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Um ajuste (in)justo

Aula inaugural da Pós-graduação discute as recomendações do Banco Mundial para o Brasil
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 05/04/2018 09h17 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Caracterizadas como um “ajuste (in)justo”, as recomendações do Banco Mundial para o Brasil, com um recorte especial para a educação, foram o tema da aula inaugural do Programa de Pós-Graduação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). Realizado no dia 27 de março, o debate contou com a participação dos professores João Marcio Pereira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Paulo Henrique Rodrigues, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Marcela Pronko, da própria EPSJV. O tema – e também a chamada da aula – fazem referência ao polêmico relatório lançado pelo Banco em novembro passado, com o título ‘Um Ajuste Justo – análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil’.

Na avaliação de João Marcio, esse foi, de fato, um marco importante nas históricas relações do país com o Banco Mundial. Isso porque, diferente do teor dos relatórios globais, que em geral optam por uma linguagem mais branda, este é um documento mais “prescritivo”, que representa, segundo ele, a aposta numa política ultraliberal. “O relatório é um bom exemplo de uma pesquisa ruim tecnicamente e enviesada politicamente, que depõe contra, inclusive, a suposta imagem de excelência técnica do Banco Mundial. E vai na contramão do linguajar neoliberal, porém mais brando do que em décadas anteriores dos documentos globais do Banco. Faz uma opção partidária”, afirmou.

A maior parte da apresentação do professor, no entanto, foi dedicada a explicar o funcionamento do Banco Mundial, que é seu objeto de pesquisa desde a tese de doutorado, que se tornou livro. De acordo com João Marcio, são quatro as principais áreas de atuação desse organismo internacional. A primeira, mais conhecida, é a concessão de empréstimos, sempre com condicionalidades, o que gera uma situação de dependência dos países clientes em relação aos países doadores. Ele explicou que, embora todo cliente tenha que ser membro, nem todos os Estados-membros do BM são Estados-clientes. Como os votos do Banco não são paritários, seus parâmetros de atuação são definidos pelos países mais ricos, principalmente Canadá, França, Japão, Reino Unido e Estados Unidos. A segunda é a assistência técnica, que, tal como os empréstimos, se dá não apenas com os governos dos países mas também – e principalmente – com outros entes federados, como estados e municípios, no caso do Brasil. E essa ‘descentralização’, destacou,  torna mais difícil o rastreamento da sua presença nos países. A terceira linha de ação é a produção intelectual, materializada, por exemplo, em relatórios como o que o Brasil recebe recentemente. Segundo João Marcio, com mais de 12 mil funcionários, o Banco Mundial produz cerca de 10 mil documentos por ano. E ele ressaltou que, embora se apresente como politicamente neutro, os documentos do Banco deixam claras suas posições. Por fim, o Banco atua também na mediação política, articulando-se com outras instituições na liderança de iniciativas internacionais.

De acordo com o debatedor, o fato de países pedirem empréstimo mesmo sem precisarem – como, segundo ele, foi o caso do Brasil nos governos Lula – mostra que a relação com o Banco atende aos interesses das elites internas no seu processo de disputa de hegemonia.

“Essa abordagem do banco não nos ajuda a compreender os privilégios, as dificuldades, as contradições e os limites sociais que atravessam o Estado brasileiro. O BM não nos ajuda a entender quais são as forças sociais e interesses materiais que estruturam e dirigem o Estado”, conclui João.

Em sua fala, Paulo Henrique fez um histórico da criação do Banco Mundial, em 1944, e falou sobre a atual conjuntura mundial. “O mundo voltou a ser multipolar, a hegemonia dos Estados Unidos é contestada cada vez mais. No Brasil de agora, pós-golpe, a gente tem um reforço da subordinação ao Banco”, afirmou, acrescentando que o Banco foi contratado como consultor no final do governo Dilma Rousseff, quando a direita estava impondo a lógica da austeridade, e permaneceu como consultor no governo Michel Temer. “A direita brasileira chamou o Banco para tentar vender esse pacote de austeridade que está aí. Tudo dele está no ajuste fiscal”, disse ele.

Para Paulo Henrique, é equivocada a recomendação do Banco de que, em um momento de crise, deve-se fazer dívida para empurrar a economia e, com o crescimento econômico, pagar a dívida no futuro. “Ao contrário desse relatório, o ajuste não virá com a [redução da] despesa. O ajuste tem que vir com a receita. Temos que estimular a economia. E o gasto social tem um efeito multiplicador grande”, ressaltou.

O relatório do Banco aponta ainda que o país deve fazer pequenas economias que, segundo Paulo, não alteram a situação, pois estão de acordo com a lógica da austeridade e da redução das despesas públicas, mas não apontam uma solução para a questão econômica. “Com essas recomendações, apenas justificam essa política de congelamento de gastos na saúde, na educação e de gastos sociais em geral”, observou, acrescentando que o documento reforça a lógica da austeridade, mas não leva em conta que o mundo mudou.

Atendo-se mais ao recente relatório, Marcela Pronko chamou atenção para uma imagem que aparece logo no início do documento. Segundo ela, com ela o relatório propõe um caminho único para o Brasil, sugerindo que o outro é o abismo. O recado, segundo a pesquisadora é: ou o Brasil se adequa à agenda de reformas e, portanto, ao modelo de desenvolvimento que é proposto pelo Banco, em consonância com o conjunto de organizações, setores, instituições de classe do Brasil que encomendaram o documento, ou o país despenca no abismo do comércio internacional e da globalização.

Para Marcela, esse relatório é muito particular em relação a outros do BM, porque tem uma posição bem marcada, o que não é visto em relatórios mais gerais, nos quais as proposições são mais ponderadas e “maquiadas”, segundo a pesquisadora. “Esse documento vai na direção do que a agenda da direita acha que deveria ser feito no Brasil”, destacou.

A novidade do relatório, segundo Marcela, é o ataque ao funcionalismo público em um capítulo inteiro. O documento afirma que, “embora o funcionalismo brasileiro não seja grande para padrões internacionais, o nível dos salários dos servidores públicos ferais é, em média, 67% superior aos do setor privado, mesmo após levar em consideração o nível de educação e outras características dos trabalhadores como idade e experiência”, algo atípico para padrões internacionais. O estudo traz ainda que a redução pela metade dos salários dos servidores em relação ao setor privado geraria uma economia equivalente a 0,9% do PIB. “No curto prazo, o Banco propõe a suspensão de reajustes nas remunerações do funcionalismo. O relatório coloca no funcionalismo público grande parte da responsabilidade pela ineficiência do gasto público no país. O combate ao funcionalismo será uma pauta corrente e importante daqui para frente”, concluiu.

A pesquisadora identificou ainda duas grandes questões de que o relatório não trata: a dívida pública e a política tributária: “A dívida aparece como os gastos que não se discutem. Já a questão da política tributária é considerada extremamente regressiva, afeta mais os mais pobres e menos os mais ricos. O que é escolhido para discussão é aquilo que afeta de fato o conjunto da sociedade brasileira, através das políticas sociais”, destacou.

De acordo com Marcela, o BM distribuiu o debate da Educação em dois grandes blocos: um trata do Ensino Fundamental e Médio e o outro do Ensino Superior. No que diz respeito ao Ensino Fundamental e Médio, as principais teses do Banco são que o aumento dos gastos públicos com a educação nos últimos anos tem sido crescente, entretanto, sem verificar um aumento do desempenho do sistema escolar brasileiro. “Na verdade, o grande eixo da discussão é quanto custa formar um aluno no Brasil e eles chegam à conclusão de que o custo é muito alto. A culpa de tudo, segundo o relatório, é do professor. Eles dizem que a baixa qualidade dos professores por diversos fatores faz com que eles só aumentem o custo de formação do aluno”, explicou. E completou: “Isso é, em parte, o suicídio da política governamental na área da educação que já está acontecendo. Faz parte do processo de produção de políticas educacionais no Brasil”.

Programa da Pós-graduação

O Programa de Pós-graduação da EPSJV reúne os cursos de Especialização e Mestrado Profissional, que são baseados em conteúdos e reflexões da área de Trabalho, Educação e Saúde, com focos nas políticas sociais de educação e saúde.
O Mestrado Profissional em Educação Profissional em Saúde conta com duas turmas regulares, além dessa que iniciou em 2018. Estão em andamento ainda duas turmas formadas por docentes das Escolas Técnicas do Sistema único de Saúde (ETSUS) das regiões Sul e Sudeste e das regiões Norte, Centro-Oeste e São Paulo, com objetivo de formar trabalhadores docentes para o fortalecimento do SUS. Em 2016, foi concluída a formação da turma Nordeste.