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Pela formação emancipatória e contra a educação do capital

João Pedro Stedile e Gaudêncio Frigotto falam na última mesa do seminário de comemoração dos 25 anos da EPSJV. Enceramento também teve homenagens e festa.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 20/08/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


 No último dia do seminário Trabalho, Educação e Saúde - 25 anos de Formação Politécnica no SUS, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e o professor da Faculdade de Educação da Uerj e da Pós-Graduação da EPSJV/Fiocruz Gaudêncio Frigotto explicaram por que acreditam que a EPSJV está no caminho certo na busca constante por uma educação emancipatória.



Diante de um auditório lotado e uma plateia atenta e participativa, a diretora da EPSJV Isabel Brasil apresentou os palestrantes, a quem chamou de "companheiros" e tradutores da educação que a EPSJV tenta perseguir - "a que faça o homem se reconhecer como sujeito da história". Primeiro a falar, João Pedro Stedile iniciou a exposição comentando sobre a alegria de ter sido convidado para o seminário, o que, para ele, demonstra como a escola valoriza parcerias com os movimentos sociais. "Embora lisongeado, me senti surpreso com o convite, já que não sou pedagogo, não entendo de saúde. Mas vim aqui compartilhar a nossa experiência como MST, que é uma experiência do povo brasileiro, coletiva, que não quer fazer as coisas por si e para si", disse.



João Pedro situou o surgimento do MST no mesmo período em que nasceu a Escola Politécnica, no processo de luta pela redemocratização do país, na década de 80, quando ressurgiram também o movimento sindical e outras "1001 formas de o povo se organizar". O militante lembrou que o MST é herdeiro de outros movimentos de luta pela terra, desde os quilombos, e que aprendeu rápido sobre as diversas barreiras que tinham que ultrapassar na luta por uma sociedade sem desigualdade e pobreza. No início do movimento, explicou João Pedro, os militantes acreditavam que para conseguir esta sociedade bastava lutar pela terra, mas depois compreenderam que também era preciso lutar contra o capital e pelo conhecimento. "Na luta contra a ignorância e pelo conhecimento, percebemos que há dois caminhos complementares: a educação formal e a formação política", afirmou.



16 milhões de analfabetos



 "Se há uma dívida social impagável no Brasil é com os analfabetos. Se deixássemos de pagar duas semanas de juros teríamos os recursos suficientes para eliminarmos o analfabetismo em nossa sociedade", argumentou João Pedro. Ele lembrou que atualmente ainda há no Brasil 16 milhões de adultos analfabetos e a maior parte deles está no campo. O militante afirmou que as elites sempre boicotaram o acesso do camponês à escola. "Camponês não precisa nem saber ler e escrever. A enxada não tem manual de uso", ironizou.



O coordenador do MST afirmou que o movimento tem como bandeira de luta a educação no campo desde o ensino fundamental até a universidade. E, para garantir o acesso dos Sem Terra a esta última fase de ensino, mantém convênio com 42 universidades em todo o país, com cursos voltados para a população camponesa, inclusive de formação de professores para atuarem no campo. Entretanto, para dar um exemplo de como o movimento encontra resistência na sociedade para este projeto de escolarização dos camponeses, João Pedro relatou o caso recente de uma parceria entre o MST e a Universidade de Pelotas para a oferta de um curso de medicina veterinária aos militantes do movimento. De acordo com ele, o Ministério Público Estadual entrou com uma ação contra o convênio. "O promotor escreveu ao juiz: ‘imagine, senhor magistrado, os sem terra agora querem ser médicos veterinários. E quem cuidará das enxadas?'. O pobre diabo deixou claro o que pensa a elite", contou.



Segundo João Pedro, o MST acredita que "a escola tem que ir aonde o povo vive", e o movimento tem uma luta permanente pela construção e manutenção de escolas rurais, necessárias para fazer cumprir este direito das crianças e dos jovens Sem Terra. "Nós, do MST, somos orgulhosos de ter mantido esta bandeira de uma educação pública, gratuita e de qualidade", observou.



Três fases da consciência



Se por um lado os Sem Terra lutam para fazer garantir a educação à qual todas as pessoas deveriam ter acesso, como está garantido na Constituição, por outro, eles travam também uma batalha pela formação política, para que a base do movimento eleve o nível de consciência.  



João Pedro lembrou os ensinamentos do educador Paulo Freire, que, a partir da experiência que teve na reforma agrária chilena (ainda antes do governo de Allende), dizia que o camponês não adquiria a consciência crítica apenas na luta pela terra. Neste estágio, sem formação política, o camponês teria uma consciência ingênua que faz com que ele continue votando na direita, por exemplo. Aos poucos, o camponês passaria para o estágio da consciência crítica, quando começa a descobrir as razões de sua pobreza. E apenas com formação política chegaria a desenvolver uma consciência de classe, que o possibilitaria compreender melhor quem são os inimigos da classe trabalhadora. "Aprendemos a valorizar o estudo. O capital procura afastar os livros da classe trabalhadora e nós sabemos que os livros são caixinhas de acumulação de conhecimentos. E para o camponês não é fácil, porque ele já chega em casa com a mão grossa, cansado, mas fazemos este esforço porque é a única maneira de não inventarmos a roda", observou João Pedro.



Para ele, o MST não pretende "inventar a roda", ou seja, quer aprender com as teorias e práticas que o antecederam para assim transformar a realidade atual. Ele comentou que esta geração que fundou o movimento teve um privilégio político de poder conviver com os setores que participaram da luta contra a ditadura e os líderes da luta pela terra, como Francisco Julião, Padre Alípio de Freitas, Manoel da Conceição, entre outros, de maneira a estabelecer uma ponte para a transferência de conhecimentos.



João Pedro afirmou que há ainda duas práticas que ajuda os militantes a adquirirem o terceiro estágio da consciência: o incentivo ao debate e à reflexão e as expressões culturais. "As expressões culturais fazem parte das idiossincrasias do povo brasileiro. Neste sentido aprendemos a valorizar até as expressões mais simples, como o futebol, que é um bom exercício de correlação de forças, onde percebemos que não adianta só jogar bem, porque do outro lado tem o outro time", disse.



Ele deixou claro, porém, que o movimento acredita que a mobilização cimenta a convicção das ideias aprendidas em sala de aula.  "Podemos ter escola, livro, Gaudêncio, mas se não tiver luta, não se aprende", alertou.



A formação "dos Lucas"



 "No início, eram 30 alunos com alguns malucos desta instituição", disse o professor Gaudêncio Frigotto, iniciando a sua exposição com a lembrança de que estava, 25 anos atrás, na criação da Escola e registrando a satisfação de estar presente na comemoração da Escola onde passou praticamente um quarto da vida. Ele mencionou que foi entrevistado recentemente por um aluno da EPSJV - Lucas Elber Cavalcanti - para um filme que também foi lançado durante as comemorações dos 25 anos da Escola. "O Lucas me fez ótimas perguntas. Eu o elogiei e ele me disse: ‘tem muita gente que critica a Escola e isso é bom porque a escola nos ensinou a criticar", contou, defendendo que a educação crítica que a Escola busca implementar é um caminho e que muitos ‘Lucas' devem ser formados desta maneira.



O professor elogiou as escolas do MST, que considerou "germens de dentro da contradição de uma sociedade que não é esta, mas que se faz nesta". Para Gaudêncio, a formação do capital é aquela que tem uma visão unidimensional do ser humano, pautada pelo lucro e pelo mercado, particularista e fragmentária, na qual a "política é coisa de especialista e a ciência de academia". Na contramão desta proposta, de acordo com ele, as escolas devem formar pessoas que leem, viajam, sabem admirar teatro, e que ajudem a ler o mundo. "A politécnica e as escolas do MST são expressões desta tentativa de desenvolver todas as dimensões do humano", afirmou.



O professor lembrou o seminário ‘Choque Teórico', realizado em 1987, com o objetivo de definir as bases conceituais que moveriam a formação na EPSJV. Na ocasião, de acordo com Gaudêncio, Dermeval Saviani, um dos maiores nomes da educação brasileira, convidado a expor no seminário, alertou sobre a necessidade de pensar uma escola a partir das contradições do presente. "E nessa contradição, irmos cortando a cerca, como você gosta, João Pedro. É a escola da práxis, que o MST faz tão bem", comentou.



Para Gaudêncio, a EPSJV está numa travessia e não está sozinha, mas tentando olhar sempre com quem pode aprender. Visitando várias situações e pensadores da História, ele lembrou o debate entre Lenin e os sindicatos sociais na Revolução Russa, quando os jovens procuraram o líder dizendo que deveriam derrubar todas as escolas burguesas. Lenin teria respondido: "cuidado, porque foi de dentro delas [das escolas] que construímos a teoria revolucionária", lembrou o professor, chamando a atenção para a necessidade de se trabalhar com as contradições.



Gaudêncio mencionou que a condição da educação no Brasil ajuda a manter a situação de desigualdade expressa por vários pensadores. "Florestan Fernandes dizia que no Brasil o arcaico é a condição do moderno. E Chico de Oliveira que o Brasil produz a miséria e se alimenta dela", citou.



Para o educador, a teoria deve ajudar a fazer a travessia nesta busca por outra sociedade, sem dogmatizar ou doutrinar. E, para concluir, citou Bertold Brecht: "Na teoria, um caminho todo, na prática, um passo de cada vez. Vinte e cinco anos de Escola Politécnica: um belo passo".



Estágio de vivência



 Em três rodadas de perguntas, João Pedro Stedile e Gaudêncio Frigotto puderam aprofundar seus pensamentos respondendo a vários questionamentos do público. João Pedro esclareceu que o MST defende a existência de escolas públicas na zona rural, com recursos públicos, mas que o movimento procura dialogar e influir na linha destas escolas, de forma que o conhecimento seja um instrumento de emancipação. "As escolas não podem ser um hotel, devem ser um exercício de convívio, de sociedade. Por isso defendemos que todos os estudantes se envolvam em algum tipo de trabalho na escola, na limpeza, na cantina: ele não pode se sentir um hóspede", explicou.



A partir da pergunta de uma aluna, o militante do MST convidou os alunos da Escola a fazerem um estágio de vivência nos acampamentos e assentamentos do movimento. "Aliás, podemos criar um convênio para que vocês ao invés de irem a Copacabana nas férias de julho, irem para Paraopebas nos ajudarem a parar o ‘trem da Vale', para vocês lutarem contra o capital também na prática", disse.  E concluiu dizendo que a EPSJV está ajudando o movimento "a preparar a vanguarda para a mudança brasileira. Por isso, longa vida a esta Escola".



Dialogando com João Pedro e respondendo às perguntas, Gaudêncio citou o pensador italiano Antônio Gramsci, que fala sobre como esta sociedade cria "mamíferos de luxo" - de maneira a naturalizar a exploração do trabalho de outras pessoas. O professor explicou que no caso do Brasil esta dimensão é ainda mais acentuada por se tratar de uma sociedade com um passado escravocrata e que a educação básica deve desnaturalizar este tipo de pensamento.



Respondendo sobre as possibilidades de que escolas como a EPSJV se multipliquem, Gaudêncio afirmou que só haverá mudanças na escola quando esta for problema da sociedade, o que por enquanto não acontece. E lembrou que para Marx, a escola tem que ser científica. Para o educador, a teoria precisa estar intimamente ligada à história. "Os conceitos nos distraem sem a dimensão da história. E a história ainda", alertou.



Homenagens e brinde



Antes do início da mesa, vários parceiros da Escola foram homenageados, e os participantes assistiram ao filme ‘Trabalho e educação profissional em saúde - na corda-bamba de sombrinha', produzido pelo Núcleo de Tecnologias Educacionais (Nuted) da EPSJV, em parceria com a Vídeo Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). Após a exposição dos palestrantes, todos os presentes foram convidados a fazer um brinde aos 25 anos da EPSJV e a cortar o bolo de aniversário da Escola. "Um brinde à educação pública, saúde pública e à justiça social...".