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O SUS que ainda não foi implementado

Ligia Bahia aponta osmuitos desafios para a concretização do direito dos brasileiros à  saúde.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 19/08/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

 "O SUS jamais chegou a ser constituído apesar de estar na Constituição". A frase da professora Ligia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sintetiza um pouco do debate realizado na tarde do terceiro dia do Seminário Trabalho, Educação e Saúde - 25 anos de formação politécnica no SUS. Na palestra Conquistas e desafios do campo da saúde no Brasil: balanço dos 25 anos, Ligia Bahia falou sobre a necessidade de problematizar a história do Sistema Único de Saúde (SUS) para repensar as ações do presente e do futuro.



A professora iniciou a palestra destacando que no Brasil temos um Sistema Nacional de Saúde, o que possibilitou uma modificação na relação entre o estado e a sociedade. Para ela, apesar das inúmeras tentativas de modificação deste sistema, em certa medida se conseguiu preservá-lo. "Este processo foi longo e não foi uma evolução linear. 20 anos depois, nós não temos o SUS como queríamos", ressaltou.



Reler a história



Ligia Bahia aposta que a história do SUS "deve sair dos gabinetes oficiais e passar a ser assumida pela sociedade". A professora ressalta que assim como outras histórias, a do SUS também é permeada de mitos e, inclusive, de vilões. Um dos mitos levantados é o de que a Constituição de 1988, que criou o SUS, foi um grande consenso. Ela lembrou, por exemplo, que o Partido dos Trabalhadores (PT) não assinou a Constituição por não considerar na época que a Carta respondia às reivindicações populares. "No Brasil parece existir um céu de brigadeiro no qual se projeta a narrativa de uma evolução linear do SUS", criticou Ligia.  



Como exemplo do processo que ela ‘denunciou' como a tentativa de se criar uma outra narrativa para a história do SUS, Ligia lembrou o filme Políticas de Saúde no Brasil: um Século de Luta pelo Direito à Saúde, produzido pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde em 2007. Segundo ela, o documentário conta a história do SUS a partir desta perspectiva linear e o apresenta como uma conquista do movimento social. "Havia um contexto de lutas com as Diretas Já, entre outras mobilizações, e o movimento sanitário, na verdade, pegou carona no movimento social", disse. Para a palestrante, o filme retira de cena, por exemplo, o sanitarista Sergio Arouca, expoente da Reforma Sanitária brasileira que ela classificou elogiosamente como uma "liderança desinteressada". Ligia destacou que, diferente do que a história fez parecer, Arouca, que era ligado ao PCB, integrava o grupo que, naquela época, acreditava que as reformas deveriam ser implantadas de cima para baixo, a partir do Estado - do outro lado, segundo a palestrante, estava o grupo ligado ao PT, que apostava na reforma a partir da base, de baixo para cima.



Outra narrativa produzida sobre o SUS foi, segundo a palestrante, a comparação com o período anterior ao da sua vigência. "Existe uma ideia errônea de que antes do SUS havia o zero, as trevas, que os brasileiros não tinham direito nenhum. Mas não era assim, havia hospitais municipais, serviços na previdência que eram universais e atendiam também os brasileiros que não tinham carteira assinada", descreveu. Para Ligia, o objetivo é criar uma baixa expectativa em relação ao SUS. "Não vamos querer muito mais do que isso, porque afinal, por esta visão, saímos das trevas. Para quem sai das trevas, qualquer feixinho de luz está bom", ironizou, dizendo que este tipo de pensamento na verdade é um discurso conveniente. Destacando o fato de que o SUS é apoiado por todos, produzindo um "consenso vazio", ela alertou para a necessidade de se ter clareza "de que SUS estamos falando hoje", para que isso se traduza em ações concretas.



A saúde nos programas de governo



Para Ligia, essa mitificação da história do SUS e dos seus resultados dá uma pista de por que a saúde não é prioridade como área que requer reformas ou investimentos estruturais. Um exemplo trazido por ela foram os programas dos três candidatos mais populares à Presidência da República. "Um programa fala em aumentar o subsídio dos medicamentos de 90% para 100%; o outro em fazer mutirões para operação de catarata, próstata e varize. E os candidatos são pessoas experientes, figuras públicas que conhecem muito o Brasil. Mas então, por que propostas tão modestas? Porque parece que está tudo muito bem", analisou.



Contrapondo-se a essa visão de que o Brasil é um "céu de brigadeiro" e de que com o SUS saiu-se das trevas para a luz, a palestrante citou os resultados de uma pesquisa recente em que 41% dos entrevistados apontam a saúde como o maior problema. "Na Europa, a saúde aparece em 5º lugar. Lá, o principal problema é o desemprego. É claro que nós temos desemprego aqui também, mas a saúde é apontada em primeiro lugar. E nossos candidatos não querem mudar completamente nada, só um pouquinho mais do mesmo", observou. Ligia considera que como resultado dessa ideia de que o SUS já é uma grande conquista consolidada, "estamos concedendo muitos abatimentos ao nosso direito". Ela defendeu que a aceitação de "subsistemas", de ambulâncias ou de medicamentos, no lugar de um sistema nacional de saúde como um direito de verdade, é um retrocesso.



Privatização da saúde e formação para o SUS



A pesquisadora destacou que enquanto militantes e dirigentes sindicais continuam acreditando que a questão da saúde está resolvida, a privatização do SUS aumentou muito nesses mais de 20 anos. Ela lembrou que uma parte dos sindicalistas adeririu aos planos privados de saúde como reivindicação. Com isso, destacou, é preciso refletir sobre o que a população almejará daqui em diante, sobretudo as parcelas que de alguma forma tiveram acesso a programas sociais, como o Bolsa família. "Essas pessoas quererão o SUS ou um sistema barato de saúde?", provocou.





Em resposta a várias perguntas do público presente, Ligia Bahia reforçou a necessidade de se lutar contra a privatização do SUS e de refletir também sobre o sistema que se quer reivindicar e, ainda, como formar os trabalhadores para atuarem nele. Mas destacou que a privatização se dá de várias maneiras: se, por um lado, ela se manifesta na expansão das OS (organizações sociais) como gestoras dos serviços de saúde, por outro, está presente quando o Estado paga um plano de saúde privado para os servidores públicos. "Na Inglaterra, servidor público não pode ter plano de saúde privado. Porque há um claro conflito de interesses", comparou.



A partir da exposição de Ligia Bahia, o professor- pesquisador da EPSJV/Fiocruz Júlio César Lima, responsável pela coordenação da palestra, lembrou que a Escola Politécnica nasceu neste mesmo momento histórico de discussões sobre a criação de um Sistema Único de Saúde. "Era o momento de um pensamento médico social importante para a reforma sanitária e para pensar a formação dos trabalhadores da saúde", situou. Ele retomou o pesquisador Jairnilson Paim, segundo os três elementos centrais no processo brasileiro de Reforma Sanitária foram a democratização da saúde e o reconhecimento do direito à saúde;  a democratização do próprio Estado e seus aparelhos; e a democratização da sociedade.  Esses elementos diferenciariam a Reforma Sanitária de uma simples reforma setorial, definindo-a como um movimento que transcende o setor saúde.  "Diante dessa concepção de saúde e de mundo, a formação não poderia mais ser pensada para o mercado, mas sim deveria ser uma formação do homem integral, com um pensamento crítico", relacionou. De acordo com o pesquisador, este conceito de formação se relacionava com a ideia da politecnia, sobre a qual a EPSJV/Fiocruz foi criada.