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Mudanças no trabalho nos últimos 25 anos

Ricardo Antunes afirma que é preciso entender a nova morfologia do trabalho
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 19/08/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Ricardo Antunes e Monica Vieira“Há 25 anos o Brasil era muito diferente do que é hoje: estávamos caminhando para o fim de uma ditadura, milhões de pessoas se manifestavam em campanha pelas eleições diretas, a classe trabalhadora era predominantemente formalizada e o país ainda não havia ingressado na era neoliberal”. Com esse resumo do panorama geral brasileiro em 1985, o sociólogo Ricardo Antunes começou a palestra ‘Transformações no mundo do trabalho: balanço dos últimos 25 anos’, no terceiro dia do Seminário Trabalho, Educação e Saúde – 25 anos de Formação Politécnica no SUS, que comemora o aniversário da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Para Ricardo, que é professor de Sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o período analisado foi aquele em que, em toda a história do capitalismo, houve o maior volume de mudanças no trabalho num curto período de tempo: o mundo ainda não havia passado pela reestruturação da produção que marcou os últimos anos.



Na época, de acordo com o palestrante, o neoliberalismo ainda era um projeto basicamente europeu e estadunidense, enquanto a América Latina contava apenas com as experiências do Chile e da Argentina: “Embora o modelo tenha se consolidado na Inglaterra já a partir de 1979, expandindo-se rapidamente a partir daí, foi somente durante o governo Fernando Collor, na década de 1990, que ele ‘entrou pesado’ no Brasil – onde se manteve no governo de Fernando Henrique Cardoso e, em seus pilares, se mantém até hoje”, explicou.



O sociólogo explicou que dois elementos foram decisivos para as transformações no trabalho em todo o mundo. O primeiro é a migração dos grandes segmentos das esquerdas anticapitalistas para o ‘lado’ da social-democracia, após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e do anúncio do fim do socialismo. “E o outro é que, ao mesmo tempo em que a esquerda socialista se ‘social-democratizava’, a social-democracia se neoliberalizava. Ou seja: a esquerda migrou quando a social-democracia já estava completamente inserida na agenda neoliberal”, observou o professor.



Para ele, esse foi o “furacão” que se abateu sobre o mundo nos últimos 25 anos. “Não foi nada fácil passar por esse turbilhão, o que nos dá uma ideia do mérito que tem essa Escola. Nós comemos o pão que o diabo amassou. E foram muitos diabos”, ironizou.



O começo das mudanças



E de que forma o mundo do trabalho foi afetado por esse cenário? Segundo Ricardo, o entendimento sobre isso deve ser feito a partir de um cenário ainda anterior, durante desenvolvimento da indústria taylor-fordista, que ajudou a fazer do século XX “a era da sociedade do automóvel” e foi responsável por uma enorme degradação do trabalho entre os séculos XX e XXI –não apenas na indústria automobilística. “A produção mudou sua forma de ser, afetando a classe trabalhadora. Exemplo disso é que a Volkswagen no Brasil já chegou a ter 44 mil trabalhadores, enquanto hoje tem, no máximo, 18 mil – e produz muitas vezes mais”, exemplificou. E não é só no número de empregos formais que as mudanças se traduzem: o modelo taylor-fordista de produção fragmenta o trabalho, alienando o trabalhador, para obter produtos de baixo custo que possam ser consumidos pela massa assalariada. “A melhor ilustração desse trabalhador maquinal, ‘coisificado’ e fragmentado está no clássico ‘Tempos Modernos’, de Charles Chaplin”, lembrou Ricardo.



De acordo com ele, na segunda metade do século XX houve uma reestruturação produtiva em escala global: gerou-se uma engenharia produtiva fundada na ‘liofilização’, que é um processo físico de desidratação em que se diminui a temperatura e seca-se tudo o que é vivo. “Nessa engenharia produtiva também ocorre que, em um ritmo constante, seca-se o que é vivo – nesse caso, o trabalhador”, comparou Ricardo. A nova forma de produção não é mais como a taylor-fordista: é flexível e, por isso, produz modelos variados. “E, para haver flexibilidade no produto, é preciso flexibilizar também a linha de montagem. Os trabalhadores podem ser, por exemplo, divididos em células produtivas que montam tudo isoladamente”, disse o professor. Ele sublinhou que, nessas empresas, que precisam ser enxutas, produtivas e polivalentes, os trabalhadores não podem criar laços de identificação com uma classe trabalhadora. “Então quase não vemos hoje empresas chamando seus trabalhadores de trabalhadores. Eles são chamados de colaboradores, parceiros, consultores ou outros nomes do tipo, por mais penoso que seja o trabalho”, observou, explicando que essa forma de trabalho individualiza as relações.



Desregulamentação



O sociólogo também apontou as dificuldades enfrentadas em relação às leis trabalhistas. De acordo com ele, hoje os governos nacionais são impulsionados a generalizarem sua legislação, que é desregulamentadora. Ele contou que muitas empresas transnacionais pretendem fazer com que todas as suas unidades obedeçam às mesmas regras trabalhistas, independentemente do país em que estejam. “Elas afirmam que isso mantém a igualdade. Mas, ao mesmo tempo, há casos, como o que presenciei em Portugal, em que uma empresa tinha trabalhadores oriundos de 16 países diferentes, todos instalados naquele país, e cada um deles recebia um salário diferente, dependendo de onde haviam nascido: os espanhóis e portugueses ganhavam mais, enquanto os africanos, especialmente os falantes outra língua que não a portuguesa, recebiam menos. Ou seja: o mesmo capital que prega a igualdade na justiça pratica a desigualdade no chão da fábrica”, exemplificou.



De acordo com Ricardo, um dos países em que as leis trabalhistas são mais problemáticas é a China, o que explica sua intensa produção. Ele contou que, até oito meses atrás, não havia uma legislação social do trabalho naquele país. “A China tem, de longe, o modelo mais exemplar de exploração da classe trabalhadora”, afirmou, lembrando que o Brasil também já carregou esse título.



Nova era



Ricardo AntunesUma nova morfologia do trabalho num tempo de informatização do trabalho, capital financeiro e descolamento entre capital e produção: essa é a conformação que Ricardo propõe, ao contrário da tese defendida por muitos sociólogos de que estamos presenciando o ‘fim do trabalho’. De acordo com o professor, a imensa produção da China e da Índia – com populações de mais de um bilhão de habitantes cada e um enorme contingente de mão-de-obra – liquidam rapidamente essa tese. “O que temos é uma era de informatização do trabalho, que caminha com a informalização do trabalho, o que vai contra a ideia da tecnologia emancipadora. Temos não o fim do proletariado, mas a geração de um proletariado do setor informacional, que não tem necessariamente lugar e hora certa para trabalhar, mas tem metas a cumprir”, afirmou Ricardo, completando: “E temos ainda a manutenção do trabalhador ‘tradicional’. Um trabalhador rural chega a cortar dez toneladas de cana por dia em São Paulo e 17 toneladas no Maranhão. Temos empregadas domésticas que trabalham 90 horas por semana. Temos trabalhadores peruanos e bolivianos que, empregados de imigrandes chineses e coreanos em São Paulo, trabalham 17 horas por dia. São inúmeros os exemplos”. De acordo com ele, o que se precisa fazer é compreender essa “classe trabalhadora ampliada”.



Mais valor



E, para Ricardo, mesmo o trabalho imaterial pode ser produtivo, o que já estava previsto nos estudos de Karl Marx. “Alguns teóricos argumentam que a imaterialidade do trabalho não pode ser mensurável e, portanto, a teoria do mais valor de Marx não é mais válida. Mas o próprio Marx nos ensinou que o que conta é toda a cadeia produtiva – seja no trabalho material, seja no imaterial. Trabalho produtivo é aquele que gera mais valor, e ele pode, sim, vir do trabalho imaterial: o trabalho do conhecimento é o modo informacional da mercadoria, de maneira que a informação também se transforma em mercadoria. Esse é um traço genial do capital – em todos os espaços em que é possível extrair mais valor, ele o faz”, explicou o sociólogo.



Ele também chamou a atenção para o fato de que as mudanças na classe trabalhadora hoje mudaram a hierarquia das suas organizações de representação: se antes estavam em primeiro lugar o partido político, em segundo o sindicato e em terceiro os movimentos sociais, por exemplo, hoje não é mais possível dizer isso. “O debate está aberto. No caso dos trabalhadores rurais, podemos dizer com tranquilidade que o MST é, de longe, a organização mais importante”, disse. O professor explicou que se costuma ‘medir’ a participação dos trabalhadores em luta por meio do número de greves realizadas por categorias, mas que há outras formas de resistência, como, na Argentina, a ocupação de fábricas falidas e abandonadas por trabalhadores; e, em países como Bolívia e Venezuela, a revolta de populações indígenas contra a privatização da água e a extração de gás por empresas estrangeiras.



Trabalho no SUS



A professora-pesquisadora da EPSJV Monica Vieira, que coordenou a mesa, aproveitou para comentar as transformações do trabalho dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos 25 anos. De acordo com ela, também no SUS é possível verificar o aumento da precarização, com trabalhadores que têm múltiplas jornadas para assegurar seu sustento, e o termo ‘colaborador’, em substituição a ‘trabalhador’, também vem sendo usado na saúde, inclusive em instituições como a Fiocruz. Para Monica, a dívida social para com os trabalhadores da saúde não começou apenas nos anos 1990, com a entrada do neoliberalismo no Brasil, mas vem desde a década de 1980, mesmo durante a luta pela Reforma Sanitária.



Durante o debate, o sociólogo afirmou que a intensidade da terceirização nas empresas é de tal amplitude que os sindicatos estão “aturdidos”. “Enquanto antigamente a terceirização estava restrita a transporte, limpeza e alimentação, hoje temos empresas que são inteiramente terceirizadas, mantendo só a marca. Muitos trabalhadores se convertem em pessoas jurídicas e trabalham de casa. Essa é uma situação difícil para os sindicatos, que têm uma herança corporativista. Além do mais, é difícil lutar contra a terceirização quando a maior parte dos próprios sindicatos tem trabalhadores terceirizados. Vocês conhecem algum que não tenha? Pode ser que exista, mas eu não conheço”, afirmou.



Para falar sobre a perda de autonomia dos sindicatos, Ricardo retomou a ditadura varguista, quando foi criada a contribuição sindical. “É bom lembrar que o imposto foi criado na fase mais dura da ditadura varguista, e foi consolidada mais tarde, nas Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943”, afirmou o professor, que é contra o desconto compulsório do salário dos trabalhadores. “É obrigatório o desconto de valores para o sindicato, para a federação, para a confederação e, mais recentemente, por medida aprovada no governo Lula, para as centrais sindicais. E nós não temos ideia do que é feito com esse dinheiro, já que algumas centrais prestam contas, e outras não”, criticou o professor, que afirmou ser contra a imposição do recolhimento – para ele, os sindicatos devem ser mantidos de forma livre por seus trabalhadores. Ele ressaltou, no entanto, que essas críticas não significam que ele esteja falando contra os sindicatos. “Ao contrário, há décadas eu os venho defendendo, mas a reflexão é necessária”, observou.