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Programas municipais na saúde mental são tema de mesa em seminário na EPSJV

Para debatedores, promoção do acesso à moradia, à geração de renda e à cultura são diferenciais de programas como o "De Braços Abertos" em São Paulo e os Centros de Convivência e Cultura no Rio.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 16/12/2016 09h31 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Apresentar experiências consideradas bem-sucedidas no cuidado à saúde mental nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e debater as perspectivas de continuidade dos programas em meio à crise política e às mudanças no comando das prefeituras a partir do ano que vem foram o foco da segunda mesa do 4º Seminário de Saúde Mental promovido pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) no dia 14 de dezembro. A mesa foi composta pelo psiquiatra do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Leon Garcia, que falou sobre o “Programa De Braços Abertos”, projeto da prefeitura de São Paulo voltado para usuários de crack na região central da cidade, e também Pollyanna Ferrari, assessora técnica de Geração de Trabalho, Renda e Cultura da Superintendência de Saúde Mental do município do Rio de Janeiro, que falou sobre o trabalho desenvolvido pelos Centros de Convivência e Cultura, que integram a rede de atenção em saúde mental da cidade.

Para Leon Garcia, o debate público sobre drogas no Brasil nos últimos anos vem incorporando novas formas de desenvolver esta discussão sem se pautar pela perspectiva da segurança pública, muito embora ela permaneça presente. Segundo ele, os resultados obtidos por programas que não apresentam como objetivo promover a abstinência dos usuários de drogas e nem simplesmente reprimir o uso de drogas têm contribuído para mudar concepções sobre o problema.  “Uma pesquisa do Datafolha em agosto mostrou que 69% da população de São Paulo apoia o “Programa De Braços Abertos”, números parecidos com o de pessoas que acreditam que ele dá resultados. Para mim isso significa que a mensagem que não dá para lidar com este problema na base da porrada chegou nas pessoas”, afirmou Leon, que acredita que essas experiências tem que ser aproveitadas, com ou sem apoio dos gestores.

Segundo o psiquiatra, o apoio da população é fruto de um trabalho longo desenvolvido na cidade a partir da gestão de Marta Suplicy na prefeitura, no início dos anos 2000, quando começa a haver uma pressão na saúde por um programa capaz de atender à população em situação de rua, historicamente excluída do sistema de saúde.  “Ali se inicia a proposta das equipes de cuidado em saúde inspiradas na Estratégia em Saúde da Família, multidisciplinares, com Agentes Comunitários de Saúde que passaram pela experiência de viver nas ruas atuando nos territórios”, informou Leon. Ele afirmou que houve expansão destas equipes mesmo com a troca de gestão da prefeitura ao longo do tempo, principalmente no centro da cidade. “A secretaria de saúde vinha produzindo indicadores de saúde regionalizados que começaram a apontar que as regiões centrais tinham indicadores de saúde tão ruins – como por exemplo com relação à sífilis e HIV – que colocavam para baixo os indicadores gerais do município. A expansão das equipes que na época eram conhecidas como PSF de rua permite ao sistema conhecer essa população e entre questões que aparecem estão os sofrimentos mentais e o consumo de drogas. Na época o crack já aparecia em São Paulo”, disse o psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP. Segundo ele, embora ainda houvesse na gestão estadual e municipal uma ambivalência com relação aos usuários de crack, atravessadas pela perspectiva da limpeza urbana e da higienização social, o programa mostrou que incidir sobre os fatores determinantes da saúde física e mental dessas populações, como a falta de acesso à moradia e ao trabalho, dava mais resultado do que as batidas da polícia. “Atualmente são pouco mais de 500 beneficiários, que moram em hotéis e trabalham em frentes de trabalho recebendo um salário. Tem refeição de graça e são acompanhadas pelas redes de saúde e assistência social. Isso teve impactos visíveis nas suas vidas, que vão além do uso de drogas: 80% não tinham documentos e passaram a ter; 55% retomaram contato com a família; 76% se engajaram nas frentes de trabalho e mais de 80% estão fazendo acompanhamento de saúde. Um levantamento apontou que os três pontos que os beneficiários mais valorizam no programa são a casa, o trabalho e o vínculo com os trabalhadores”, argumentou.

Problema vai além do consumo de drogas

Leon Garcia lamentou que o programa “Crack: é Possível Vencer”, lançado pelo governo federal em 2011, não tenha conseguido incorporar essas formulações. “Houve uma tentativa de colocar na pauta das discussões a preocupação de que era preciso pensar nos determinantes de saúde destas pessoas. Qual é a proposta de moradia para essa população miserável? O Minha Casa Minha Vida não é adequado. Qual é a proposta para geração de renda para essas pessoas? O Bolsa Família não chega para eles. É um paradoxo que num período que muitos grupos foram beneficiados essas populações não se beneficiaram. Faltou ousadia para bancar esses desafios e a clareza de que isso significaria adiar um reencontro com esses problemas”, afirmou Leon. O psiquiatra entende que o sucesso social das Comunidades Terapêuticas se deu em parte por conta desta omissão. “Muitas destas comunidades se desenvolvem sem financiamento público, lideradas por ex-usuários de drogas. Oferecem moradia, comida, geração de renda. Elas mostram que já havia uma compreensão de que o problema não era só o consumo de drogas”, disse Leon. Segundo o psiquiatra, porém, dados da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) junto às comunidades terapêuticas que ela financia mostraram que 75% dos acolhidos não completam o período indicado pela comunidade para o tratamento. “Já o levantamento do De Braços Abertos mostrou que 49% dos beneficiários está a pelo menos 24 meses no programa, o que é um número excepcional”.

A importância do acesso à arte e à cultura na saúde mental

Pollyanna Ferrari, assessora técnica de Geração de Trabalho, Renda e Cultura da Superintendência de Saúde Mental do município do Rio de Janeiro, iniciou sua fala lembrando dos protestos contra a indicação de Valencius Wurch para a Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, em maio, considerada um retrocesso na luta antimanicomial, uma vez que Wurch havia sido diretor de uma instituição onde foram constatadas graves violações de direitos humanos pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.  “O que chamou atenção é que logo se fez carnaval da Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] até a Câmara Municipal, mas o humor e a leveza não tiraram a grandiosidade do momento. Mostra a importância que a arte e a cultura têm para os movimentos da saúde mental”, disse Pollyanna, destacando o papel dos Centros de Convivência e Cultura (Ceco) nesse processo. “Este é um dispositivo que a gente precisa muito discutir ainda, que promove saúde no território, facilita o acesso à cultura, à produção artística, ao esporte”, afirmou. Ela lamentou que a portaria do Ministério da Saúde que define as diretrizes para os centros foi suspensa, mas disse que eles estão presentes na portaria 3088 de 2011, que estabelece diretrizes para a Rede de Atenção Psicossocial nos municípios. “Ali o Centro de Convivência e Cultura aparece como uma unidade pública, articulada a rede de atenção à saúde, em especial da rede de atenção psicossocial”, informou. O município do Rio conta hoje com três destes aparelhos, que beneficiaram 528 pessoas em 2016. Além disso, a cidade conta com 25 iniciativas de geração de renda para usuários da rede de atenção psicossocial, que atenderam a 631 pessoas em 2016, e também iniciativas culturais, aos quais tiveram acesso 2,5 mil pessoas. “A inserção em atividades lúdicas e culturais possibilita a resignificação das relações sociais acerca da loucura”, defendeu Pollyanna, destacando que este ano, para marcar o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, que acontece em 18 de maio, os movimentos organizaram atividades que tiveram objetivo de fortalecer esse processo de resignificação da loucura. “Esse ano tivemos a campanha Loucura na Roda, procurando agregar outros atores e lugares nessa luta. Tivemos quatro intervenções em escolas da zona norte, rodas de conversa em clínicas da família e também tivemos a 9ª edição do Festival da Diversidade, com barracas de geração de renda, exposições, apresentações e oficinas na Praça Mauá”, destacou. Pollyanna afirmou que o corte de recursos tem gerado preocupação com relação à sustentabilidade de projetos como dos centros de convivência. “Tem sido difícil conseguir recursos. O que a gente tem feito por enquanto é procurar registrar o trabalho que é feito nos centros para apresentar para a próxima gestão destacando a importância do trabalho que é feito ali”, disse.

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