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Manifestações que tomaram o país foram tema de debate na EPSJV

Evento reuniu pesquisadores e representantes de movimentos sociais
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 19/07/2013 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Representantes de movimentos sociais e pesquisadores se reuniram no último dia 17 para um debate sobre os protestos de junho de 2013, realizado por duas unidades da Fiocruz, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP). O evento teve a participação de Vitor Mariano, do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas; Rafael Calazans, do Raízes em Movimento e da Apafunk, além de ex-aluno da EPSJV; Leonardo Mattos, do Fórum de Estudantes da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz); e dos professores-pesquisadores da EPSJV, Flavio Serafini e Virgínia Fontes.  A mediação foi feita por Eduardo Stotz, da Articulação do Fórum ENSP/Movimentos Sociais.



Para contextualizar um dos motivos que levaram à população às ruas nas vésperas e durante a Copa das Confederações, Vitor Mariano falou sobre algumas das ações que estão sendo feitas pela prefeitura do Rio de Janeiro com o objetivo de preparar a cidade para receber os megaeventos. Segundo ele, com essa justificativa, são realizadas, entre outras coisas, remoções de comunidades pobres para locais distantes da cidade, criando um processo de invisibilização da pobreza. Outros exemplos citados por ele foram a instalação das chamadas barreiras acústicas nas Linhas Vermelha e Amarela, que tentam esconder as favelas existentes nesses locais, e a barreira ecológica que foi construída no Morro Santa Marta.  “A que preço querem conquistar essa cidadania internacional? Criando um modelo de cidade apartada? Quanto menos a pessoa ganha, mais longe do centro urbano ela vai morar?”, questionou Vitor. Flavio Serafini acrescentou: “É um modelo de cidade que visa transformar o Rio de Janeiro em uma mercadoria melhor de ser vendida”.



De acordo com Vitor, por causa das obras para a Copa e as Olimpíadas, 200 mil pessoas estão em risco de remoção em todo o país, sendo 40 mil no Rio de Janeiro, onde 11 mil já foram removidas. “Em nome da Copa, as pessoas são tiradas dos locais onde construíram laços de toda uma vida. E não só a Copa e as Olimpíadas estão por trás disso, tem também a especulação imobiliária”, destacou Vitor, acrescentando: “Tudo isso gera uma insatisfação e uma revolta nas pessoas. Temos uma tarefa grande para esse próximo período que é de um movimento crescente de mobilização para não perder a força. A comunicação dos movimentos sociais, que é livre, também tem um papel fundamental nessa luta. É hora de os movimentos sociais e os estudantes tomarem o debate para si. Temos que retomar e fortalecer os espaços coletivos, além de criar novos espaços. Como se dizia nas manifestações: ‘Da Copa eu abro mão. Quero dinheiro para saúde e educação’”, disse Vitor, lembrando ainda que, assim como vem acontecendo no Brasil, outras cidades do mundo que sediaram megaeventos também passaram por processos de contestação social. “Estamos em um momento muito importante para se construir o que vem pela frente e definir os rumos do país. As pessoas que não participarem dos protestos, ficarão isoladas e verão a história passar”, disse Leonardo.



Flavio destacou que os protestos não nasceram do nada, são fruto de uma conjuntura que foi se desenhando e que o aumento das passagens foi apenas o estopim do movimento, já que traz um impacto no custo de vida para todas as pessoas de uma só vez, ao contrário de outros tipos de reajustes, como o do aluguel, que vão afetando as pessoas aos poucos. “Nos últimos anos, já havia uma inquietação social crescente no Brasil, que podia ser percebida com as grandes greves, por exemplo, de 2011 e 2012. Inquietação trazida também pelo desenvolvimento econômico dessa última década, que acirrou uma série de contradições sociais”, disse o professor, apontando que outro fator desencadeante das grandes manifestações é a percepção da sociedade de que os governos, cada vez mais, governam para os ricos. “Todo o dinheiro gasto nas obras da Copa e das Olimpíadas vão servir para gerar lucros para as multinacionais que vão gerir esses empreendimentos, como no caso do Maracanã, por exemplo”, completou.



Papel da mídia



Analisando o papel da grande mídia durante as manifestações, os debatedores destacaram que os meios de comunicação mudaram sua orientação no meio do caminho. No início dos protestos, houve uma tentativa de criminalizar as manifestações, mas, depois, com o crescimento do movimento, o foco mudou. “Quando houve um crescimento dos atos, a mídia também teve que se reorientar. O que no início a mídia classificava como ato de classe média e terroristas, passou a ser considerado protesto contra a corrupção, que foi a bandeira levantada por esses meios”, disse Flavio, acrescentando: “A mídia também foi alvo de críticas nas manifestações, tanto que junto com os prédios públicos e bancos, os veículos dos meios de comunicação foram os alvos preferenciais das manifestações”.



“Depois das manifestações, do ápice dos protestos, da redução do preço das passagens e a derrubada da PEC-37, a mídia passou a explorar as pautas do ‘é hora de voltar para casa’ e ‘as manifestações foram tomadas pelos baderneiros’”, resumiu Flavio. Virgínia Fontes completou: “Além do voltem para casa, também tentam nos convencer a voltar dizendo que estão atentos às nossas lutas. As câmeras da grande mídia só mostravam os protestos de cima, do ponto de vista da polícia. Além disso, o repórter também repetia o ponto de vista da polícia”, disse ela.



Polícia



Flavio ressaltou que a repressão policial ocorrida nos primeiros protestos não intimidou os manifestantes que, em vez de pararem com os protestos, intensificaram ainda mais as manifestações, que foram se espalhando por todo o país. “A violência política da polícia tomou uma proporção muito assustadora. A polícia fez repressões muito violentas, entrou na Maré [favela do Rio de Janeiro], matou 13 pessoas e as autoridades falam apenas em ‘excessos do Estado’. Essa é a lógica da Segurança púbica do Rio de Janeiro. A polícia, no lugar de proteger o cidadão, tem como função defender a ordem e a propriedade”, disse o professor. Vitor completou: “Dizem que a polícia é despreparada, mas ela não é. A polícia é preparada para reprimir a manifestação social e proteger uma determinada classe social”.



Flavio fez um breve histórico da Polícia Militar, que foi criada, originalmente, para proteger a família real e, ainda hoje, traz em seu emblema, a sigla GRP (Guarda Real Portuguesa). “Historicamente, desde sua fundação, a polícia cumpre seu papel social que, antes, era de proteção da família real, perseguição de escravos. A forma de manutenção do poder sempre foi muito violenta. Na última década, tivemos uma ação muito letal da polícia do Rio de Janeiro. É a polícia que mais mata e que mais morre no mundo. No Rio de Janeiro, em dez anos, a polícia matou dez mil pessoas”, contou, e defendeu: “As pessoas têm que ter o direito à vida”.



Para Rafael Calazans, o problema não é só a PM, é toda a estrutura da qual ela faz parte. “As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) são a coerção em nome do consenso pela paz, mas reduziram o direito do morador de ocupar o espaço das favelas porque se alguém está no beco às dez horas da noite, é bandido. E como diz a música: ‘paz sem voz é medo’”, disse ele. “Vendem a política de pacificação como uma mudança na Segurança Pública, mas, na verdade, nunca houve tanto caveirão agindo na cidade. A UPP é um exemplo da estatização do controle social, é uma intervenção compulsória que cria um modelo de cidade excludente e que evidencia contradições”, acrescentou Flavio.



Respostas



Os debatedores reconheceram que as reações dos governos às manifestações foram rápidas, mas não necessariamente satisfatórias, além de tentarem desviar o foco para assuntos que os governos desejavam pautar. “A primeira resposta do governo federal, naquele pronunciamento da Dilma, foi honesta com o que o governo vem fazendo nos últimos dez anos. Ainda aproveitaram para colocar na pauta propostas que eles já vinham discutindo há muito tempo, como a vinda médicos estrangeiros e mais royalties para a educação. Também vieram respostas dos governos municipais e estaduais, com a redução das tarifas de transportes, e a derrubada da PEC 37 no Congresso Nacional”, disse Leonardo. “A resposta do governo federal às manifestações foi uma resposta que não responde. Em suma, eles disseram: vamos manter o que estamos fazendo, o resto vocês discutam como quiserem”, destacou Virgínia.



Participação popular



Calazans, que é morador do Complexo do Alemão e ex-aluno da EPSJV, disse que ficou muito satisfeito em ver pessoas que nunca saíram da favela irem às ruas para lutar por seus direitos e melhores condições de vida. Fazendo referência ao termo muito usado nas manifestações e pela mídia, ‘o gigante acordou’, Rafael disse: “A favela não acordou agora, ela se levantou. Não começamos a nos organizar agora, começamos há muito tempo. Tinha um milhão de pessoas nas ruas de diversos setores. Não foram só os militantes ou integrantes de projetos sociais que foram para as ruas, foram todos”, acrescentando: “Antes, no Alemão, a população se reunia para ajudar alguém a pagar um enterro ou evitar que alguém tivesse a luz cortada por falta de pagamento. Era a cultura da sobrevivência, nos organizávamos a partir do que tínhamos para resistir. Transformamos o luto histórico da favela em luta. Então, se o gigante dormir não tem problema, nós, os anões militantes, estamos aqui”.



Virgínia destacou a capacidade formativa das manifestações. “O mais importante é o aprendizado que a população em luta faz. Nenhum professor é capaz de ensinar tanto”.



Calazans, que também é agente do Degase, relatou ainda uma conversa com um dos internos em que o menor disse: “Ficar aqui é fácil. Porque daqui a pouco eu saio e volto para a favela. Mas e as grades da favela, que não te dão opção?”. E Calazans completou: “Temos que exigir o fim das grades da sociedade que encarcera a favela. Por que quem desce do morro é vândalo e os outros são militantes sociais? Nas badernas, depois das manifestações pacíficas, a mídia faz a criminalização da pobreza, mas ninguém fala da violência que esse cara sofreu por uma vida inteira na favela. Depois de uma manifestação em que houve alguns roubos, a polícia entrou na Maré e matou 13 pessoas”, lembrou.