% do faturamento da Flaskô, por determinação da justiça, é destinada para o pagamento dessa dívida. Atrelada ao CNPJ da Flaskô, essa dívida é hoje a principal dificuldade que os trabalhadores enfrentam para continuar tocando a fábrica. "Não temos crédito, não temos financiamento. Tentamos pegar dinheiro do BNDES mas não tem jeito, o CNPJ tem uma dívida muito grande. É difícil. A gente não consegue nem reformar os nossos equipamentos", revela Elizeu Domingues.

De acordo com o advogado da Flaskô, Alexandre Mandl, a dívida herdada dos patrões faz com que a fábrica fique em situação bastante vulnerável perante a Justiça. "Não é exagero dizer que ela pode fechar a qualquer momento.", diz Mandl. Das 78 máquinas que havia antes da ocupação, restaram apenas quatro atualmente. As outras foram leiloadas por determinação da Justiça, e paira sobre a Flaskô a ameaça de que as máquinas que sobraram também sejam leiloadas. Para piorar, alguns trabalhadores da empresa respondem a processos por conta da ocupação. Segundo Mandl, o conservadorismo do Judiciário é patente nas decisões referentes à Flaskô. "Tem um juiz aqui de Sumaré que falou que a organização das ocupações de fábrica, junto com a ocupação de terra e ocupação por moradia, é uma organização terrorista internacional que está se colocando em Sumaré. É ridículo o nível a que se chega", aponta Mandl. Atualmente, a luta dos trabalhadores junto ao governo federal é pela adjudicação da propriedade da fábrica. Por meio desse ato judicial, o Estado assumiria a propriedade da fábrica como forma de sanar as dívidas de seus antigos proprietários com a Fazenda Nacional. A ideia é negociar com o governo para que a Flaskô seja considerada de interesse social e público e que seu controle permaneça sob o controle coletivo dos trabalhadores. "A questão de fundo para nós é a da defesa dos postos de trabalho. Estamos em uma conjuntura econômica em que só no estado de São Paulo foram 4,2 mil fábricas fechadas em 2015. O que fazer diante desse quadro?, questiona o advogado da Flaskô, completando em seguida: "A riqueza das fábricas ocupadas é para mostrar que nós não precisamos de um patrão, não precisamos de uma apropriação privada do trabalho. Queremos que essa moda pegue", conclui. 

Cooperação técnica

Embora assinale que, desde a ocupação, não houve mais acidentes de trabalho na Flaskô, Alexandre Mandl conta que a fábrica enfrenta dificuldades no que se refere à segurança e saúde do trabalhador. Com seu faturamento inteiramente comprometido mês a mês com o pagamento de salários, compra de matéria-prima e gastos com energia elétrica, entre outros, e impossibilitada de contrair empréstimos, a fábrica, segundo o advogado, tem dificuldades de cumprir com algumas normas de segurança do trabalho e de saúde do trabalhador que exigiriam investimentos de vulto. Segundo Marcelo Coutinho, a ideia é que a EPSJV contribua para reverter esse quadro. Ele explica que pretende articular um canal de cooperação técnica entre a fábrica ocupada e a Escola. "A ideia é a gente aprender com eles como é que se faz uma gestão operária, mas pensar também como é que a gente, enquanto unidade da Fiocruz, pode também ajudar na questão da ambiência, da saúde do trabalhador. A gente tem com certeza alunos capazes de contribuir no desenvolvimento de projetos de baixo custo para atuar para melhorar as condições de trabalho ali", diz Coutinho.

Entre os estudantes que foram à Sumaré, a avaliação da visita foi positiva. Thamires Soares, aluna do 3o ano do curso técnico de Gerência em Saúde, conta que ficou impressionada com o que viu ali. "A gente tem falado muito em sala de aula sobre a democracia, sobre lutas e reivindicações por direitos, e a Flaskô é um exemplo que me impressionou bastante no sentido do risco que aqueles trabalhadores correram para fazer valer o seu direito ao trabalho, a uma vida digna. E eu fiquei muito surpresa com o que eles conseguiram fazer durante a ocupação no sentido de democratizar a gestão da fábrica", diz Thamires. Yuri Gonçalves, colega de sala de Thamires, destaca a conscientização política que os trabalhadores adquiriram a partir da ocupação. "Se você fosse discutir política com qualquer funcionário da Flaskô, todos eles têm essa consciência de que estavam sendo expropriados na sua força de trabalho e hoje eles usam essa força de trabalho para eles e para o coletivo. Se todos os trabalhadores conhecessem metade do que a Flaskô faz hoje, eles entenderiam que dá para produzir sem ter que trabalhar para o enriquecimento somente de um pequeno grupo de pessoas", afirma. Segundo Yuri, a visita serviu para que os estudantes conseguissem compreender melhor a aplicação prática do que eles vinham estudando em sala de aula. "Tudo o que a gente ouve e lê está expresso em algum lugar na Flaskô. O que a Escola diz não é utópico. A Flaskô é um exemplo do que a organização dos trabalhadores é capaz de fazer", avalia.

Comentários

Gostaria de dizer que fiquei muito satisfeita de saber que o Prof. Marcelo Coutinho levou seus alunos para conhecer este projeto.Fui aluna do EJA e tive o prazer de conhecer a Flaskô em uma palestra, em sala de aula .Achei inédito e hoje estou mais feliz ainda com esta matéria impressa aqui.Parabéns professor e boa sorte para a Flaskô. Que a Fiocruz consiga fazer parte também de mais este projeto.

Interessante. Só não concordo com a intenção de fazer o Estado arcar com o ônus da fábrica. Não considero função estatal ser empresário.