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Seminário discute a formação profissional do trabalhador

Evento realizado na EPSJV abordou diversos aspectos relacionados à  qualificação dos trabalhadores
Talita Rodrigues - EPSJV/Fiocruz | 17/06/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Com contribuições das áreas de psicologia, sociologia, educação e economia, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) realizou, entre 8 e 10 de junho, o seminário ‘Qualificação, Trajetória Ocupacional e Subjetividade’.

Qualificação e trajetória ocupacional

A qualificação profissional e a trajetória dos trabalhadores no mercado de trabalho foi o tema da palestra do sociólogo Adalberto Cardoso, professor-pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp/Uerj). Com o tema ‘Transições da escola para o trabalho – padrões e dinâmica histórica’, Adalberto apresentou dados sobre diversos aspectos da sociedade brasileira e mostrou um panorama sobre o que aconteceu entre 1940 e 2000 no Brasil no mercado de trabalho do Brasil. “Nosso mercado de trabalho é uma máquina de moer qualificação. Se o trabalhador não é funcionário público, o mercado formal só o aceita até os 40 anos. Nesse tempo de vida de trabalho, que, em média, começa aos 15 anos, o trabalhador vai ter entre 12 e 18 empregos, em áreas diversas. E quanto mais velho e menos escolarizado, pior fica sua vida no trabalho. A única coisa que garante uma circulação melhor pelo mercado de trabalho é ter uma escolaridade mais alta (11 anos ou mais). Sem isso, o trabalhador terá grandes períodos de desemprego e informalidade”, analisou Adalberto.

Segundo ele, mesmo com a qualificação, não existe a garantia de uma boa permanência no mercado de trabalho, pois nem sempre a qualificação que o trabalhador tem é a que o mercado exige. “O sistema educacional qualifica de uma maneira e o mercado de trabalho demanda outra. Em várias áreas, temos carência de profissionais e importamos empregos, em outras, sobram profissionais qualificados. Isso acontece porque os profissionais disponíveis escolheram outras carreiras ou porque a oferta do sistema educacional que nós temos é essa”, explicou o professor.

Essa discrepância entre a oferta de qualificação e as demandas do mercado de trabalho foi causada, em parte, pelo surgimento de um grande número de cursos de educação superior, oferecidos pelas instituições privadas. “Os empresários da educação enxergaram uma janela de oportunidades quando viram que o sistema público não dava conta do ensino superior. Mas hoje estão todos quebrados e as taxas de inadimplência em algumas universidades particulares chegam a quase 50% porque estenderam sua malha para uma população que não pode pagar pelo ensino superior”, disse.

Por outro lado, segundo ele, a qualificação profissional nem sempre é garantia de permanência no mercado de trabalho. O professor ressaltou que o que acontece na prática é que, normalmente, quem consegue ficar mais tempo empregado são os trabalhadores menos qualificados, que pulam de emprego em emprego, aceitando salários mais baixos. “Isso ocorre porque as pessoas aceitam qualquer coisa porque têm que pagar as contas. Se o seguro-desemprego no Brasil cumprisse sua função, a pessoa poderia se qualificar antes de voltar ao mercado de trabalho”.

O professor explicou que a queda do emprego formal e a redução da permanência do tempo em um mesmo emprego é uma característica do mercado de trabalho atual. De acordo com Adalberto, em 1960, 40% dos trabalhadores brasileiros tinham carteira assinada. Em 1976, esse número era de 59% e chegou a 42% em 2006. Nos últimos anos essa taxa voltou a crescer e, atualmente, está em 52%. “Ainda que o Brasil tenha gerado nos últimos anos 15 milhões de empregos formais, não quer dizer que temos empregos estáveis. São 15 milhões de pessoas rodando nas vagas porque, ao mesmo tempo, o tempo de permanência no emprego formal vem diminuindo”. Enquanto isso, ressaltou, a estabilidade no emprego informal ou por conta própria cresce a cada dia. “É um emprego precário, mas é mais estável que o não precário. As pessoas estão cada vez mais presas a condições precárias do mercado de trabalho”, disse Adalberto, acrescentado que outra mudança que vem sendo observada no Brasil nos últimos anos é o crescimento do emprego não remunerado, principalmente por causa do voluntariado, e o fenômeno do PJ (Pessoa Jurídica), quando as pessoas viram empresas para trabalhar. Segundo dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), das oito milhões de empresas que existem hoje no Brasil, cinco milhões são PJ.

Outra mudança mostrada pela pesquisa entre a População Economicamente Ativa é a transferência dos empregos do campo para a cidade. Dados mostram que de 1940 até 2000, o emprego no campo caiu de 70% para 17%, enquanto o urbano cresceu de 30% para 70%. “Isso mostra um processo brutal de transformação social e isso se percebe nas mudanças das famílias, as pessoas deixaram o campo para ir para a cidade”.

Desigualdade

A realidade do mercado de trabalho do Brasil se reflete também na desigualdade econômica e social do país. Adalberto observou que a desigualdade no país é antiga e que isso traz uma série de consequências para a sociedade brasileira. Em 1872, o Índice de Gini (indicador que mede o grau de desigualdade na distribuição de renda) do Brasil era de 0,62. Chegou a 0,58 em 1920 e a 0,76 em 1960 (época em que houve o auge da concentração de renda no Brasil). Voltou a 0,62 em 2006 e hoje está em 0,54. “Nossa desigualdade não tem uma casualidade única e simples, nem é fácil de ser tratada. O Brasil tem uma inércia estrutural na sua estrutura social e econômica”.

De acordo com dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), a maior parte dos trabalhadores que exercem ocupações de baixa renda tem pais que também exerciam ocupações de baixa renda. Além disso, a mobilidade escolar também evolui muito lentamente. Em 14 anos, de 1982 a 1996, aumentou de 61% para 65% o número de chefes de família que tinham escolaridade maior que a de seus pais. Enquanto isso, passou de 15% para 19% o número de chefes de família que tinham menos escolaridade que seus pais. “Isso é efeito da inércia social no Brasil. Tivemos uma brutal transformação na sociedade nas últimas décadas, mas os indicadores não melhoraram tanto”, disse Adalberto, lembrando ainda que a média de escolaridade no Brasil também evoluiu pouco nos últimos 50 anos: passou de quatro anos em 1960 para seis em 1980 e hoje é de oito anos.

Outros dados apresentados pelo professor mostram que o tempo de permanência dos brasileiros na escola tem mudado lentamente nos últimos 30 anos. Vem sendo observado um maior acesso da população rural à escola e uma permanência mais longa da população urbana na escola. “Isso mostra que a escola no Brasil nunca teve a importância que deveria ter tido”.

Qualificação profissional, trabalho e formação

A relação entre a formação profissional e o trabalho foi o tema da palestra da professora-pesquisadora da EPSJV, Neise Deluiz. O deslocamento do modelo de qualificação para o modelo de competências, que começou a acontecer na Europa, nos anos 1980, foi um dos temas abordados pela professora.

No modelo de qualificação, que pressupõe o trabalho prescrito, os trabalhadores têm uma formação geral (que inclui a formação e a experiência profissional), existe uma grade de salários e uma hierarquia de profissões; os sindicatos participam das negociações coletivas. No modelo de competências, que pressupõe o trabalho não prescrito, a área de formação do profissional não tem tanta importância. “O importante é a capacidade da pessoa de mobilizar seus conhecimentos para agir de forma eficiente diante de uma situação de trabalho. A competência tem um discurso que implodiu a certificação, mas é só discurso porque exigem cada vez mais escolaridade. O diploma ainda é fundamental no Brasil. O ponto de corte não é ter ou não ter diploma, é, diante de uma situação concreta de trabalho, ter a solução para o problema, é ver se o trabalhador enfrenta o desafio mal ou bem”, explicou. Além disso, esse modelo inclui uma gestão individualizada da gestão do trabalho e um enfraquecimento das ações coletivas (sindicatos).

Para dar um exemplo de trabalho prescrito e não prescrito, Neise contou a história de uma empregada doméstica que tentou contratar certa vez. Questionada sobre o valor que cobrava por seu trabalho, a doméstica disse: ‘Depende. É com penso ou sem penso? Se for com penso é mais caro. Se for só para limpar é um preço, mas se tiver que pensar para fazer comida, fazer compras, organizar, é mais caro’. “No trabalho prescrito, o trabalhador recebe uma ordem e cumpre. No trabalho não prescrito, tem que pensar na solução diante de um problema inesperado”, explicou Neise.

Neise lembrou que o tema da qualificação do trabalho surgiu no pós-guerra, mas reapareceu com mais força na Europa e no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990, dentro de um contexto de flexibilização das relações de trabalho e desemprego. Essas mudanças tinham relação com o propósito capitalista de otimizar os processos de produção. “Houve um processo do próprio capitalismo de expropriação do saber do trabalhador e uma necessidade de reestruturação das bases de acumulação do capital e da produção capitalista. Passou a existir um modelo com bases flexíveis e tecnologia implantada na produção”, disse a professora.

Neise apresentou ainda duas concepções diferentes de qualificação, baseadas em autores que são considerados, segundo ela, os pais da Sociologia do Trabalho: Georges Friedman e Pierre Naville. Ela explicou que Friedman tinha uma abordagem substancialista ou essencialista, que considera tanto a qualificação do trabalho (conteúdo e complexidade da tarefa), quanto a qualificação do trabalhador (seus saberes e sua formação). Para Naville, não basta pensar apenas na qualificação do trabalhador e do trabalho, mas também relacioná-las aos conflitos existentes entre as qualificações adquiridas pelos trabalhadores e as demandadas pelas necessidades das indústrias. A abordagem de Naville contribui, de acordo com Neise, para a ampliação do conceito de qualificação, que é pensado como um processo historicamente construído.

Qualificação e desenvolvimento da atividade no trabalho

Já a professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Tatiana Ramminger, abordou o tema ‘A análise do trabalho como meio para a formação profissional: contribuições da Clínica da Atividade’.

Inicialmente, Tatiana situou as abordagens de alguns autores sobre as Clínicas do Trabalho, conjunto de teorias que estudam a relação entre trabalho e subjetividade. Em seguida, a professora passou a explicar mais detalhadamente o conceito de Clínica da Atividade, método de análise e compreensão do trabalho desenvolvido pelo psicólogo do trabalho francês, Yves Clot. “A Clínica da Atividade é uma abordagem desenvolvimentista do trabalho, que visa criar condições que permitam ampliar o poder de agir dos sujeitos em seus contextos de trabalho”, explicou.

Segundo ela, para Yves Clot, deve-se considerar atividade não apenas o que se faz, mas também o que não se faz, o que se tenta fazer e não se consegue e o que não se pode fazer.

Para analisar o trabalho sob a perspectiva da Clínica da Atividade, Yves Clot desenvolveu alguns métodos que permitem ao trabalhador explicitar suas estratégias de trabalho. Um deles, chamado de Instrução ao Sósia, consiste em um trabalhador detalhar ao pesquisador como ele desenvolve seu trabalho. “Ele pergunta ao trabalhador: Se eu fosse fazer o seu trabalho, o que eu teria que fazer para que não percebam que não é você?”, explicou Tatiana.

No método da Autoconfrontação Cruzada, o objetivo é provocar o diálogo entre trabalhadores. “Consiste em filmar os trabalhadores em situações de trabalho e colocá-los em contato com essas imagens. O pesquisador decide junto com o trabalhador quais situações serão filmadas”, disse a professora, acrescentando que o método se chama Autoconfrontação Cruzada porque filma um trabalhador e outro colega do mesmo ofício. Assim, ao assistirem ao vídeo, se estabelece um diálogo entre colegas sobre as situações de trabalho.