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Direitos Humanos

É possível falar em direitos fundamentais ligados à ‘essência’ dos seres humanos, ou são os direitos humanos uma construção histórica? Quais são as contradições que permeiam os discursos acerca dos direitos humanos?
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 25/01/2012 11h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...] A Assembléia Geral proclama a presente Declaração dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. Com essas palavras, escritas no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu, como condição essencial para que houvesse paz e justiça em âmbito global, a proteção universal de alguns direitos considerados inerentes a cada ser humano. Considerada um documento marco na historia dos direitos humanos, a Declaração faz, no decorrer de seus 30 artigos, uma sistematização dos direitos dos quais todos os seres humanos compartilham ao nascer, independentemente de gênero, cor, idioma, nacionalidade, religião ou qualquer outra distinção. Mas o que significa chamar esse conjunto de direitos de universais? É possível falar em direitos fundamentais ligados à ‘essência’ dos seres humanos, ou são os direitos humanos uma construção histórica? Quais são as contradições que permeiam os discursos acerca dos direitos humanos?

Correntes

“Direitos humanos podem ser considerados um conjunto de valores, princípios e prerrogativas fundamentais para assegurar a dignidade dos seres humanos em sociedade. São direitos básicos que formam padrões mínimos de comportamento e respeito ao próximo sem os quais o ser humano não consegue coexistir ou participar ativamente da vida social”, explica Tomás Ramos, advogado e militante dos direitos humanos. Segundo ele, existem duas correntes que norteiam os debates acadêmicos sobre o tema. “A corrente naturalista defende que eles são direitos naturais, ou seja, cada pessoa, em virtude de ser integrante da espécie humana, é dotada de direitos fundamentais, que não são resultado de determinadas estruturas políticas”, explica. A outra corrente, diz, compreende os direitos humanos como produto das lutas históricas entre os diversos grupos e classes. “Eu sigo essa linha. Não acredito na ideia de que nasçamos com parâmetros estabelecidos por Deus ou pela Razão. Pelo contrário, acredito que essas verdades são construções históricas, próprias de determinadas configurações, ambivalências e contradições. Isso significa que a luta pelos direitos humanos é marcada por uma série de disputas e configurações históricas”, defende.

Fundamentos

Essa também é a visão da socióloga Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. “É importante que tenhamos a história como ferramenta para não naturalizar os direitos humanos. As declarações são importantes, mas temos que entender como elas emergem historicamente, quais são as forças históricas que estão atravessando essas declarações no momento em que elas são escritas”, ressalta. Segundo ela, os fundamentos do que hoje chamamos direitos humanos foram expressos pela Revolução Francesa que, em 1789, consagrou os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, posteriormente adotados como diretrizes das constituições de diversos países. “Essa revolução significou a ascensão da burguesia ao poder do Estado, com a derrubada da monarquia. Apesar da luta dos camponeses e trabalhadores, o que saiu dessa revolução foi uma declaração extremamente limitada, em que o direito à propriedade privada passou a ser sagrado. Com isso, já fica claro que os direitos humanos não são para todos, mas apenas para as elites”, diz Cecília.

Direitos individuais, sociais e coletivos

Se a Revolução Francesa moldou os debates iniciais sobre direitos humanos no século XVIII, o contexto da Guerra Fria influenciou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, que é a primeira a falar explicitamente nesse conceito, segundo Tomás Ramos. “A declaração surgiu em 1948, e tendo em vista o que tinha se passado na Segunda Guerra Mundial, com o Holocausto, foi uma forma de os países vencedores tentarem articular a universalização de critérios básicos de convivência”, diz Tomás. Segundo ele, com a polarização política entre os Estados Unidos e a União Soviética, a ONU procurou responder aos anseios de ambos os lados, não só com a declaração, mas também com dois protocolos emitidos em 1966 que procuraram esmiuçar alguns aspectos presentes na declaração. “Um se refere aos direitos individuais, ou seja, aos direitos civis e políticos, que procuram limitar o poder do Estado frente ao cidadão, e veio como resposta às pressões dos EUA. O outro, vinculado à ideologia socialista, fala dos direitos econômicos, sociais e culturais, que cobram do Estado determinadas responsabilidades frente aos indivíduos, como o direito ao trabalho, à saúde, à educação, ao lazer, etc.”, afirma.

De acordo com Tomás, mais tarde somaram-se a essas duas categorias de direitos considerados fundamentais os chamados direitos coletivos, que se referem às coletividades específicas - como as mulheres, os indígenas e os negros -, e os difusos, que  não remontam a indivíduos específicos, mas abarcam a todos, como a defesa da preservação ambiental. Esses emergem principalmente das lutas sociais da década de 1960. “Mas é claro que isso gera contradições. No sistema capitalista, é possível que sejam feitas concessões a determinados grupos, como para movimentos negros e ambientalistas, mas nunca serão feitas concessões com relação à propriedade privada, ponto chave que permite legitimar e funcionalizar o regime capitalista, entendida como um direito inalienável. Hoje o que se tenta é articular essas contradições em uma proposta universalista”, ressalta Tomás. Essa universalização, no entanto, gera algumas distorções, como exemplifica o advogado. “Uma delas é o uso de determinadas bandeiras, como a paz, no Rio de Janeiro, para justificar a política da pacificação das favelas. Ou então a invasão do Iraque pelos EUA, que usou os ideais da democracia e da liberdade para poder fazer determinadas incursões militares. Essas são bandeiras que, por serem universais, conseguem legitimidade, pois são imputáveis a qualquer pessoa. Então o movimento de dominação tem no discurso do universalismo uma excelente estratégia para legitimar qualquer intervenção”, analisa.

Paradoxo

Para Cecília, hoje, falar em direitos humanos tornou-se paradoxal e ambíguo. “Em nome dos direitos humanos se mata, se justifica a exclusão e o extermínio daqueles que são considerados perigosos para as elites e classes médias”, afirma, para em seguida citar um exemplo: “É extremamente paradoxal se falar em internar compulsoriamente adolescentes viciados em crack em nome da vida desses adolescentes, quando nós sabemos que não há política pública para essa parcela da população. A defesa dos direitos humanos por parte do Estado se resume a mise en scènes midiáticas, onde se utiliza o apelo à vida para se exterminar determinados segmentos considerados perigosos”, critica. De acordo com Cecília, o tema da segurança pauta o discurso hegemônico sobre direitos humanos no Brasil. “Aqui direitos humanos é ‘passar a mão na cabeça de bandido’. Isso não é por acaso. Esse discurso, que é reproduzido pelos meios de comunicação hegemônicos e pelas diferentes instâncias educacionais, tem a intenção claríssima de produzir pessoas que vão acreditar que, para sua segurança, é necessário que aqueles que são considerados não humanos e perigosos sejam exterminados e torturados”, avalia. O apelo público de filmes como Tropa de Elite, que mostra a polícia torturando e executando moradores de favelas, é um sintoma dessa distorção, segundo Cecília. “Esse tipo de filme produz subjetividades fortíssimas. As pessoas que vão ver esses filmes e aplaudem os momentos de maior violência. As ações do Bope [Batalhão de Operações Especiais] são naturalizadas, e a classe média passa a defender a tortura e o Estado policial”.

Tomás Ramos concorda que o discurso de deslegitimação dos direitos humanos tem como fim produzir criminalização da pobreza, que com isso se vê alijada do acesso a seus direitos. “Essa é uma desculpa para se subalternizar determinadas populações, e no Brasil tem a ver com a forma como a cultura autoritária e a democrática entraram em choque. Quando Leonel Brizola governou o Rio, por exemplo, e tentou fazer uma reforma da polícia, alegando que ela não podia subir a favela com pé na porta, a elite ficou desconcertada, porque isso muda a forma com que a cidade e o Estado deveriam funcionar. Aí se começou a falar que direitos humanos é coisa de bandidos”, ressalta. Com isso, aponta Tomás, legitima-se a manutenção de uma ordem baseada na estigmatização e segregação de grupos sociais.

Individualismo

Além de ditar quais direitos serão considerados fundamentais e para quais parcelas da população eles serão garantidos, a conjuntura política também contribui para atribuir mais importância a alguns direitos em detrimento de outros. De acordo com Cecília Coimbra, após o fim do bloco socialista, os direitos individuais, ou seja, civis e políticos, ganharam maior relevância, já que o mercado supostamente poderia garantir os demais direitos. “O capitalismo produz modos de viver, de pensar e de sentir, que levam a uma subjetividade da indiferença. E esse é o modo de viver burguês, o modo individualista de ser, ou seja, eu só me preocupo comigo e no máximo com a minha família. Somos produzidos para pensar, sentir e agir assim”, afirma.

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