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Grupo da EPSJV visita a Escola Nacional Florestan Fernandes

Alunos, ex-alunos e profissionais passam uma semana em curso de formação política na ENFF
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 15/02/2011 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Alunos trabalhando no roçaO convite veio ainda no ano passado e partiu de João Pedro Stédile, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): “Todos os que tiverem interesse sintam-se convidados a passar um tempo em uma das nossas escolas, para ver a realidade em contato com a teoria”, disse Stédile em uma palestra durante as comemorações dos 25 anos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).



Os estudantes da EPSJV levaram a sério o convite e, seis meses depois, a visita se tornou realidade. Entre os dias 4 e 11 de fevereiro, um grupo de 20 pessoas participou de um curso de formação política na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema/SP. Eles conheceram um espaço em que o trabalho intelectual não fica nunca descolado do manual: além do tempo passado em sala de aula, uma parte do dia era dedicada trabalhos domésticos e ainda ao trabalho na roça, voltado para a horta, o viveiro, os animais e o pomar.



Alunos lavam a cozinhaAtividades como essas fazem parte da rotina de todos aqueles que passam pelos cursos da ENFF. Isso porque o espaço é autogestionado, o que significa que não há funcionários na Escola, à exceção dos motoristas. Para manter a Escola funcionando, são os próprios estudantes que se dividem em núcleos para cuidar de tudo. Aliás, a própria construção da ENFF foi feita nesses moldes: de 2000 a 2005, mais de mil militantes de movimentos sociais trabalharam voluntariamente na construção, ao mesmo tempo em que participavam de aulas.



De acordo com a coordenadora político-pedagógica da ENFF, Maria Gorete Sousa, mais de 16 mil pessoas já passaram pela Escola, participando de cursos e seminários. Mas ela explica que o grupo da EPSJV trouxe uma novidade: geralmente, os cursos da Escola são destinados apenas a militantes de movimentos sociais. Essa foi a primeira vez em que se aceitaram estudantes que não faziam parte necessariamente de nenhum movimento. Além das aulas de formação política, os estudantes participaram de uma oficina sobre tecnologias sociais organizada por Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Politécnica e coordenador do Canteiro Experimental de Tecnologia Social em Saneamento e Saúde (Cetesa/EPSJV).



Como surgiu o MST



Estudantes em aulaA primeira parte do curso tinha por objetivo contar a história do MST. Para resgatar o passado histórico do movimento, Gorete, responsável por orientar essa etapa, começou por pedir que os próprios alunos se dividissem em grupos para lembrar a história do Brasil, desde a chegada dos portugueses, com foco nas lutas pela terra.



O tempo era pouco, mas os grupos fizeram um grande apanhado de momentos importantes da história brasileira: entre outros aspectos, eles lembraram a resistência dos povos indígenas; a divisão do território brasileiro em capitanias hereditárias – consideradas o berço da concentração de terras; a escravidão; revoltas populares como a balaiada e a cabanagem; a histórica produção brasileira de insumos para exportação em grandes propriedades; a guerra de Canudos; os problemas do coronelismo e do voto de cabresto; a cooptação de movimentos de trabalhadores durante a era Vargas; e o surgimento das ligas camponesas.



Gorete chamou a atenção para um fato pouco notado: o de que a terra apenas se tornou uma mercadoria em 1850. “Foi aí que se estabeleceu a lei de terras, que reorganizou a estrutura fundiária no Brasil. Os camponeses pobres, que não tinham o título da terra, e os ex-escravos que viriam a existir mais à frente [o fim oficial da escravidão se deu 38 anos mais tarde], sem dinheiro, não teriam nunca acesso à terra. É essa lei que marca o surgimento de uma nova categoria no campo: os sem-terra. Antes, a terra era livre. A partir daí, é preciso comprá-la. Ela vira mercadoria”, disse a professora.



Aluno brinca com um bezerroEla explicou ainda como surgiram as ligas camponesas – de acordo com Gorete, os movimentos no campo nasceram inicialmente com foco apenas no assistencialismo, sem consciência de classe. Ela lembrou também alguns marcos que favoreceram o fortalecimento de movimentos do campo, como a ida do Partido Comunista Brasileiro (PCB) para áreas rurais e a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), nos anos 1970, em meio à ditadura civil-militar. “Havia, dentro da Igreja Católica, grupos progressistas importantes e, durante a ditadura, o único espaço que sobrou para organizar o povo foi a Igreja, principalmente no interior do Brasil. E ela, que estava em todo o país, cumpriu um papel fundamental de articulação dos movimentos camponeses num momento desfavorável para as famílias que viviam no campo”, disse Gorete, lembrando que, na época, a chamada ‘revolução verde’ , que trouxe para a agricultura novas tecnologias e agrotóxicos, expulsou muitos trabalhadores do campo para as cidades e intensificou a monocultura.



Trabalho no pomarAinda no fim do anos 1970, se começou a discutir a possibilidade de organizar um movimento nacional. “A luta só daria mesmo certo caso formássemos um movimento nacional, já que, do contrário, a repressão seria muito grande e as chances de longevidade seriam pequenas”, disse Gorete.



De acordo com ela, foram cinco anos de articulação. Finalmente, em 1984, foi realizado um encontro nacional em que o movimento se organizou formalmente. “Nesse primeiro encontro já foram definidos os nossos objetivos, e é preciso atentar para dois fatores: o primeiro é que nos intitulamos um movimento de trabalhadores rurais, e não de camponeses. Camponeses são, por definição, sujeitos que têm um pedaço de terra e fazem agricultura familiar. Queríamos incluir outros tipos de trabalhadores, como boias-frias. O segundo é que, entre nossos objetivos, o primeiro já era lutar por uma sociedade sem explorados nem exploradores”, observou a professora.



Sobre a sociedade capitalista



Vista geral da ENFFNa segunda parte do curso, o historiador Ângelo Diogo Mazin explicou como funciona a sociedade capitalista. Uma das primeiras provocações do professor foi perguntar aos alunos: como se fica rico? A turma observou que hoje se ‘vende’ uma ideia de que é fácil ficar rico rapidamente, mas que, em geral, fica-se rico com a exploração de trabalhadores e com o investimento no mercado financeiro. “A mídia vive dizendo o quanto é simples juntar R$ 1 milhão”, disse um estudante.

Diogo analisou: “A maior parte da sociedade pensa que se fica rico só por meio de esforço pessoal. Nosso trabalho é construir e divulgar uma nova forma de pensamento, de leitura da sociedade”.



Ele explicou que a intenção do capitalista é iniciar um processo de produção e terminá-lo com mais dinheiro do que o inicial. “A intenção é valorizar o capital”, disse, mostrando a seguir que o lucro obtido pelo capitalista é fruto da mais-valia – a diferença entre o salário pago aos trabalhadores e o valor produzido pelo seu trabalho.



A Via Campesina



João Pedro StédileNo último dia de aulas, João Pedro Stédile fez uma palestra contando a história da Via Campesina, uma organização internacional de camponeses presente em cerca de 100 países e composta, no Brasil, por dez movimentos .



De acordo com Stédile, a organização surgiu oficialmente na década de 1990: em 1993, na Bélgica, foi realizada a Primeira Conferência da Via Campesina, e foi aí que ela se constituiu enquanto organização mundial. Stédile explicou que com o desenvolvimento do capitalismo financeiro, da globalização e do neoliberalismo foi preciso desenvolver novas formas de organização, e pontuou ainda que deixou de fazer sentido lutar apenas por terra. “Muitos movimentos, como o MST, começaram lutando somente pela terra. Hoje, não dá mais. A luta tem que ser mundial, e tem que ser entre modelos: o do trabalhador contra o do capital”, disse.



No que diz respeito aos modos de produção no campo, Stédile afirmou que o capital usa monocultura, grande produção, mecanização, agrotóxicos, agressão ao meio ambiente e sementes transgênicas. O modelo dos trabalhadores do campo, por outro lado, aposta na diversidade de culturas, nas pequenas unidades de produção, na necessidade de muita mão-de-obra, no respeito à biodiversidade, no equilíbrio ecológico e no uso de sementes nativas.



Mística



Um dia de atividades na ENFF começa com uma ‘mística’, que é um momento de integração. Pode haver encenações, leitura de poemas, cantos e a lembrança de lideranças importantes para o movimento, por exemplo – ou ainda tudo isso junto.



Grupo reunido após a místicaEm seu último dia na ENFF, foi o grupo de alunos da EPSJV que ficou responsável por organizar a mística. Na véspera, eles tiveram uma aula sobre o significado desse momento para os militantes do MST – a mística surgiu para que os Sem Terra pudessem ter um momento para compartilhar sentimentos, crenças e utopias, e também para aliviar as tensões presentes nos assentamentos, como as repressões policiais e as agressões dos fazendeiros.



O grupo de estudantes, que se definiu como ‘Semente Criolla: semeando transformações!’ decidiu ressaltar, na mística, a importância da integração entre campo e cidade. Para mostrar essa integração, eles uniram alguns objetos que representam os dois mundos – o  jaleco da EPSJV, um facão e a bandeira do MST –, além de um livro, representando o estudo. Além disso, os estudantes leram um texto contando a experiência deles na Escola, recitaram um poema escrito pelo ex-aluno Igor Silva (confira aqui) e disseram, cada um, palavras que simbolizavam o que eles trouxeram de volta para o Rio, como esperança e luta.



A ex-aluna Clarissa Pádua compara o significado das místicas para o movimento à força que a visita à ENFF trouxe ao grupo da EPSJV: “Assim como a mística estimula e inspira as atividades e as lutas, acredito que esta visita à ENFF simboliza uma motivação e sensibilização para todas as nossas ações daqui para frente”, disse. Para Jorge Luís, aluno da EPSJV, estar na ENFF “é dar vivacidade ao que parecia ser um sonho distante”: “É transformar em realidade o que um dia todos acreditavam ser impossível, é poder entender o sentido da palavra ‘revolução’ e compreender o movimento dialético entre teoria e prática”.



Saiba mais sobre a história da ENFF na revista Poli nº 11