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Feminismo

Em dezembro do ano passado, Instituto Avon e Data Popular divulgaram uma pesquisa realizada com 2.046 jovens de 16 a 24 anos de todas as regiões do país, sendo 1.029 mulheres e 1.017 homens. Do total, 96% consideraram viver em uma sociedade machista. Mas, como demonstraram os resultados, grande parte ainda concorda com pressupostos associados à desigualdade de gênero: 68% desaprovam mulheres que têm relações sexuais no primeiro encontro, 80% afirmam que uma mulher não deve ficar bêbada em festas e 25% admitem pensar que mulher que usa roupa curta ou decote está ‘se oferecendo’ para os homens.
Leila Leal, Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 15/01/2015 11h29 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Em dezembro do ano passado, Instituto Avon e Data Popular divulgaram uma pesquisa realizada com 2.046 jovens de 16 a 24 anos de todas as regiões do país, sendo 1.029 mulheres e 1.017 homens. Do total, 96% consideraram viver em uma sociedade machista. Mas, como demonstraram os resultados, grande parte ainda concorda com pressupostos associados à desigualdade de gênero: 68% desaprovam mulheres que têm relações sexuais no primeiro encontro, 80% afirmam que uma mulher não deve ficar bêbada em festas e 25% admitem pensar que mulher que usa roupa curta ou decote está ‘se oferecendo’ para os homens. O cenário assusta quando a questão da violência é abordada: 78% das mulheres relatam já terem sofrido algum tipo de assédio; 37% já tiveram relação sexual sem preservativo por insistência do parceiro e 9% já foram obrigadas a fazer sexo quando não estavam com vontade.

Mas os números – e o cotidiano – mostram que a opressão às mulheres não se restringe à juventude ou às situações abordadas acima. Se associadas às perspectivas de classe social e raça, a desigualdade e vulnerabilidade que atingem as mulheres no Brasil se tornam ainda mais preocupantes. Ainda hoje, mulheres têm remuneração mais baixa que homens no mercado de trabalho, mesmo quando desempenhando as mesmas funções. Além disso, são maioria entre os postos de trabalho precários, sem garantias de direitos e com jornadas intensas e exaustivas. É o que mostra pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também no ano passado, com dados de 2012. Segundo o estudo, os homens seguem ganhando mais que as mulheres no Brasil: o salário médio para eles é de R$ 2.126,67, contra R$ 1.697,30 para as mulheres, uma diferença de 25,3%. No cenário geral, é a mulher negra e nordestina que tem o menor rendimento médio do país.

Ainda sobre violência, os casos mais graves, de homicídio contra mulheres, são alarmantes. O Brasil está em sétimo lugar na lista desse tipo de crime do mundo, com uma taxa de 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres. Foram mais de 43 mil assassinatos apenas na última década, atingindo principalmente mulheres entre 15 e 39 anos. Os dados do Instituto Sangari, em seu Mapa da Violência de 2012, apontam que 68,8% dos casos de violência ocorrem nas residências das vítimas e que as agressões praticadas por parceiros e ex-parceiros chegam a 42,5% dos casos. Em 51,6% dos casos, há reincidência, o que quer dizer que as mulheres violentadas já tinham sido vítimas do mesmo agressor anteriormente. Em 86,2% dos casos, o assassino é alguém da família ou próximo a ela. Para se ter uma ideia da gravidade do assunto, provavelmente apenas no tempo que você levou para ler esse verbete até aqui cinco mulheres foram espancadas. É que no Brasil, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas violentamente, como mostrou a pesquisa ‘Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado’, da Fundação Perseu Abramo em parceria com o Sesc, de 2010.

Espaço conquistado?

As muitas estatísticas são necessárias diante de um cenário em que o senso comum repete que o feminismo não seria mais necessário. Quem nunca escutou afirmações do tipo ‘as mulheres já conquistaram seu espaço no mercado de trabalho’, o ‘machismo acabou’, ‘mulheres já têm todos os seus direitos’ e outras no mesmo tom? Junto a isso, a própria noção de feminismo – apesar do crescimento de diferentes movimentos que o reivindicam nos últimos anos, no Brasil e no mundo –, segue rodeada de estereótipos e incompreensões. Talvez a principal delas seja a que imputa ao feminismo a ideia de um ‘machismo ao contrário’, como tentativa de alçar mulheres a uma condição de privilégio a partir da opressão aos homens.

Mas, afinal, o que é o feminismo e por que ele ainda importa? A blogueira e pesquisadora feminista Djamila Ribeiro explica, no artigo ‘As diversas ondas do feminismo acadêmico’, que o feminismo é a luta por uma sociedade sem hierarquia de gênero, com direitos iguais entre homens e mulheres e em que o gênero não seja utilizado para legitimar a opressão. Essa opressão é entendida como aquilo que fere a humanidade das mulheres.  “Importante frisar que há diversas correntes, linhas teóricas, vertentes que muitas vezes convergem e outras não”, explica. Luka Franca, militante feminista, destaca que há duas importantes características do feminismo que são o gênero – questionar os papéis e comportamentos estipulados como específicos e mais adequados para homens e mulheres na sociedade – e a luta pela igualdade respeitando as diferenças: “O feminismo não é para punir ninguém. É para emancipar e ajudar na construção de uma sociedade na qual homens e mulheres possam viver conjuntamente, sem medo, sem opressão”, defende.

Como você viu nos dados apresentados, por mais que a situação das mulheres na sociedade possa ter se alterado ao longo dos anos, a convivência plena marcada pela garantia de direitos e ausência de opressão ainda é bastante distante da realidade. Foi com essas premissas gerais que o feminismo se desenvolveu ao longo do tempo e assumiu diferentes facetas. Comumente, são identificadas três principais ‘ondas feministas’. A primeira corresponderia ao sufragismo, desenvolvido a partir de meados do século XIX para garantir às mulheres da Inglaterra e dos Estados Unidos o direito ao voto e ao trabalho. A segunda onda veio junto às lutas pela liberdade sexual em meados da década de 1960 e início da década de 1970, período marcado pelas ditaduras militares na América Latina. E a terceira começa no fim dos anos 1980 e ganha força nos 1990, discutindo as diferenças e especificidades do que se compreende como ‘ser mulher’.

Luka Franca defende que essas ondas sofreram influências de acordo com a realidade das mulheres de cada país: “Existem diferenças do feminismo no Brasil em relação aos países que não sofreram colonização. As mulheres negras e indígenas, por exemplo, sofreram diversos tipos de violência”, diz. E exemplifica: “Com o movimento sufragista se conquistou o direito ao voto, mas um voto censitário que não garantiu o direito de todas as mulheres”. Ela completa, buscando identificar as especificidades de cada formação social diante da categorização geral: “No Brasil vivemos uma terceira onda, mas ainda retomamos pautas da segunda, como a não culpabilização da vítima em relação à violência que sofre e o direito a autonomia do corpo. Ao mesmo tempo, travamos debates que não estão fixados em nenhuma das ondas. Falamos delas mais pra explicar quais eram as pautas de cada época, mas todos os debates se perpassam até que a conquista se dê plenamente”, explica. A categorização por ondas, por exemplo, não leva em consideração as lutas das mulheres socialistas que, na virada do século XIX para o XX, estavam mobilizadas especialmente na Europa pela pauta da libertação das mulheres e a integração de suas demandas às lutas revolucionárias, realizando conferências de mulheres e protagonizando a criação de um dia internacional para celebrar sua luta. As alemãs Clara Zetkin e Rosa Luxemburgo, junto à russa Alexandra Kolontai, são expoentes desse momento.

Reivindicações

Combate à violência contra a mulher, autonomia em relação ao próprio corpo, equiparação salarial, liberdade sexual... Ao longo desse verbete, algumas das reivindicações do movimento feminista foram citadas. Como conquistá-las? Para Flávia Biroli, vice-diretora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e coautora do livro de ‘Feminismo e Política’, o cerne para a superação da dominação de gênero está na superação da divisão sexual do trabalho, que seria a base para a manutenção de papeis diferentes e desiguais para mulheres e homens nas sociedades contemporâneas: “As mulheres seguem sendo as principais responsáveis pela vida doméstica e pelo cuidado com as crianças e idosos. Essa relação diferenciada aparece como obstáculo também para as mulheres profissionalizadas e com alto nível de educação, porque permanecem expectativas diferentes para mulheres e homens e porque o acesso ao tempo e aos recursos permanece diferente”, aponta.

A pesquisadora destaca, ainda, que essas experiências decorrentes da divisão sexual do trabalho são sentidas de formas muito diferentes, a depender da posição de classe ocupada pela mulher: “Em países como o Brasil ainda é possível contratar mulheres para realizar o trabalho doméstico com subsalário. As mulheres que estão na posição de contratantes não deixaram de ser responsabilizadas pela vida doméstica e o cuidado, mas o fato de que conseguem terceirizar essa responsabilidade e que ela seja terceirizada para outras mulheres é muito significativa na sua experiência. O peso da divisão sexual do trabalho é desigual nas experiências de diferentes mulheres”, avalia. E completa: “Ainda assim, permanece a incógnita: por que temos apenas 10% de mulheres no parlamento? Se os filtros de classe neutralizassem os de gênero, não haveria explicação para muito menos mulheres fazerem carreiras políticas que homens”, pontua. Para superação dessa situação, Flávia aposta em políticas públicas e ação do Estado: “Não depende de arranjos pessoais com pessoas de ‘cabeça aberta’, mas sim de política de Estado, com creches, escola em período integral, mudança na legislação relativa a licença maternidade e paternidade. Enquanto não tivermos essas alterações, que não estão na lógica das relações de trabalho instituídas, não teremos mudanças significativas”, defende.

Diana Assunção, diretora da Secretaria de Mulheres do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo e autora do livro ‘A precarização tem rosto de mulher’, concorda que a opressão de gênero está associada à divisão sexual do trabalho. “Mulheres terminam ocupando os postos mais precarizados, em geral os que carregam em si tarefas que são consideradas, como parte da opressão, ‘naturalmente’ femininas. Em uma sociedade baseada na exploração, é sempre necessário, aos que estão dominando, aperfeiçoar a maneira de dominar e combinar a exploração de uma classe com a opressão de um grupo social, para explorar melhor”, defende.

Para ela, a superação dessas relações está na ruptura com a forma de organização da sociedade que se utiliza da opressão para garantir a exploração do trabalho: “É uma ideia conservadora achar que as mulheres vão conquistar igualdade em uma sociedade que é baseada na desigualdade. Temos que fortalecer a classe trabalhadora, combatendo entre o movimento de trabalhadores todo o machismo, a homofobia e a transfobia que são transmitidos pela ideologia burguesa. Dizer isso não significa defender que lutaremos apenas pelas pautas econômicas e nem que apenas as mulheres da classe trabalhadora sofrem com o machismo. A violência contra a mulher transcende as fronteiras de classe. A questão é de que ponto iremos encarar essa luta. Acredito que somente vinculadas à luta dos trabalhadores, como classe, para construção de outra sociedade, as demandas das mulheres podem ter uma resposta profunda e se concretizar”, finaliza.