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Solidariedade

“Seja solidário”. Pense em quantas vezes você já não escutou algo do tipo. Muitas não? Exemplos não faltam: é só começar a fazer frio que surgem campanhas chamando atenção para a importância da solidariedade por meio de ações de distribuição de roupas e cobertores para os carentes; em dezembro, época de Natal, a solidariedade prega que nos lembremos daqueles que não têm ceia nem brinquedos. Hoje a solidariedade é uma noção que é citada frequentemente em programas assistenciais do governo, por empresas com “responsabilidade social”, organizações não governamentais (ONGs), entidades religiosas, partidos, sindicatos e que está presente também na concepção de políticas orientadas pela lógica do interesse coletivo, como o SUS, que é estruturado a partir de recursos arrecadados de todos os brasileiros, desde os que precisam utilizar frequentemente os serviços até os que necessitam deles com menor frequência. Mas estarão todos falando da mesma coisa?
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/11/2013 17h34 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“Seja solidário”. Pense em quantas vezes você já não escutou algo do tipo. Muitas não? Exemplos não faltam: é só começar a fazer frio que surgem campanhas chamando atenção para a importância da solidariedade por meio de ações de distribuição de roupas e cobertores para os carentes; em dezembro, época de Natal, a solidariedade prega que nos lembremos daqueles que não têm ceia nem brinquedos. Hoje a solidariedade é uma noção que é citada frequentemente em programas assistenciais do governo, por empresas com “responsabilidade social”, organizações não governamentais (ONGs), entidades religiosas, partidos, sindicatos e que está presente também na concepção de políticas orientadas pela lógica do interesse coletivo, como o SUS, que é estruturado a partir de recursos arrecadados de todos os brasileiros, desde os que precisam utilizar frequentemente os serviços até os que necessitam deles com menor frequência. Mas estarão todos falando da mesma coisa?

Solidariedade na Constituição

Mas voltemos ao começo: esta revista é uma edição especial sobre os 25 anos da Constituição Federal de 1988. Aí você pergunta: e a solidariedade tem alguma coisa a ver com isso? Tem, e não é preciso ir muito fundo no texto constitucional para ver essa relação, que aparece logo na primeira parte da Carta, sob o título ‘Princípios Fundamentais’: no artigo 3°, são estabelecidos os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil e o primeiro deles é justamente construir uma sociedade “justa, livre e solidária”. Essa foi uma inovação da Carta Magna de 1988, segundo o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Marcus Orione, que afirma que nas Constituições anteriores – de 1824, 1891, 1937, 1946 e 1967 – não há disposição semelhante. “Aliás, as constituições anteriores tinham por tradição, em seus dispositivos iniciais, cuidar de questões referentes à estrutura do Estado e, somente mais adiante, dispunham sobre os direitos dos cidadãos, como era o caso dos direitos individuais (liberdade de expressão, direito à vida etc.) e, em algumas, dos direitos sociais (direitos do trabalho, à previdência social, à saúde etc.). Na Constituição de 1988, os direitos relacionados à cidadania, pela primeira vez na história de nossas constituições, passam a assumir, inclusive na geografia constitucional, a primazia”, afirma Orione. Segundo ele, isso tem a ver com o contexto em que ela foi elaborada, com o país saindo de uma ditadura civil-militar instaurada em 1964. “O país saía exatamente do contrário: uma sociedade não justa, não livre e não solidária. A afirmação desses três postulados significa a tentativa de um compromisso nacional, consignado na Constituição de 1988, em torno de uma nova sociedade após os anos de ditadura. Aliás, qualquer constituição representa exatamente um pacto, que promove a fundação de uma nova sociedade. Assim, nada mais normal que a liberdade do povo e o estreitamento dos laços de solidariedade estivessem previstos na Constituição de 1988”, explica. De acordo com Orione, embora o artigo 3° cite explicitamente o termo, a solidariedade é na verdade uma noção mais comumente associada a um trecho que está mais adiante no texto constitucional, especificamente no capítulo que institui a Seguridade Social, sistema de proteção social que abrange a saúde, a previdência e a assistência social. De acordo com o professor, a seguridade é um sistema baseado na solidariedade.

Como aponta o professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Montaño, no artigo ‘O projeto neoliberal de resposta à “questão social” e a funcionalidade do “terceiro setor”’, a Constituição consagra um projeto societário que coloca o Estado como responsável pela intervenção na chamada ‘questão social’ por meio do que chama de “solidariedade sistêmica”. Isso significa que a sociedade é “responsável pela resposta às sequelas da ‘questão social’, o Estado é, na verdade, o instrumento privilegiado de sua realização. Assim, a intervenção estatal na ‘questão social’ é financiada mediante a contribuição compulsória de toda a sociedade, incluindo o capital. As classes e o conjunto dos cidadãos participam desigualmente (segundo sua renda e/ou seu patrimônio) no financiamento dessa intervenção social do Estado”, explica. Assim, a ideia da solidariedade prevista na seguridade social é promover uma distribuição equitativa de deveres e direitos no que se refere aos serviços públicos: cada um contribui de acordo com suas capacidades para a manutenção do sistema, que por sua vez atende a cada segmento de acordo com suas necessidades. É o que permite, por exemplo, que uma pessoa que sofra um acidente de trabalho tão logo comece a trabalhar se aposente por invalidez, ou que um idoso que, por estar aposentado, contribui menos do que um trabalhador empregado para o financiamento da seguridade, não seja privado dos serviços públicos de saúde e previdência justamente no momento em que mais precisa.

Qual solidariedade?

Segundo Marcus Orione, um modelo de seguridade social ousado como o previsto na Constituição de 1988 não existe em nenhuma Constituição atual no mundo. A despeito (ou por causa) disso, a ideia não vingou por aqui. “Quando o Brasil fez a inclusão de dispositivos relativos aos direitos sociais no bojo de sua Constituição, o mundo já estava em plena marcha neoliberal. Certamente a implantação de um Estado social, que nunca existiu plenamente no Brasil, teria dificuldades de ser consolidada. Uma coisa é colocar direitos sociais (como direitos trabalhistas, à previdência social, à saúde ou à assistência social) na Constituição, outra coisa é efetivá-los no mundo dos fatos. Entre o desejo constitucional de proteção social e a sua efetivação corre um abismo, que nunca foi totalmente sanado”, discorre.

Em seu artigo, Carlos Montaño argumenta que, sob o neoliberalismo, esse abismo aprofunda-se com a diminuição da intervenção estatal via privatização e terceirização das políticas públicas e serviços sociais, além de corte de gastos sociais, o que implica a “passagem de uma responsabilidade do conjunto da sociedade em financiar esta ação estatal para uma auto-responsabilidade dos necessitados pela solução dos seus próprios carecimentos”. O texto continua: “Isto significa que passa a haver um autofinanciamento pelos próprios sujeitos carenciados, complementado pela participação voluntária. O capital deixa de ser obrigado a co-financiar as políticas sociais estatais; passa-se de uma ‘solidariedade sistêmica’ (mediante a contribuição compulsória e diferencial) para uma ‘solidariedade individual e voluntária’”. Em seu livro ‘Terceiro e questão social’, Montaño explica a diferença entre a “solidariedade individual e voluntária” e a “sistêmica”: “No primeiro caso, quem requer da ação solidária deve apelar para a boa vontade, a disponibilidade, a sensibilidade de outrem, deve se resignar a aceitar o que vier (se vier) e como vier [...] No segundo caso, a obrigatoriedade da ação solidária é constitutiva de direito social; aqui, quem requer da solidariedade tem o direito de obtê-la”.

Marcus Orione usa as políticas de desoneração fiscal implementadas atualmente para exemplificar de que forma a retirada da obrigação do capital em cofinanciar as políticas sociais estatais fere o princípio da solidariedade consignado na Constituição. “A noção de solidariedade no capitalismo neoliberal é vista a partir da arrecadação de valores, em especial dos trabalhadores, como suposta forma, que nunca veio, de redistribuição de renda. Em geral, as empresas são poupadas nesse processo, como se percebe das atuais desonerações das contribuições sociais para diversos setores do empresariado – o que, aliás, é de se estranhar, já que sequer combina com o discurso de que em especial a previdência social é deficitária”, aponta Orione, lembrando que essas políticas afetam o orçamento da seguridade, que é financiada por contribuições sociais atingidas pelas desonerações, como a Cofins e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).

Disputas e limites

Mas isso não significa que haja uma solidariedade “verdadeira” e outra “falsa”, como coloca a assistente social e especialista em Políticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rute Gusmão. No artigo ‘A ideologia da solidariedade’, ela afirma que há, isso sim, “uma solidariedade que oculta a luta de classes, portadora de uma visão parcial da sociedade, que não considera as relações sociais no interior do capitalismo baseadas na propriedade dos meios de produção e na apropriação privada do excedente”. Por outro lado, diz, “há uma solidariedade historicamente vivida, intrínseca à produção, à luta e à organização dos trabalhadores, mas transformada ao longo da história pela visão dominante”.

Marcus Orione vai pelo mesmo caminho, apontando que mesmo a solidariedade inscrita na seguridade social da Constituição de 1988 tem seus limites: “O direito captura, sequestra a realidade, mas o faz de forma ficcional e incompleta. A verdadeira solidariedade somente é factível quando a desvincularmos de ilusões (como as religiosas e as jurídicas, por exemplo) e da lógica de mercado. Somente com o fim do capitalismo será possível a instauração de uma verdadeira lógica de solidariedade”.