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Expressões da liberdade

Apresentações culturais, exibição de filmes e debates fizeram parte da programação do Sankofa e do Arte e Saúde. Juntos, os eventos abordaram a temática da liberdade, resgataram a luta contra o racismo e exaltaram o valor da cultura africana e afro-brasileira
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 13/09/2019 11h47 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
'Eu Estou Vivo', encenação do grupo de teatro Capachos da Arte Foto: Ana Paula Evangelista/EPSJV

‘Arte, Corpo e Saúde: expressões da liberdade’. Este foi o tema que norteou a terceira edição do Sankofa, realizado anualmente pelos alunos e docentes da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Pela primeira vez, a iniciativa que vem iluminar a luta da população negra pelo seu direito de existir somou-se a outro tradicional evento da Escola, o Arte e Saúde. Juntos, Sankofa e Arte e Saúde buscaram refletir os motivos pelos quais os corpos negros, a despeito do fim da escravidão, seguem excluídos social, econômica e culturalmente. Foram três dias de programação (9, 10 e 12 de setembro), que contou com apresentações culturais, exibição de filmes e documentários, mesas de debates e uma feira com artigos produzidos por empreendedores negros, sob o propósito de valorizar a cultura africana e afro-brasileira.

“O tema encontra justificativa na necessidade de pensar o porquê de os corpos negros não terem liberdade na sociedade ainda hoje. E serve para lembrar também os jovens que eles fazem parte de um processo histórico de lutas”, explicou a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz e uma das idealizadoras do Sankofa, Valéria Carvalho. Ela acrescentou que o encontro foi orientado pela ideia de ‘liberdade palmarina’, em uma alusão à luta dos negros palmarinos – do quilombo dos Palmares –, maior símbolo da resistência à escravidão da história do Brasil. “Buscamos falar em todos os momentos da necessidade de ‘aquilombar-se’, ou seja, da concepção de que fazemos parte de uma história de resistência inaugurada pelos quilombos. Sendo nós frutos dessa resistência, portanto, precisamos nos reconectar com nossas ancestralidades para atuar no presente”, detalhou.

Função da arte
A primeira mesa debateu o lugar da arte na educação básica’. Amanda Nolasco, ex-aluna da Escola Politécnica que atualmente cursa teatro na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio), ressaltou a importância de que a arte esteja no currículo escolar, pelo fato da disciplina ajudar os estudantes a refletirem sobre si mesmos e questionarem a realidade que os cerca.

A mesa, que foi seguida das apresentações cênicas ‘Eu Estou Vivo’, encenada pelo grupo de teatro Capachos da Arte, do Colégio de Aplicação da Universidade do Rio de Janeiro (CAp UFRJ), e ‘Exercícios de Tableaux Vivants’, representada por alunos do segundo ano da EPSJV/Fiocruz, contou também com a participação da coordenadora do grupo Capachos da Arte, Andrea Pinheiro, e da diretora do espetáculo da CAp UFRJ, Júlia Helena. . “O tema proposto pelo evento me remeteu ao texto 'Liberdade, Liberdade' de Millôr Fernandes, que por meio de várias canções buscou traduzir seu inconformismo com a repressão do regime militar, inaugurando um estilo de espetáculo que viria a ser chamado ‘teatro de resistência’”, explicou Andrea durante o debate.

Julia, por sua vez, buscou inspiração no texto 'Torquemada' de Augusto Boal. “Minha escolha deveu-se ao fato de ter conhecido o texto no curso de teatro da UFRJ, quando participei como atriz de uma cena proposta por uma professora. O texto mexeu comigo na ocasião”, disse. A obra ‘Torquemada’ retrata os dias de prisão vivenciados por Boal, que foi sequestrado e preso em fevereiro de 1971, a caminho de casa logo após sair do Teatro de Arena, e torturado com choque elétrico no pau de arara. “Trabalhamos com algumas músicas do período da ditadura civil-militar e buscamos traduzir as dores desse período trazendo na encenação corpos enrijecidos”, reforçou Júlia.

Finalizando a mesa, Helena Vieira, professora-pesquisadora da EPSJV, que orientou os alunos do 2º ano em ‘Exercícios de Tableaux Vivants’ , observou como o teatro contribui para ampliar os debates sobre o cotidiano. “O que fizemos aqui é um exemplo disso: saímos do cotidiano da sala de aula. E, se não fosse assim, não conseguiríamos falar e discutir tanto”, realçou. O tableau vivant, expressão artística aplicada pelos alunos da EPSJV/Fiocruz, foi uma forma de entretenimento que teve origem no século 19 com o advento da fotografia, onde figurantes trajados posavam como se tratasse de uma pintura. A expressão francesa define a representação por um grupo de atores ou modelos de uma obra pictórica preexistente ou inédita.

A parte da tarde destacou-se pela mesa de debate ‘Corpo e Resistência’. O momento foi inspirado pelo filme peruano ‘A teta assustada’, dirigido por Claudia Llosa e que estreou em 2009, tendo recebido naquele ano os prêmios no Festival de Cinema de Havana e o Urso de Ouro. Ele conta a história de Fausta, encenada por Magaly Solier, uma jovem mulher que segundo suas crenças têm uma doença chamada "teta assustada". A rara enfermidade é transmitida pelo medo e sofrimento de mãe para filho através do leite materno porque sua mãe foi estuprada por terroristas em um momento muito difícil no Peru na década de 1980. Assim, Fausta introduz uma batata na vagina para evitar ser estuprada e vive fora do mundo, pois precisa enfrentar a morte de sua mãe e pretende enterrá-la em sua cidade natal, mas não tem dinheiro para isso. A história, segundo a debatedora e professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Renata Sodré, retrata as marcas deixadas pela chamada "época do terrorismo" nos Andes peruanos, quando milhares de habitantes foram assassinados. “Toda violência deixa marcas. Não foi diferente o que fez a colonização espanhola no Peru”, descreveu.

A luta de mulheres negras

‘Resistir’, verbo transitivo indireto e intransitivo, sinônimo de ‘conservar-se firme’, ‘lutar’, ‘enfrentar’... O verbo consegue resumir o que se assistiu no segundo dia do Sankofa e do Arte e Saúde. Na mesa de debate ‘Saúde da população negra e racismo ambiental: a perspectiva da liberdade palmarina’, o público ficou enternecido com as histórias de luta de duas mulheres negras, marisqueiras da Ilha de Maré, em Salvador (BA), contra um modelo que destrói um território tradicional em nome do desenvolvimento econômico do estado. Lideranças da Articulação Nacional das Pescadoras da Ilha de Maré, Eliete Paraguassu da Conceição e Noêmia Farias Pedro descreveram seu dia a dia no território, realçando como elas e tantas outras mulheres negras vêm enfrentando as empresas petrolíferas que começaram a se instalar na região por volta de 1950 e que, hoje em dia, são as responsáveis por derramamentos de óleo e contaminação das águas por lixo industrial.  Na região, que é rodeada por manguezais intercalados por belas praias e mar calmo, estão a Refinaria Landulpho Alves (RLAM), o Complexo Industrial de Aratu (CIA), o Centro Industrial do Subaé e o Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC), além do Porto de Aratu-Candeias, que cuida de 60% de toda a carga movimentada em modal marítimo na Bahia.  “Ilha de Maré só tem trilha, não tem estrada. Nós vamos pescar por um caminho, pelo mangue, mas precisamos voltar por outro, porque não sabemos o que nos espera”, exemplificou Eliete, denunciando que além da poluição provocada pelas empresas, sofre também muitas ameaças de funcionários das empresas que lá estão.

Ela contou que a Petrobrás chegou a processá-la por conta de sua luta em defesa da população e do território. Além disso, de acordo com ela, o governo da Bahia se nega a discutir a problemática e enxerga as lideranças comunitárias como um "inimigo do Estado". “Os corpos pretos na Bahia não importam. O complexo industrial do Porto de Aratu, por exemplo, é mais importante que as vidas das pessoas que ali moram e tiram seu sustento, a ponto de o governador da Bahia entrar com uma ação contra a gente, denunciando que somos contra o desenvolvimento do estado, numa tentativa de criminalizar nosso movimento”, revelou, caracterizando a situação como racismo ambiental.

Os casos de vazamentos de óleo e de contaminação por lixo industrial, provocados pelo complexo petrolífero, têm sido denunciados pelas lideranças em documentários, a exemplo do que fizeram em ‘No Rio e no Mar’, dos diretores holandeses Jan Willem Den Bok e Floor Koomen. O filme, lançado em 2016 e premiado internacionalmente, expõe a luta de Eliete Paraguassu, bem como da marisqueira Marizelia Lopes. Além desse, o vídeo ‘Assassino invisível: lixo industrial na Ilha de Maré chega a níveis mortais’, produzido pela rede Mídia Ninja – e que foi exibido no início da mesa de debate –, denuncia a contaminação por lixo industrial na região. O documentário, que também traz como personagens as marisqueiras Eliete e Marizelia, revela que estudos comprovaram a presença de altos índices de metais pesados nas águas de Ilha de Maré, como cádmio e chumbo, e mostra que uma moradora morreu aos 13 anos em consequência de câncer no ombro e complicações no fígado.

“É preciso agora as universidades participarem da nossa luta e nos ajudar a nos manter em nossos territórios porque não queremos ir para a cidade grande. Queremos permanecer lá, seguindo com o nosso modo de vida”, salientou Eliete. Esse também é o desejo de Noêmia, que afirmou ter prazer em pescar todos os dias. “Eu não aguento ficar um dia sem pescar. Se me colocar fora da Ilha, eu piro”, garantiu. A marisqueira informou que costuma trazer do mangue cerca de 30 quilos de ostra por dia e que ela mesma comercializa seu pescado na feira. “Imagina... Depois de 40 anos como pescadora e marisqueira, eu ter que ir trabalhar como empregada doméstica. Eu sempre tive liberdade no mangue. Mas querem tirar ele de nós, nosso território está sendo destruído”, manifestou. Noêmia ainda contou que em um desses dias de trabalho, uma lancha dos funcionários da Petrobrás passou acelerada, jogando sua embarcação para dentro do mangue. “Se não fosse a ajuda de duas pessoas que passaram em seguida, eu não teria conseguido sair da lama do mangue porque a embarcação é pesada”, relatou.

A mesa de debate foi encerrada com a fala da trabalhadora da EPSJV/Fiocruz e ex-aluna da Pós-Graduação da Escola, Danieli Naziazeno Saucedo. Mestre em Educação Profissional pela EPSJV/Fiocruz, onde apresentou o trabalho ‘Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: um equilíbrio coletivo’, ela defendeu que falar de saúde da população negra significa falar de corpo, da terra e dos elementos da natureza. “Implica falar desse lugar que eu ocupo, de mulher negra, que frequenta o candomblé, intelectual e usuária do SUS”, realçou.

Ela abordou que o racismo, nas suas diversas expressões, impacta histórica e negativamente a saúde da população negra. “O racismo geográfico tem a ver com as desapropriações de famílias formadas por negros. O ambiental se expressa com o desmatamento, os resíduos tóxicos, os lixões a céu aberto, a exemplo do que vem acontecendo em Ilha de Maré. O econômico, por sua vez, tem a ver com o fato de as populações negras historicamente marginalizadas receberem menos que a população branca, mesmo ocupando os mesmos lugares. O religioso tem a ver com a ‘demonização’ das religiões de matriz africana. O racismo científico-tecnológico tem a ver com a ideia que ‘somos um povo que não produz conhecimento’. E o educacional implica não garantir à população negra o direito à educação”, listou.

Na prática, disse, o racismo faz com que mulheres negras recebam menos anestesia na hora do parto, façam um número menor de consultas pré-natal, recebam poucas orientações sobre aleitamento materno, se comparado com as mulheres brancas. “Isso porque é ensinado à população branca que o corpo da mulher negra é resistente, suporta a dor, por isso não precisa de anestesia na hora do parto”, criticou. E complementou:  “Os homens negros não chegam ao SUS por conta da construção da masculinidade. Os homens negros são ensinados que não precisam de cuidados, que isso não é importante”.
O terceiro dia do Sankofa e do Arte Saúde destacou-se pela realização de oficinas culturais, nas quais os alunos se dividiram em danças africanas, escritas literárias negras, capoeira e slam. Esse último caracteriza-se por uma batalha de versos, que se firmou há cerca de dez anos, como espaço de literatura nas periferias no Brasil.