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Ensino propedêutico

A palavra “propedêutico” vem de “introdução” e busca fornecer fundamentos sobre determinado conhecimento, de forma mais generalista. A palavra não se refere a um conteúdo fechado e varia de acordo com a área do conhecimento ou divisões por segmento de ensino.
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 12/09/2023 14h23 - Atualizado em 12/09/2023 14h27

A palavra “propedêutico” vem de “introdução” e busca fornecer fundamentos sobre determinado conhecimento, de forma mais generalista. A palavra não se refere a um conteúdo fechado e varia de acordo com a área do conhecimento ou divisões por segmento de ensino. “O propedêutico pode ter o sentido de uma apresentação geral, de um curso, por exemplo, de farmácia. E o propedêutico aí seria aquilo que é como um leque. Você faz uma apresentação do que comporia a farmácia como se fosse a base”, diz Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Com a Reforma do Ensino Médio, o termo ficou mais frequente e pode ser entendido como o conhecimento de base para formações subsequentes. “O ensino médio tem duas funções propedêuticas: a de preparar o estudante para uma escolaridade mais longa e a de oferecer a base dos conteúdos científicos para ingresso no mundo do trabalho, para exercer sua cidadania e o pensamento crítico”, diz a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ex-presidente da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais de Educação (Anfope), Lucília Lino.

O termo também é utilizado para diferenciar disciplinas regulares daquelas oferecidas pelo ensino profissional técnico. No primeiro caso, podemos pensar em português, matemática, física, biologia, história, sociologia e filosofia, entre outras. Já as disciplinas do ensino técnico variam conforme o curso, e fazer uma comparação entre os conteúdos é uma boa maneira de entender o conceito de propedêutico no ensino médio. “Os conteúdos são os mesmos, mas a forma de abordá-los é diferente”, diz Evelize Minuzzi, pesquisadora e professora do Instituto Federal do Rio Grande do Sul – Farroupilha (IFRS - Farroupilha). Ela exemplifica essa união com o conteúdo ensinado no curso para técnico agrícola. “Na primeira disciplina de ‘Agricultura’, eles precisam articular os conhecimentos básicos da biologia sobre vegetação, da química para identificar a interferência do nitrogênio e do carbono no solo, da geografia para situações de erosão”, diz.

Apesar de fazer essa diferenciação conceitual, Evelize reforça que o currículo é elaborado de forma conjunta pelos professores a cada ano. “Não adianta ter a disciplina de solos no primeiro ano e aprender sobre erosão apenas no terceiro. Então, os professores têm os seus conteúdos específicos, mas eles dialogam com as outras disciplinas para saber qual é a área de integração da disciplina dele para o curso naquele ano”, diz. Ela acrescenta que essa correlação não é apenas entre disciplinas das ciências da natureza, mas também entre ciências humanas, sociologia, história e filosofia. Ao contrário dos estudantes do ensino médio regular, ou seja, que cursam apenas as disciplinas propedêuticas, os alunos do ensino profissional da rede federal não tiveram a carga horária reduzida e, além da escolha do itinerário, mantêm o conhecimento geral do ensino médio.

A professora destaca que a opção do curso técnico não está necessariamente ligada à carreira profissional que o estudante seguirá após concluir os estudos. “Quando eles terminam o curso, você conclui que a maioria não foi para a área. E isso não quer dizer que o curso seja ruim. É que a maioria experimentou outras coisas e percebeu com o que se identifica mais. Nossa preocupação é ampliar o leque de conteúdos, de experiências. Por isso, a formação integral inclui a parte cognitiva, cultural e humana”, diz.

Mesmo sem estar associado ao ensino técnico, mas dentro do ensino médio integrado – aquele que integra dimensões do trabalho, ciência e cultura – podemos pensar o conceito de propedêutico a partir de situações concretas, exemplifica o professor e pesquisador Matheus Castro, do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Conteúdos complexos como funções de logaritmo ficariam mais fáceis de serem compreendidas caso fossem trabalhados com funções estatísticas. “Observamos a formação de tendências com os números quando pensamos na situação econômica, taxa de juros, inflação, aumento de custo no supermercado. Da mesma maneira que podemos pensar química e biologia ao cozinhar”, exemplifica. O raciocínio também é válido para a área de Humanas. O conteúdo de história sobre populações muito distantes pode ficar mais atrativo ao tratar de seus impactos nos dias de hoje. Por exemplo, os Fenícios, habitantes na Tunísia 1.500 anos antes de Cristo, são o primeiro povo a usar extensamente o alfabeto. “O estudante tem dificuldades de absorver os conhecimentos gerais a partir de abstrações, em especial quando não há afinidade com o tema”, completa Matheus.

Como os currículos são definidos?

A decisão de quais conteúdos devem ser abordados nas salas de aula de ensino médio está prevista em documentos de âmbito federal, anteriormente, pelas Diretrizes Nacionais Curriculares e, desde 2020, também pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Além de orientar os currículos, esses documentos são responsáveis por orientar os editais do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), livros distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) a todos os estudantes de escolas públicas. O próximo edital para livros do ensino médio será lançado em 2024.

Com implementação de caráter obrigatório desde 2022, a BNCC modificou consideravelmente a estrutura curricular das escolas ao aglutinar as disciplinas em grandes áreas: ciências da natureza, matemática, linguagens e ciências humanas. “Antes da nova base, as diretrizes determinavam o que era fundamental em cada nível de ensino e, a partir daí, as redes estaduais construíram seus documentos curriculares, contemplando as diferenças regionais. A rede de ensino do Pará é diferente da rede do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Rio de Janeiro”, diz a professora da Uerj. Para Matheus Castro, essa diversidade é fundamental para a compreensão dos conteúdos gerais. “A matemática só vai ser devidamente compreendida quando for contextualizada com a particularidade da realidade na qual o estudante vive. Então, o currículo precisa ser diverso para ser um comum sólido”, diz o professor do Colégio Pedro II, explicando que, apesar das diferenças regionais, os conteúdos ministrados eram essencialmente os mesmos em todo o país.

Já a BNCC detalha os conteúdos a serem ministrados sem atribuí-los a disciplinas específicas e exige um conjunto de competências e habilidades socioemocionais que devem ser ensinadas aos estudantes. “A BNCC não é uma orientação curricular, e um currículo mínimo e um conjunto de competências e habilidades que devem ser ensinados e aprendidos pelos estudantes”, explica Lucília. Ela acrescenta que não se trata de negar a necessidade de modificações, mas as discussões que ocorriam estavam centradas em como despertar mais interesse. “Essas mudanças no ensino médio estavam mais atreladas à metodologia, em como torná-lo mais dinâmico e atraente, sem tirar o direito de aprendizagem desses conteúdos”, avalia.

Ocimar explica que a decisão dos conteúdos a serem ministrados é tomada, geralmente, por um conjunto de especialistas das áreas, em conversa com professores que estão nas salas de aula. No entanto, como mostraram matérias da Revista Poli e Portal EPSJV sobre as discussões a respeito da elaboração da BNCC, essa discussão ampla passou a ser bastante restrita. O processo levou à renúncia, em outubro de 2018, de César Callegari, presidente da Comissão de avaliação da BNCC do Conselho Nacional de Educação (CNE), responsável por elaborar a nova BNCC. Em sua carta de renúncia, Callegari propôs que a BNCC fosse rejeitada. “Seus problemas são insanáveis no âmbito do CNE. Ela precisa ser refeita. Quanto aos trabalhos do CNE e, particularmente, os da Comissão Bicameral da BNCC, proponho uma imediata revisão da estratégia de estudos e debates, com a suspensão do ciclo de audiências públicas e a organização de uma ampla agenda de diálogos em profundidade com os diferentes setores da educação nacional”, escreveu ele quando deixou a presidência da comissão, um ano antes da proposta ser aprovada sem a revisão sugerida pelo ex-presidente e esperada por diversas entidades da área da educação, como a própria Anfope, a Campanha pelo Direito à Educação e a Associação Nacional de Pós- -Graduação e Pesquisa em Educação (Anped).

Antes da BNCC ser aprovada, outra mudança já estava prevista pela Lei 13.415/17, a Reforma do Ensino Médio. A Reforma reduz a carga horária de conteúdo comum de 2400 para 1800 horas e coloca apenas Português e Matemática como disciplinas obrigatórias nos três anos do EM. O restante da carga horária - 1200 horas - será preenchido por cinco itinerários de aprofundamento: Ciências da Natureza, Linguagens, Ciências Humanas e Sociais, Matemática e Formação Técnica e Profissional. O corte na carga horária comum e a divisão em itinerários coloca o ensino propedêutico em um momento de impasse no entender do professor da USP. “O ensino médio antes da reforma, por essa natureza propedêutica, era a base para a organização dos vestibulares e do Enem. O que vai ser comum a todas as escolas de ensino médio no Brasil? Língua Portuguesa e Matemática. Os outros componentes vão variar, por escola, por rede. Sendo assim, se a reforma vingar, vai ser um desafio estabelecer o que é conteúdo de base”, diz Ocimar.

Consequências no Enem

Diante das críticas e mobilizações contrárias à Reforma do Ensino Médio, o governo revogou a portaria do calendário de implementação da legislação, o que, na prática, adia, para 2024, apenas a data do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) baseado na Reforma do Ensino Médio, que não será aplicado em 2023, quando a prova ainda seguirá as diretrizes anteriores à Reforma. Os especialistas consultados por essa reportagem colocam alguns problemas para essa mudança. Um deles é que boa parte dos estudantes não realiza o Enem no mesmo ano de conclusão do ensino médio. Cerca de 40% dos inscritos têm 19 anos ou mais, com destaque para a faixa de 21 a 30 anos, que responde por 20%, mostram os dados divulgados no final de junho pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep). “Se eu quero escolher quem vai ter acesso à educação superior com base no conhecimento do ensino médio, eu tenho que levar em conta esse conhecimento que foi trabalhado”, diz Ocimar. Para o professor da USP, ainda que haja diferenças entre o conteúdo ministrado pelas escolas e a matriz do Enem, qualquer professor das disciplinas correspondentes pode reconhecer o conteúdo cobrado no exame e discutir a matriz solicitada. “Agora, se você começar a trabalhar numa eventual nova matriz com relação ao ensino médio para o Enem, eu já não sei como será o quadro. Uma hipótese é que, por exemplo, o Enem tenha só itens de língua portuguesa e matemática”, especula.

Dentro da hipótese que conteúdos específicos sejam cobrados, Matheus Castro lembra que a possibilidade de escolha de itinerários por parte dos estudantes não tem sido concretizada pelos estados e irá variar de acordo com a capacidade das escolas. Isso significa que alguém que pretenda cursar engenharia, mas não teve a possibilidade de cursar esse itinerário em sua escola, terá um grau de dificuldade muito maior para responder a questões específicas sobre este itinerário não ofertado pela sua escola. “A consequência é que essa pessoa vai sair absolutamente prejudicada”, diz Matheus. Diante da redução de conteúdo propedêutico com a reforma do ensino médio, Ocimar diz que é falso o argumento de que a reforma tornará o ensino médio mais convidativo aos jovens e com maior possibilidade de escolha. “É uma diversidade que traz uma enganação para a juventude. Nós, adultos, temos que ter responsabilidade com os estudantes de ensino médio e incentivá-los a estudar e ter contato com essa série de conhecimentos”, finaliza o professor da USP.