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Interseccionalidade

A cobrança pela diversidade no ambiente de trabalho, nas vagas no Ensino Superior, na representação política no Congresso, além da equidade no acesso à Saúde e à Segurança Pública tem crescido nas últimas décadas. E, para explicar as dificuldades de acesso a direitos que deveriam ser comuns a todos, o termo interseccionalidade tem ganhado cada vez mais espaço.
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 20/11/2023 08h31 - Atualizado em 22/11/2023 16h55

A cobrança pela diversidade no ambiente de trabalho, nas vagas no Ensino Superior, na representação política no Congresso, além da equidade no acesso à Saúde e à Segurança Pública tem crescido nas últimas décadas. E, para explicar as dificuldades de acesso a direitos que deveriam ser comuns a todos, o termo interseccionalidade tem ganhado cada vez mais espaço.

O verbete desta edição da Poli parte justamente da ideia de que é preciso analisar situações de opressão a partir de mais de um marcador social, ou seja, que, em geral, elas não podem ser explicadas a partir de um único elemento. Para exemplificar o conceito, a metáfora comumente utilizada é a de uma encruzilhada, em que cada avenida significa uma opressão: por exemplo, gênero, raça e classe.

No livro que ajudou a difundir essa ideia no Brasil – intitulado ‘O que é interseccionalidade?’ –, a pesquisadora e ativista Carla Akotirene explica que a proposta é fazer desse conceito uma ferramenta para se compreender a “inseparabilidade estrutural” entre opressões relacionadas ao racismo, ao capitalismo, ao patriarcado, à orientação sexual e à identidade de gênero e derivações dessas relações. Apesar de partir com frequência do ponto de vista da mulher negra, Akotirene reforça que não há limites de avenidas para essa encruzilhada e tampouco é possível realizar um somatório de opressões, ao contrário, é preciso sempre analisar todos os contextos envolvidos.

Para exemplificar, a autora cita em seu livro o medo sentido por mulheres brancas ao passarem por áreas periféricas em determinados horários, em geral habitadas por uma população de maioria negra. Nesse caso, importa refletir não só sobre a aflição sentida por essas mulheres, como também sobre aquela imposta ao homem negro visto como perigoso. A pesquisadora argumenta ser equivocado advogar pela centralidade do racismo ou do sexismo uma vez que “ambos, adoecedores e tipificados, são cruzados por pontos de vistas em que se interceptam as avenidas identitárias”.

Utilizar esse conceito na prática não é algo simples. A fala é da professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Valéria Carvalho, amparada na leitura de Patrícia Hill Collins, pesquisadora estadunidense que tem avançado no desenvolvimento do conceito. “Não basta dizer que é interseccional, é preciso analisar a realidade concreta, as especificidades, como essas opressões se materializam”, diz, ressaltando que essa ênfase em diferentes marcadores sociais é necessária tanto para estudos acadêmicos quanto para a ação de movimentos sociais. “Não há como desvincular a interseccionalidade dessa perspectiva teóricoprática, porque ela nasce nesse enfrentamento. Ao mesmo tempo que funciona como ferramenta para descrever as relações sociais, atua na perspectiva de destruição dessas várias violências”, reforça.

Origem

O artigo ‘Desmarginalizando a intersecção de raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina antidiscriminação, teoria feminista e política antirracista’, publicado em 1989 pela pesquisadora estadunidense Kimberlé Crenshaw, é comumente citado como marco na criação do conceito por usar pela primeira vez a palavra “intersecção”. O texto discute a ideia de interseccionalidade a partir de um processo judicial movido por trabalhadoras negras contra a General Motors, em que acusavam a fabricante de automóveis de discriminação. Elas perderam a causa com o argumento jurídico de que o fato de a empresa empregar homens negros e mulheres brancas afastava a acusação de racismo e de discriminação por gênero. O que a decisão não levou em conta – e que o conceito de interseccionalidade ajudaria a perceber – é que a divisão se dava entre homens negros trabalhando na linha de montagem e mulheres brancas atuando nos cargos de secretariado. A conclusão de Crenshaw é a de que não é possível analisar opressões sem promover o cruzamento entre elas.

Carla Akotinere, no entanto, defende em seu livro que, apesar da importância do artigo de Kimberlé, muitos movimentos e autores, principalmente mulheres do sul global, fizeram análises anteriores que tratavam da integração de diferentes marcadores sociais. Entre os exemplos, cita Lélia Gonzales, que no livro ‘Racismo e sexismo na cultura brasileira’, publicado em 1984, apresenta o conceito de amefricanidade e aponta o colonialismo que precisa ser incluído na análise que hoje se chama de interseccional, embora ela não tenha feito uso do termo.

Akotirene faz menção a um texto ainda mais antigo, do século 19, que também não usa a palavra intersecção, mas é considerado importante para a compreensão dessa relação entre diferentes opressões. Trata-se do discurso feito pela abolicionista Sojourner Truth em 1851 em uma convenção de direitos das mulheres em Ohio, nos Estados Unidos. Em sua fala, Sojourner, que havia sido escravizada, compara a experiência das mulheres negras com as aspirações de feministas brancas, que reivindicavam questões como a entrada no mercado de trabalho e não serem entendidas como seres frágeis e apenas destinados ao casamento. Em seu discurso, ela procurou mostrar que as pautas levantadas por um segmento de mulheres brancas não são comuns a todas as mulheres. “Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher?”, questionou. A professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz pontua que o discurso chama atenção para o risco da universalização de demandas específicas sem se atentar que muitas vezes elas têm, por exemplo, um corte de classe ou de raça. “Pautas dos movimentos feministas hegemônicos, em geral liderados por mulheres brancas de classe média, refletiam os anseios de seus lugares sociais mas, durante muito tempo, foram entendidas como reivindicações que diziam respeito a todas as mulheres indistintamente”, diz.

Por outro lado, Carvalho observa que reconhecer elementos interseccionais não significa estabelecer hierarquias entre as pautas. “A questão de prioridade não está posta, mas é preciso reconhecer a diversidade da classe trabalhadora. No período em que Sojouner discursa, as mulheres brancas tinham como pauta, entre outras coisas, a entrada no mercado de trabalho, enquanto as mulheres negras já estavam inseridas nesse mercado de forma forçada e numa situação de extrema violência e exploração. Por que não podemos fortalecer as demandas específicas de cada grupo? Eu acho que as coisas podem ir juntas”, opina, avaliando, no entanto, que, historicamente, essa união dificilmente ocorre. Em sua visão, essa dificuldade se deve à ausência do reconhecimento da existência de demandas variadas. Em um exemplo mais recente, essa compreensão foi percebida durante as manifestações contra o assassinato de George Floyd, um homem negro, pela polícia dos Estados Unidos em 2020. Nesses atos, manifestantes brancos fizeram cordões de segurança para proteger os manifestantes negros, diante do entendimento do caráter racista das ações policiais.

Em outras palavras, o texto de Sojouner explicita situações que a interseccionalidade se propõe a resolver: a superinclusão e a subinclusão. No primeiro caso, um subgrupo impõe a discriminação vivida como uma situação que atinge a todos e, no segundo, uma particularidade vivida por um subgrupo não é considerada em meio a outras diferenças. “Em resumo, nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível”, explicou Kimberle Crenshaw no texto ‘Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero’.

Formas de uso

Pensar o entrelaçamento de opressões que o conceito de interseccionalidade propõe a partir da prática de luta é um caminho que vem sendo adotado, por exemplo, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “A gente costuma dizer que é fácil diferenciar uma análise de quem vivencia as condições reais dessas opressões daquela feita por quem apenas olha para essas opressões, mesmo que as duas partam da mesma linha teórica. Então, creio que uma coisa é a análise e outra coisa é a construção prática do enfrentamento a essas opressões considerando essas interligações”, diz Lucineia Freitas, dirigente nacional do setor de gênero do Movimento.

Ela relata que os debates interseccionais ganharam corpo no MST a partir dos anos 2000 com a temática de gênero, apoiados nas leituras da socióloga marxista Heleieth Saffioti, que trabalha com a ideia de que existem três contradições principais no sistema capitalista: raça, classe e gênero. “Os elementos que serão observados irão variar a partir da inserção do indivíduo. No nosso caso, partimos do feminismo camponês popular, lembrando que a maioria dos integrantes do MST é negra”, ilustra. No entanto, diz, mais do que a preocupação teórica, essas discussões têm a função de auxiliar a sistematização das lutas cotidianas. Ela lembra ainda que os debates no MST não foram isolados e ocorreram como reflexo de discussões que estavam sendo realizadas nos movimentos integrantes da Via Campesina.

Apesar de ter sido puxado pelo setor de gênero, pondera Freitas, as questões interseccionais não ficam restritas a um nicho. “Entendemos que o setor tem a função de auxiliar o debate das relações humanas no Movimento como um todo e envolver o conjunto da organização”, diz. Esse envolvimento levou à aprovação da paridade de gênero nas instâncias de decisão desde 2006 e tem auxiliado a desnaturalizar as tradicionais divisões de trabalho, em que, por exemplo, os homens ficam comumente responsáveis pela produção, enquanto às mulheres cabem funções de educação e saúde. Outro ponto de avanço nos últimos anos esteve na criação do coletivo LGBT em 2015. “Com isso, o nome social e o reconhecimento dos casais homoafetivos, fundamentais para a posse do lote de terra, deixam de ser considerados uma particularidade dos indivíduos e o Movimento passa a cobrar a garantia desses direitos”, conta.

 

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