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Fascismo

Muitos estudiosos do tema dirão que não somente o Brasil, mas o Ocidente em grande parte caminha para o fascismo em face do recrudescimento do conservadorismo e de uma direita agressiva
Katia Machado - EPSJV/Fiocruz | 23/11/2017 15h32 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

“O Brasil caminha para o fascismo. (...) A construção do caldo fascista pode ser percebida por ações políticas, culturais, administrativas e ideológicas. Como é próprio do fascismo, são atitudes que radicalizam o pensamento de direita, na defesa de doutrinas e movimentos ao mesmo tempo antiliberais e anti-igualitários”. O diagnóstico é do jornalista João Paulo Cunha, em sua coluna no Brasil de Fato (21/9). Sob o título ‘A sombra do bigode de Hitler’, o artigo reflete sobre os recentes episódios de censura no campo artístico, a exemplo da mostra ‘Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira’, cancelada pelo Santander Cultural em Porto Alegre (RS), após protestos do Movimento Brasil Livre (MBL) e de grupos religiosos, e a retomada do projeto da “cura gay”, defendido por setores ligados à bancada evangélica no Congresso Nacional.

Muitos estudiosos do tema dirão que não somente o Brasil, mas o Ocidente em grande parte caminha para o fascismo em face do recrudescimento do conservadorismo. No dia 11 de agosto, por exemplo, o mundo presenciou em Charlottesville, nos Estados Unidos, centenas de pessoas em marcha, carregando tochas e entoando palavras de ordem contra negros, migrantes, homossexuais e judeus. Eles bradavam que “vidas brancas importam’’, em referência ao movimento “Black Lives Matter’’, contra a morte de negros pelas mãos do poder público. Havia outras palavras de ordem: “vocês não vão nos substituir”, em referência aos imigrantes, e “morte aos antifas”, abreviação de “antifascistas”, como são conhecidos grupos que se opõem a protestos neonazistas. Descrita pelos participantes como um aquecimento para o evento ‘Unir a Direita’, que aconteceria no dia seguinte, a manifestação buscou exaltar o supremacismo branco nos EUA. Na ocasião, uma mulher de 32 anos foi assassinada, atropelada por um carro que acelerou contra manifestantes antirracismo, que marcaram concomitantemente um contraprotesto. 

Na Europa, por sua vez, as manifestações de xenofobia violentas ou veladas contra os milhares de refugiados que chegam pelo Mediterrâneo, fugindo de cenários de pobreza, violência, guerras, perseguições e fome em seus países de origem, não têm sofrido controle nem censura e se acumulam nos parlamentos, mídias e ruas. Os atentados suicidas de 22 de março de 2016 em Bruxelas, por exemplo, evocaram a argumentação de nacionalistas e eurocéticos do Leste europeu de que os novos migrantes constituiriam um grave risco de segurança à Europa. A cena da cinegrafista húngara Petra Lászlö, flagrada dando um chute num imigrante sírio e passando rasteira em outro, que carregava uma criança, quando corriam da polícia húngara em setembro de 2015, é um clássico exemplo deste sentimento xenófobo de parte da população europeia – não por acaso, a Hungria tem a maioria das cadeiras do Parlamento ocupadas por partidos de direita e extrema-direita.

Olhares sobre o movimento

Mas afinal, o mundo corre, de fato, o risco de um ressurgimento do fascismo? Para o historiador e cientista político Francisco Teixeira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sim: “É preciso primeiro pensar o fascismo como movimento trans-histórico, que vai além do período entre guerras, logo depois do Tratado de Versalhes, de 1919”, diz. Entendendo o fascismo como um conjunto de movimentos e regimes de extrema direita que dominou um grande número de países europeus, como Itália, Alemanha, Hungria, Espanha e França, entre os anos 1920 e 1945, o professor Chico, como é conhecido, não descarta a possibilidade de uma retomada das ideias fascistas na atualidade, especialmente no mundo ocidental: “Acho que corremos o risco de ter o fascismo como repetição histórica, representado por um partido fascista que venha assumir o poder na Europa ou nos Estados Unidos, bem como o surgimento de várias instituições de Estado que se ‘fascistizem’, sem o Estado assumir diretamente a postura de fascista”. Neste segundo caso, acrescenta, teríamos um Estado com uma aparência liberal, com eleições regulares, mas que tenha, por exemplo, uma clínica, uma polícia e uma escola que se comportam como fascistas, com processos que podem ir desde a esterilização até as internações compulsórias de usuários de drogas e a prática da ‘cura gay’.

No artigo ‘Os fascismos’, publicado no ano 2000, o professor já alertava para o fato de que o fascismo é “um movimento presente em nossa atual sociedade”, em face do crescimento da extrema-direita, a exemplo da popularidade da deputada Marine Le Pen – que, mais recentemente, chegou ao segundo turno das últimas eleições presidenciais na França com discursos de oposição à imigração e defesa da pena de morte. “Junto a isso, vários atentados neofascistas ocorreram na Europa e nos EUA”, escreveu. Sua observação vai ao encontro de várias análises mundo a fora. Em fevereiro deste ano, a imagem de uma placa do Museu do Holocausto em Washington, para alertar as pessoas sobre os perigos do fascismo, viralizou nas redes sociais. Opositores do presidente norte-americano Donald Trump compararam a lista apresentada neste espaço dos primeiros sinais do regime fascista ao atual quadro político e social do país. A placa enumera: empoderamento nacionalista contínuo; desdém por direitos humanos; identificação do inimigo como causa unificadora; supremacia militar; sexismo desenfreado; controle de mídias de massa; obsessão com segurança nacional; governo e religião interligados; poder/direitos corporativistas protegidos; poder/direitos de trabalhadores suprimidos; desdém pelos intelectuais e pelas artes; obsessão por crime e punição; corrupção e nepotismo desenfreado; e eleições fraudulentas.

Negação do outro

Chico Teixeira fala em ‘fascismos’, no plural, por considerar que esse fenômeno histórico não se configurou como um movimento homogêneo quando vigorou, principalmente na primeira metade dos anos 1920. “Existe o fascismo alemão, o italiano, o espanhol, o português, o húngaro. Cada um tem o seu contexto e suas características históricas”, ensina, acrescentando que o fascismo alemão se expressou no nazismo e o espanhol no salazarismo. Citando o trabalho do cientista político Helgio Trindade, segundo ele, o integralismo foi a versão do fascismo brasileiro.  Isso é importante, ressalta, para que não se confunda o fascismo com o nazismo, como se costuma fazer – uma redução que, segundo ele, é fácil de entender: “Porque a Alemanha era uma das maiores potências do mundo na época, ao lado dos Estados Unidos, da Grã Bretanha e do Japão, e porque na guerra ela cometeu o pior de todos os crimes, que foi o holocausto”.

Ele explica ainda que, apesar de plural, existem pontos comuns no fascismo – ou pelo menos à maioria deles.  “O que observamos é que, no construto teórico, o fascismo é um movimento de partido único, profundamente antiliberal, antissocialista, anti-humanitário, antimarxista, é um movimento profundamente nacionalista, intervencionista na sociedade e na economia; tem uma forte dose dirigista na sociedade e na economia; é marcado pela xenofobia; construído em torno de uma figura carismática, um líder que poderá ser ou não um substituto do partido”. E há, segundo o professor, uma característica síntese do fascismo: a negação da alteridade, que significa a construção de um ‘inimigo’, ou seja, de um ‘antinacionalista’. “O antinacionalista do fascismo alemão foi o judeu e do movimento português foi a maçonaria.  Já na Itália, por exemplo, os chamados ‘negri’ – população de origem africana – e os comunistas foram os inimigos”, exemplifica. E compara: “Pode ser que para o fascismo brasileiro na atualidade, na figura de ultraconservadores como Jair Bolsonaro [deputado federal pelo PSC-RJ, autor de declarações polêmicas em torno de temas como a homossexualidade, o racismo e as ditaduras no Brasil e em países da América Latina], os chamados ‘esquerdopatas’ sejam os judeus da Alemanha nazista”.

A negação da alteridade, como sublinha, estabelece um inimigo, que pode pertencer a diversos grupos. Em suma, conclui Chico, o fascismo vai se apresentar como sucessor e herdeiro de um sistema que não tem condições de manter a coesão nacional. “O Estado fascista surge como uma policracia, com fontes autônomas de poder, com objetivos muitas vezes conflitantes, reunidos em torno de uma doutrina que serve de argamassa”, sintetiza.

Táticas fascistas

Apesar de identificar nos dias de hoje um avanço do conservadorismo e de uma direita agressiva, o filósofo brasileiro Paulo Arantes, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), não reconhece a ressurgência do fascismo, mas talvez um resgate das táticas fascistas. “O fascismo, tal como conhecemos, é indissociável daquelas circunstâncias do período entreguerras. Portanto, eu não uso a expressão ‘fascista’ nem para ‘xingar’, muito menos para caracterizar certas posições políticas da atualidade”, realça. Para ele, o fascismo foi um movimento de massa e demagógico por se ancorar em uma insurgência aparentemente anticapitalista. “Ele foi resultado de uma revolução conservadora, mas que falava em nome de uma ‘união nacional’, o que fez com que o movimento se alastrasse por toda a Europa”, reflete.  Isso significa, segundo Paulo, que o fascismo ganhou as massas porque a esquerda derrotada perdeu a oportunidade de emplacar uma revolução socialista que buscava confrontar a exploração, a expropriação e a dominação das elites.

O professor reconhece que existe hoje algo análogo ao que ocorreu nos anos 1920 e 30 nas ruas da Alemanha e da Itália, mas ele não chama isso de fascismo. “Quando você tem esse movimento de sublevação e que se transmuta em uma coisa de direita – e direita agressiva –, nos parece que o fascismo histórico é imitado. Mas o que a direita imita são as táticas revolucionárias da esquerda desde a Revolução Soviética, como as brigadas, o enfrentamento de rua, os piquetes”, compara. Um exemplo desta análise são as Jornadas de Junho de 2013, como ficaram conhecidas as manifestações em série iniciadas com uma reivindicação sobre a tarifa do transporte público. Para Paulo Arantes, este movimento provocou um “surto simétrico e antagônico”, que culminou com o surgimento de uma nova direita “extremamente agressiva”, um dos fenômenos mais importantes do Brasil contemporâneo. “Em São Paulo, o movimento pela redução da tarifa tomou conta das ruas. Era um bando de moças e rapazes que se diziam antipartidários, que avançaram diante de um pequeno núcleo de esquerda que perdeu o controle, não soube o que fazer e recuou”, analisa.

Isso, segundo Paulo, não significa afirmar que não vem coisa ruim por aí. “A gente só não sabe nomear ainda”, alerta. Para o filósofo, a analogia entre o momento atual e o fascismo reside no fato de a esquerda sentir-se perdida, sem saber o que fazer. Ele vai além e diz que não vê possibilidade de uma trégua ou de um entendimento entre ‘as partes’. “E quem perder está ferrado”, sentencia. Ele cita como exemplo os Estados Unidos, a partir do fenômeno Donald Trump, trazendo à tona movimentos que já existiam. “A eleição de Trump foi apenas uma reação da sociedade americana diante de uma desigualdade insuportável, mas tudo mais já estava posto: o supremacismo branco, o racismo, a xenofobia”, aponta. Segundo o historiador, nos EUA, esse pano de fundo foi apenas reativado. A má notícia, diz, é que o Brasil segue na mesma direção. E conclui: “O tabuleiro está completamente às avessas no mundo contemporâneo, e a esquerda mais uma vez não sabe agir diante do avanço do conservadorismo".