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Sankofa 2018 discute a construção do conhecimento afrocentrado

Com objetivo de potencializar os estudos, pesquisas e atividades escolares e extraescolares sobre questões e relações étnico-raciais, o evento contou com mesas de debate, oficinas, atividades culturais e exposições
Portal EPSJV - EPSJV/Fiocruz | 23/10/2018 11h24 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

No ano em que se completou 130 anos da abolição da escravatura no Brasil, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) promoveu, de 16 a 18 de outubro, a segunda edição do projeto Sankofa, com o apoio do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Fiocruz. O Sankofa 2018 contou com mesas de debate, oficinas, atividades culturais e exposições, que discutiram temas como o conhecimento afrocentrado, a descolonização dos currículos e a luta antirracista, entre outros. O objetivo do evento é potencializar os estudos, pesquisas e atividades escolares e extraescolares sobre questões e relações étnico-raciais. O projeto busca, através do debate coletivo, reivindicar a efetiva implantação das leis 10.639/03 e 11.645/08 – que determinam a inclusão da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino. O intuito dessas legislações é valorizar a cultura das classes sociais afro-brasileiras e indígenas no Projeto Político Pedagógico (PPP) e na estrutura curricular das escolas, além de contribuir com a formação continuada dos professores e estudantes.

A palavra ‘Sankofa’ remete a um provérbio tradicional dos povos da África Ocidental e pode ser traduzido pela ideia de que “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Graficamente, é representada como um pássaro que voa pra frente, com a cabeça voltada pra trás, carregando no seu bico um ovo, que representa o futuro. O desenho também é similar ao traço de um coração. “Entendemos que o projeto Sankofa começa nos quilombos, nas resistências dos povos indígenas contra escravagistas, racistas, invasores, torturadores e supremacias brancas. Dessa forma, o Sankofa começa nas lutas contra opressão, exploração e violências de todos os tipos e dimensões”, apontou a professora-pesquisadora da EPSJV e coordenadora do projeto, Valéria Carvalho, que acrescentou: “O epistemicídio [morte do conhecimento] foi uma das estratégias fundamentais de sustentação do processo de extermínio dos povos africanos, afrodescendentes e indígenas. Através deste, aliado ao mito da democracia racial e ao processo de embranquecimento que marcam a nossa história, todos os conhecimentos desses povos foram invisibilizados, ocultados, desconsiderados e apagados da nossa educação”.

O vice-diretor de Ensino da EPSJV, Carlos Maurício Barreto, citou a importância de um evento como o Sankofa na conjuntura política atual do país: “Esse é um período de muita indignidade, mas é no meio da indignidade que a gente descobre a importância de estarmos juntos para superarmos momentos difíceis. É muito bom ver esse auditório lotado e cheio de diversidade, diferenças, cores e felicidade. É isso que vem se tentando excluir do nosso país, mas não ocorrerá. Porque nenhum momento da história da humanidade superou o desejo da própria humanidade de caminhar para frente ou de voar olhando para trás, mas olhando para o futuro”, destacou ele. Daniele Saucedo, que também faz parte da coordenação do projeto, corroborou: “Estamos aqui seguindo os passos que vêm de muito longe. É o nosso papel resgatar, compreender, aprender o nosso lugar original na história, das primeiras civilizações e dos antigos e tão atuais conhecimentos filosóficos, matemáticos, tecnológicos e astronômicos que são a base para tudo que veio depois. Mas as sociedades ocidentais destituíram esse lugar e colocaram o homem branco no centro do mundo. Nesse sentido, todo conhecimento a respeito de nós, quem somos e tudo que historicamente fomos capazes de construir, foi roubado”.

Conhecimento afrocentrado

No dia 16 de outubro, aconteceu o debate ‘Saberes e práticas na construção do conhecimento afrocentrado’. Sonia Ribeiro, da Secretaria das Mulheres e Políticas Raciais do município de Santa Maria da Boa vista (PE), falou que momentos como o Sankofa são de suma importância porque quando a escola não traz a história negra, ela também ajuda a manter o preconceito e o racismo na sociedade. “Nossos passos vêm de longe, desde que fomos descarrilados do nosso continente africano, desde que fomos sequestrados para as Américas. Eu não falo em diáspora negra, eu falo em dispersão negra. Porque quando os judeus vieram para cá, vieram com bagagem, com todo um projeto de assistência do Estado. E nós chegamos aqui destroçados”, afirmou.

Para Sonia, os quilombos, os terreiros de matriz africana e as irmandades católicas negras foram os primeiros projetos sociais elencados pela população negra. Segundo ela, os quilombos não foram somente espaços de negros fugidos, foram espaços de reafirmação de uma identidade negra destroçada pelo processo de dispersão. “Não conhecemos o potencial histórico e social desses locais. E foram esses territórios que permitiram a nossa existência diante do projeto de extermínio causado pela lógica etnocêntrica e eurocêntrica. Foram esses espaços que permitiram nossas resistências e nos reafirmaram enquanto povos”, ressaltou.

Sobre a questão educacional, Sonia destacou que o grande desafio é entender que africanas e africanos tinham e têm ciência e que essa ciência foi inviabilizada por uma lógica de centralidade do pensamento único, o eurocêntrico. “Em nenhum momento, a história nos trouxe o papel social das organizações negras como um projeto de civilidade e auto-organização das populações negras desse país. A vida toda eu pensei a partir da Europa. Eu nunca estudei, por exemplo, que o Egito foi o maior centro de estudo científico que as sociedades humanas conheceram. Isso é estratégico desse modelo eurocêntrico, que sempre nos olhou como um legado de subalternidade”, lamentou.

Carlos Machado, professor da Universidade de São Paulo (USP), reafirmou a importância da representatividade negra. Ele citou o exemplo do desenho ‘Doutora Brinquedos’, que conta a história de uma criança negra que tem a habilidade de se comunicar e cuidar de bonecos em sua clínica de brinquedos: “É essencial que crianças negras se vejam representadas. É importante termos essa representação em desenhos, para que elas saibam que existe a possibilidade de negras serem médicas, por exemplo, para que não haja estranhamento”.

Segundo Carlos, a ideia de que “o branco pensa e o negro executa” é algo que começou em 1441, com Portugal escravizando homens e mulheres de origem africana. “Hoje, a Organização das Nações Unidas (ONU) classifica a escravidão no Brasil como um crime contra a humanidade, o maior deslocamento forçado da história. 12,5 milhões de pessoas vieram para esse lado do Atlântico, 1,5 milhão pereceram no mar”, lamentou.

Carlos trouxe exemplos de inventores negros, como Mark Dean, um informático norte-americano, da IBM, que liderou a equipe de design que criou o primeiro chip processador de computador a giga-hertz e hoje detém três das nove patentes originais da marca; Philip Downing, que criou a caixa de correio; e John Standard, que inventou a geladeira. “Todo dia você usa algo que foi inventado ou aperfeiçoado por um inventor negro ou inventora negra. A maioria das pessoas não sabe que as invenções que vão desde dispositivos complexos aos bens comuns de casa foram criadas por afrodescendentes”, afirmou, acrescentando: “Reconhecer os inventores negros é fundamental para se promover a igualdade étnico-racial”.

Outras atividades

Na tarde e noite do dia 16, a EPSJV promoveu diversas oficinas temáticas com alunos, profissionais e convidados da escola. Em uma delas, os participantes discutiram sobre cultura indígena e, com a ajuda do historiador Michael Junior Queiroz, primeiro aluno indígena da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), produziram filtros dos sonhos –  um amuleto típico da cultura indígena norte-americana que, supostamente, teria o poder de purificar as energias, separando "sonhos negativos" dos "sonhos positivos", além de trazer sabedoria e sorte para quem o possui. Outras oficinas debateram assuntos como mídia digital e empoderamento negro, yoga do ventre, grafismo indígena, estética negra e ervas medicinais.

O primeiro dia de Sankofa foi encerrado com a mesa ‘Movimento Negro como Educador’, que reuniu além de Sônia Ribeiro, Elizabeth Campos, da Rede CCAP de Empreendimentos Sociais para o Desenvolvimento Socialmente Justo, Democrático e Sustentável. Durante os três dias do evento, o Sankofa contou com exposições permanentes, que trouxeram temas como ‘Ancestralidades e Colorismo’; ‘Religiões de Matrizes Africanas e Indígenas’; ‘Reinos, Impérios e Confederações Africanas antes da Invasão Europeia’; ‘Sou eu, sou eu! Sou eu? Biografias de atletas negras e negros que marcaram o esporte’; e ‘Museu dos Pretos Novos’.