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Pobreza como crime

Marcelo Freixo, historiador e deputado estadual, falou sobre sobre política de segurança pública para alunos da Educação de Jovens e Adultos da EPSJV. 


“Bandido perigoso lendo Jorge Amado?”. A frase era uma provocação do professor com um aluno, detento, que, mesmo durante as aulas mais interessantes, gostava de reafirmar sua condição de bandido. Era como se, com isso, ele decretasse que aquele processo formativo não poderia mudar nada na sua vida. Não foi sem incômodo que veio a resposta — afinal, era uma provocação. Mas foi surpreendente: “Sou muito mais perigoso do que você imagina. Porque larguei a arma para pegar o livro”. A história é real: o cenário era o presídio Edgard Costa, em Niteroi, Rio de Janeiro; o livro era ‘capitães de areia’; e o professor era Marcelo Freixo, historiador e atualmente deputado estadual. “Nesse momento ele virou o jogo. Porque, com a arma, fazia o jogo deles”, disse Marcelo, durante a palestra ‘Políticas de segurança pública e criminalização dos movimentos sociais’, realizada na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) no dia 9 de setembro, como parte dos colóquios de Ciência e Política, que comemoram os 25 anos da Escola. A platéia, que encheu o auditório, era formada pelos alunos do curso noturno, realizado a partir de um convênio entre a Fiocruz e a secretaria estadual de educação do Rio de Janeiro: adultos trabalhadores, a maioria moradores das favelas do entorno.





Plateia - palestra Marcelo Freixo curso noturnoNuma fala muito interativa, da qual os alunos participaram o tempo todo, Marcelo explicou que, se o inimigo público do país na época da ditadura eram, sobretudo, os militantes de esquerda envolvidos com movimentos sociais, hoje o inimigo, aquele de quem é preciso ter medo, é o favelado. “O que se combate não é o crime, é a pobreza”, disse, descrevendo, com a ajuda do público, qual era o perfil do preso brasileiro: pobre, preto, favelado e com baixa escolaridade. De acordo com o deputado, 100% das operações do Bope (Batalhão de Operações Especiais) acontecem em favelas — um dos alunos lembrou, inclusive, que esse grupo de policiais não tem nem viatura para levar os eventuais presos de uma operação. “Em qualquer favela do Rio de Janeiro, não passa de 1% o número de pessoas envolvidas com o crime. A favela tem muito tráfico, muita arma e muita miséria. E isso não combina: o dinheiro do tráfico não está na favela”, disse Freixo. E completou: “Não estou dizendo que o tráfico não deve ser combatido. Ao contrário, até porque a maior vítima do tráfico é o morador da favela. Mas isso não pode ser às custas da criminalização de toda a pobreza”.





De acordo com o deputado, o problema é que quem não é consumidor não serve mais. E, portanto, precisa ser controlado. “É esse o papel da polícia, das prisões, do legislativo...”, afirmou. Para o palestrante, é importante situar que isso acontece num contexto de desemprego estrutural, resultado de uma política neoliberal que marcou o Brasil na década de 1990. Segundo ele, a média de tempo que uma pessoa fica desempregada chega a 40 semanas (dados dos anos 2000) quando, em 1989,  não passava de 15 semanas. “Em vez de se combater o desemprego, combate-se o camelô”, disse, respondendo a uma pergunta sobre o ‘choque de ordem’, carro-chefe da política do governo municipal do Rio de Janeiro.





Como resolver isso? Provocado por uma das alunas da platéia, que insistiu para que ele dissesse o que faria de diferente se fosse governador, Marcelo ressaltou que o caminho não pode ser esperar ‘salvadores da pátria’, já que “política não se faz sozinho”. Com isso, destacou a importância da organização social e do que chamou de “luta pedagógica”. “Temos que desnaturalizar. Não é natural ter a polícia que mais mata no mundo. Não é natural ter esse grau de desemprego. Não é natural morar em uma favela em torno da qual o Estado constrói um muro para separá-la do resto da cidade. Não é natural que exista caveirão”, enumerou. Para exemplificar o quanto a população, em especial os próprios moradores de favela, naturalizaram a brutalidade das políticas de segurança pública, ele narrou a experiência que viveu durante uma palestra que fez na Espanha sobre a violência no Rio de Janeiro. Freixo contou que começou a apresentação exibindo um vídeo curto, produzido pela atriz Regina Casé, com cenas reais em que um caveirão entrava numa favela ‘gritando’ coisas como ‘eu vim buscar sua alma’. Quando acabou o filme, seu único comentário foi que aquilo acontecia todas as noites nas favelas do Rio de Janeiro. A primeira intervenção da platéia foi, segundo ele, de uma pessoa indignada, questionando por que a polícia não conseguia prender alguém que fazia aquilo frequentemente e com um carro tão grande e chamativo. “Foi difícil explicar a eles que quem faz isso diariamente não são os bandidos, mas sim a polícia”, disse. O palestrante contou ainda que, certa vez, fez um desafio a policiais com os quais debatia. Prometeu passar a defender essa política de segurança se fosse feita uma experiência breve: levar o caveirão para passear pela avenida Vieira Souto (zona sul, área de classe media e classe media alta da cidade do Rio), sem dar um tiro, mas apenas repetindo o que ele grita nas favelas. “No dia seguinte, o Jornal Nacional lançaria a campanha ‘caveirão, diga não’ e teríamos um tumulto de poodles correndo pelas ruas”, ironizou para explicar por que o desafio, naturalmente, não foi aceito.





UPP e olimpíada





“Minha preocupação é torcer para que o Brasil não ganhe medalha de ouro em segregação”. Assim Freixo respondeu a uma das muitas intervenções da platéia, nesse caso, sobre o fato de o Rio sediar as olimpíadas de 2016. Relacionando com o tema das UPPs (unidades de polícia pacificadora), que são a base da política de segurança pública do estado do Rio, ele mostrou que estão sendo ‘pacificadas’ as favelas localizadas no corredor da especulação imobiliária por conta das olimpíadas e da copa do mundo. São, segundo ele, as favelas da zona sul, onde está o setor hoteleiro, da Providência, onde está o porto, da Tijuca, que estão no entorno do Maracanã, e da Cidade de Deus, que é caminho para Barra da Tijuca e Jacarepaguá. A mesma lógica orienta, de acordo com o deputado, a construção da ‘barreira acústica’ em volta de algumas favelas da cidade. “O prefeito, que não fez saneamento, não asfaltou rua, não iluminou nada, está muito preocupado com os tímpanos dos moradores de favela e por isso construiu uma barreira acústica para protegê-los do barulho”, ironizou, completando: “Elas foram instaladas no caminho de quem sai do aeroporto internacional até a zona sul. Acaba o problema para o turista porque, chegando lá, as favelas estão ‘pacificadas’ e algumas foram removidas”. E concluiu: “Há um projeto de cidade por trás dessa escolha. Temos que saber se é esse que queremos”.





Reconhecendo que é muito bom para os moradores que não haja mais tiros nas favelas, Freixo, no entanto, denunciou que a entrada da polícia nesses locais não foi acompanhada de nenhuma outra presença do Estado. Deu o exemplo da favela Chapéu Mangueira, no Leme, em que, no mesmo prédio, escola e posto de saúde estava fechados. “Quem disse que favela precisa só de polícia?”, questionou.





Polícia





E a quem a polícia serve? Outro exemplo: Freixo contou que descobriu, por conta da ação junto a mães de crianças desaparecidas, que a delegacia anti-sequestro do Rio de Janeiro, que fica na zona sul da cidade, só cuida de sequestros em que há pedido de resgate. Em outras palavras, traduziu, sequestro de filho de rico. Casos de filhos de pobres, sequestrados por motivações sexuais ou outras, não são atendidos por essa instância. “Não é um equívoco. É um projeto”, disse, informando que apenas 2% dos homicídios ocorridos no Brasil são esclarecidos. “Porque o papel da polícia é controlar a pobreza, não esclarecer crimes”, completou. E como se muda essa polícia? Segundo ele, o tripé sobre o qual se pode erguer o projeto de uma nova polícia consiste em remunerá-la melhor, aproximá-la da sociedade e ter instrumentos de controle sobre ela. “Uma sociedade segura é a que garante mais direitos, não a que tem mais polícia”, defendeu.