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Lutas pela educação e políticas públicas são debatidas por alunos e trabalhadores

â€œÉ preciso transformar a luta pela educação em uma luta social mais ampla”, afirmou Roberto Leher, no segundo dia do Seminário
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 18/08/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Políticas públicas e lutas pela educaçãoDiscussões de fôlego sobre a forma como tem sido conduzida a luta por educação nos últimos anos, a construção de políticas públicas para a área e as transformações por que ela vem passando abriram o segundo dia do Seminário Trabalho, Educação e Saúde – 25 anos de Formação Politécnica no SUS, que marca o aniversário da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Na palestra ‘Políticas públicas e lutas pela educação no Brasil: balanço dos últimos 25 anos’, Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aproveitou a comemoração para propor reflexões sobre a luta pela escola pública e sobre as razões que vedaram a expansão de instituições como a EPSJV, inspirada em um modelo de escola unitária, que rejeita a disjunção entre o trabalho intelectual e o trabalho de execução.



Segundo Leher, a luta pela escola pública no Brasil é historicamente uma luta de educadores, e não dos trabalhadores como um todo. “Mesmo lideranças importantíssimas, como Florestan Fernandes, tinham clareza de que a luta estava dentro de uma lógica liberal burguesa. Desejava-se uma escola pública, gratuita e laica, mas não unitária: isso só é possível quando se recusa a obediência ao capital”. Leher lembrou as palavras do próprio Florestan Fernandes ao dizer que faltou um novo “ponto de partida” – que seria transformar essa luta pela educação em uma luta social mais ampla, abraçada pelo conjunto dos trabalhadores. “E, enquanto os trabalhadores nunca conseguiram transformar a educação em tema de luta, as classes dominantes, por outro lado, souberam com muita clareza que a educação precisaria ser organizada e dirigida por eles para que os trabalhadores estivessem sob sua direção”, observou.



Como são vistos os trabalhadores



Leher afirmou que os pensadores liberais, de alguma forma, sempre ‘coisificam’ o trabalhador, negando sua humanidade: Emmanuel Sieyès os chamava de “instrumentos bípedes”, enquanto Friedrich Nietzsche os classificava como “máquinas inteligentes”. Mas, segundo o palestrante, talvez os mais importantes para a compreensão de como vem sendo feita a educação hoje tenham sido os economistas da Escola de Chicago, que estudaram a relação entre a educação e o trabalho. “Para eles, a educação é parte do processo do capital. Eles ressignificaram a formação humana como ‘formação de recursos humanos’ – surgiu assim a teoria do capital humano, segundo a qual a escola tem a função social de formar recursos humanos”, explicou.



A preocupação dos setores empresariais com a educação no Brasil se fez notar, segundo Leher, nos anos 1980 e, principalmente, na década de 1990. “Formou-se o Programa de Promoção da Reforma Educacional na América Latina e no Caribe (Preal), uma coalizão financiada pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), que exerceu enorme influência sobre reformas educacionais”, observou o professor. De acordo com ele, a ideia era que os trabalhadores da educação deixassem de ser a figura central no ato pedagógico, sob argumentos de que os professores não estavam preparados para a escola moderna. “Precisa-se, em última instância, fragilizar a figura do professor”, apontou Leher.



E como se faz isso? “Expropriando o trabalhador do conhecimento, assim como se fez nas fábricas, com a fragilização dos operários. É preciso que os trabalhadores da educação percam o controle sobre o ato pedagógico – o que ocorre por meio da incorporação de outros elementos no processo, como as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), tão usadas na educação a distância. O professor passa a ser alguém que simplesmente cumpre tarefas docentes, deixando de definir o conteúdo de seu trabalho”, explicou Leher.



Interesses de empresários como política pública



Leher contou que, no Brasil, os empresários se reuniram em 2001 no movimento Brasil Competitivo, formado principalmente por bancos e setores produtores de commodities, que mais tarde veio a originar o Movimento Compromisso Todos pela Educação, liderado por instituições como Itaú Cultural, Bradesco, Santander, Gerdau, Vale, Odebrecht, Votorantim, Fundação Roberto Marinho e Fundação Victor Civita. Segundo ele, não é novidade que o meio empresarial interfira na educação. “O que é novidade, o que é grave, é que isso virou uma política de Estado”. Ele explicou: a agenda desses empresários acabou servindo de base para a agenda dos governos por meio do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), do governo federal, que reivindica como sua a agenda do Todos pela Educação. “Hoje, dizemos com tranquilidade que o papel da escola é formar estudantes com certas competências. Todos os documentos oficiais falam nas competências. É impressionante como as próprias palavras das classes dominantes viram as palavras de ordem do campo educacional, e é importante ter consciência desse movimento”. Leher denunciou que institutos como o Ayrton Senna organizam hoje tanto materiais pedagógicos quanto o próprio tempo adicional da escola: “No programa Mais Educação, organismos privados dirigem o tempo extra que os alunos passam na escola: os professores recebem dessas fundações materiais a serem utilizados e, em algumas regiões, já há avaliações semanais dos alunos para ver se está ocorrendo tudo certo”, disse.



Um exemplo da ‘vitória’ do empresariado no caso das universidades é a ressignificação de sua função social – elas passam a ser responsáveis pela inovação tecnológica. “Historicamente, mesmo em conceitos liberais, a universidade é local de produção e difusão de conhecimento científico. Pode parecer que ‘inovação tecnológica’ seja algo próximo disso, mas não é. A inovação é historicamente feita dentro de empresas, porque tem a ver com transformar mercadorias em objetos de consumo. Mesmo nos Estados Unidos são as empresas as responsáveis por isso. E, estranhamente, num país como o Brasil, em que nem as empresas fazem inovação tecnológica, a política de educação é feita em cima disso, e no sentido de dizer que isso é papel da universidade. Quando se diz isso, a universidade passa a ser uma prestadora de serviço para corporações. Sua função social e a formação humana ficam deformadas”, criticou.



O que é público?



Para Leher, essa é uma questão central que deve voltar a ser pensada, uma vez que o público é frequentemente confundido com aquilo que é feito pelo Estado. Ele lembrou Marx e afirmou que a escola deve, sim, ser garantida pelo Estado, mas que o estatal só é transformado em público quando há participação popular – é “o Estado que precisa ser rudemente educado pelo povo”. Exemplos disso, destacou, podem ser encontrados no Brasil, com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e no Equador, com a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (Conai), que dirigem escolas públicas em seus países.



Rumos da educação profissional



Durante o debate, diversos participantes se questionaram sobre o futuro da educação – e da educação profissional. Leher demonstrou preocupação ao falar sobre a expansão dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia no país – os Ifets. “O modelo dos Ifets está sendo construído de forma problemática. Ao estudar alguns documentos da Usaid, li um informe de que o atual ministro da Educação teria procurado a embaixada estadunidense em Brasília pedindo uma interlocução sobre o modelo das escolas técnicas a serem expandidas. A embaixada afirmou que o faria por meio da Usaid. Procurei muito, mas não encontrei nenhuma informação a esse respeito no site do MEC. No entanto, é o que a Usaid diz”, contou o professor.



Segundo a agência, o modelo adotado é o dos community colleges, que oferecem cursos terciários de curta duração nos Estados Unidos. Leher contou que a mesma assessoria já foi dada no México, onde foram criados 300 institutos de tecnologia. “Fez-se uma avaliação da força de trabalho mexicana e chegou-se à conclusão de que apenas 10% da população precisava da graduação tradicional, completa, enquanto o restante poderia fazer cursos de curta duração. Em um primeiro momento, os institutos ficaram cheios, mas, em seguida, se esvaziaram: os estudantes, que não são bobos, perceberam que estava sendo oferecida uma formação precária, e voltaram a reivindicar a universidade”, observou.



Também foi solicitado que Leher falasse sobre a educação corporativa, tão comum em empresas hoje. Segundo o professor, esse tipo de formação demonstra o “novo espírito do capitalismo”, em que o que vale é “como cada um de nós mostra os dentes no mercado”. “E esse novo espírito é difundido como sendo virtuoso: um capitalismo que valoriza a criatividade e o empreendedorismo individuais e em que, portanto, trabalhadores diferentes não podem receber o mesmo salário. E essa reestruturação só funciona se os trabalhadores internalizarem esse novo ethos do trabalhador, daí a importância da educação corporativa nesse sistema”, explicou.



A mesa foi coordenada por André Malhão, ex-diretor da EPSJV, que fez um
resgate da história da Escola e do contexto em que ela foi criada. André, que está na EPSJV desde 1987,
lembrou que, no início, os próprios profissionais da Escola não tinham
uma noção muito clara do que era politecnia. "Era um momento de tensão. A Escola era pequena - éramos apenas 14 pessoas - e ainda tínhamos aquela ideia de formação de recursos humanos internos e de trabalhadores da saúde. Havia uma confusão de concepções. Com o tempo, estudamos e aperfeiçoamos nossas bases teóricas. Hoje, temos um referencial teórico-metodológico que infelizmente não é muito comum", disse. Ele também afirmou que cada vez mais se intensifica a necessidade de sair do lugar de "escola" em sentido estreito, e educar para a produção e divulgação de conhecimento científico - a criação da pós-graduação da EPSJV foi citada como exemplo dessa postura.



As atividades da manhã foram encerradas com uma apresentação do violonista Luis Carlos Barbieri.





Leia aqui o livro 'Trabalho, Educação e Saúde: 25 anos de Formação Politécnica no SUS' , em que Roberto Leher assina o artigo 'Anos de Educação Pública: notas para um balanço do período', usado como base para o seminário.