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SUS

Há 30 anos, nascia oficialmente um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Concomitantemente à promulgação da Constituição Federal de 1988, foi instituído o Sistema Único de Saúde, o SUS. O artigo 196 afirma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Fruto de mobilização e pressão social, o direito definido constitucionalmente garantiu acesso universal aos serviços de saúde em todos os níveis, em todas as regiões, respeitando as diferenças.
Ana Paula Evangelista - EPSJV/Fiocruz | 02/10/2018 10h35 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Há 30 anos, nascia oficialmente um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Concomitantemente à promulgação da Constituição Federal de 1988, foi instituído o Sistema Único de Saúde, o SUS. O artigo 196 afirma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Fruto de mobilização e pressão social, o direito definido constitucionalmente garantiu acesso universal aos serviços de saúde em todos os níveis, em todas as regiões, respeitando as diferenças.

A regulamentação do SUS garantida na Constituição ocorreu em 1990, por meio de duas Leis Orgânicas da Saúde: a 8.080 que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes; e a 8.142 que trata da participação da comunidade na gestão do Sistema e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. Numa composição entre o que aparece na Constituição Federal e em outras legislações, didaticamente costuma-se considerar a universalidade, a equidade e a integralidade como princípios do SUS, que devem ser norteados pelas diretrizes da descentralização, regionalização e hierarquização, e participação social. 

Princípios

O princípio da universalidade prevê que todos os cidadãos tenham direito à saúde, o que difere completamente da perspectiva de seguro social que esteve presente no Brasil desde a Lei Eloi Chaves em 1923, quando trabalhadores e empregadores financiavam as Caixas de Aposentadoria e Pensões (Caps), e que perdurou até o modelo do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) em 1990 (ver reportagem na página 4). Segundo Gustavo Matta, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), a universalidade pressupõe a noção de direito, o que torna completamente inadequada qualquer menção à ideia tanto de pagamento quanto de gratuidade. “No Brasil, o direito à saúde é um direito social, coletivo, e não um direito individual garantido mediante pagamento e respectiva cobertura. Atualmente, a universalidade é a questão mais cara ao SUS, já que, apesar de estar garantida constitucionalmente, nunca deixou de sofrer ataques. A partir do golpe de 2016, acontece uma mudança radical, com a austeridade e uma menor porosidade em relação às discussões de saúde, ciência e tecnologia”, define Gustavo e ainda alerta: “Caso não consigamos fazer resistência a essa onda de austeridade e redução do papel do Estado e das políticas públicas e sociais do Brasil, o SUS estará fadado ao preenchimento precarizado daquilo que o privado, fragmentadamente, vai acabar oferecendo para a população, seja pelos planos de saúde populares ou pela oferta direta de serviços de saúde”.

A equidade busca reconhecer a pluralidade e a diversidade das necessidades de saúde. Diz respeito, portanto, a tratar desigualmente o desigual, atentar para as necessidades coletivas e individuais.  É o princípio da equidade que orienta que o sistema possa garantir regras diferentes de assistência, por exemplo, para moradores de rua, disponibilizando unidades de atendimento móvel e outros recursos. Esse princípio não está presente nos textos fundacionais do SUS e apenas algum tempo depois apresentou-se como um norteador das políticas nos documentos legais e nos textos acadêmicos. Para Tatiana Wargas, pesquisadora do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Ensp/Fiocruz, a interação entre a universalidade e a integralidade já engloba esse conceito. “A equidade não aparece anunciada na Constituição. Essa divisão é didática. O debate da equidade foi um pouco externo na década de 90 e a questão da judicialização [para atender a necessidades individuais específicas] sempre me deixou receosa. É claro que tem que fazer diferenciação porque há grupos que são mais vulneráveis que outros, mas isso a gente já colocava quando se brigava por uma ideia de universalidade com integralidade. À medida que se promove um direito universal e que esse direito também é integral, teremos a garantia da equidade”, defende Tatiana.

Gustavo concorda. “Dividimos essa forma para tentar organizar o debate, tendo os princípios como base e as diretrizes como os meios que utilizamos para atingir esses princípios”, diz. Ele explica que a defesa da equidade é fruto de um dos maiores e mais históricos problemas do país: as iniquidades sociais e econômicas, que geram desigualdades no acesso, na gestão e na produção de serviços de saúde.

A integralidade enquanto princípio do Sistema Único de Saúde busca garantir uma abordagem integral do sujeito, levando em conta as determinações sociais da saúde e da doença. No texto constitucional, apresenta-se como um esforço de ruptura em relação às ações meramente curativas. Incorpora o conceito ampliado de saúde e inclui politicas de atenção às necessidades de grupos específicos, como a atenção integral à saúde da mulher e a política de atenção à DST/Aids. “A integralidade é entendida como um conceito capaz de reconhecer que desde a vacina e as ações da coletividade, a vigilância sanitária, todos os conjuntos de ações que estão voltadas para o controle de doenças são absolutamente necessários para a saúde da população, as condições de vida. Integralidade engloba o conceito ampliado de saúde, segundo o qual as pessoas precisam ter condições de vida, de moradia, de trabalho, de lazer, de educação. Garante que as pessoas tenham acesso a transplante, hemodiálise, uma cirurgia reparadora”, esclarece Tatiana. De acordo com a pesquisadora, esse é o projeto da Estratégia Saúde da Família, organizada com uma equipe multidisciplinar de profissionais que buscam uma saúde humanizada e coletiva que proporcione qualidade de vida à população.

Diretrizes

Os alicerces estruturais desses princípios são as diretrizes. A descentralização, por exemplo, prevê a distribuição do poder político e responsabilidade pelo direito à saúde entre os três níveis de governo. “A descentralização indica que sejamos capazes, como sistema de saúde, de organizar proximamente às populações o acesso a serviços de saúde. Vai além da simples descentralização de serviços e recursos, mas fala de uma descentralização de responsabilidades, com o olhar sobre o território”, explica Tatiana. Os mecanismos e estratégias que organizam e regulam a descentralização como diretriz do SUS estabelecem instâncias de representação, monitoramento e pactuação política e administrativa envolvendo as três esferas de governo.

A lei 8.080 também dispõe sobre a necessidade de regionalização e hierarquização da rede de serviços. Essa diretriz diz respeito a uma organização do sistema que deve focar a noção de território como o espaço de atuação dos serviços de saúde, a partir da identificação dos perfis populacionais, da produção de indicadores epidemiológicos e da observação e ação sobre as condições de vida daquela população. A partir daí, os serviços são organizados em diferentes níveis de complexidade. A ideia é que uma pessoa com dor de cabeça, por exemplo, não precise ser atendida em um grande hospital onde a prioridade são as emergências. Ela deve procurar uma Unidade Básica de Saúde, para atendimentos de baixa complexidade. E isso orienta também a distribuição dos serviços de maior complexidade entre os municípios. “Nesse processo de descentralização, organizar em municípios de pequeníssimo porte e pequeno porte uma rede de saúde totalmente estruturada de baixa a alta complexidade é inviável economicamente e desnecessário”, exemplifica Tatiana. 

Nessa configuração, a União coordena os sistemas de saúde de alta complexidade e de laboratórios públicos por meio do Ministério da Saúde; os estados criam as suas próprias políticas de saúde e ajudam na execução das políticas nacionais aplicando recursos  próprios, também coordenam sua rede de laboratórios e hemocentros, definem os hospitais de referência e gerenciam os locais de atendimentos complexos da região. Já os municípios garantem os serviços de Atenção Básica à saúde e prestam serviços em sua localidade, com a parceria dos governos estadual e federal. Tatiana lembra que a trajetória da descentralização é um esforço que vem desde os anos 1990, na tentativa de buscar o diálogo entre municípios e estados na configuração de regiões de saúde que sejam capazes de se organizar para atender as necessidades de saúde da população. “A Estratégia da Saúde da Família foi a aposta feita para que os municípios organizassem a Atenção Básica. Se há uma boa estruturação da Atenção Básica, uma série de problemas da saúde crônicos são minimizados. Ao se acompanhar toda uma população, também fica facilitado o acesso à média e alta complexidade toda vez que for necessário”, indica Tatiana.

Por fim, a diretriz da participação popular é um dos marcos históricos da Reforma Sanitária brasileira, quando, no final dos anos 1970, sanitaristas, trabalhadores da saúde, movimentos sociais organizados se engajaram na luta pela saúde como um direito. Para isso, o SUS possui instâncias colegiadas de participação popular – os conselhos e conferências de saúde – em cada esfera de governo. Os conselhos são espaços deliberativos, que fazem parte da estrutura das secretarias de saúde dos municípios e dos estados e do governo federal. Já as conferências ocorrem a cada quatro anos para a reformulação das políticas de saúde, são consultivas e compostas pela representação de três segmentos: gestores, trabalhadores e usuários. “A participação social também garante a aproximação da população, que usa diariamente os serviços e deve ser  a nossa principal  interlocutora. Por outro lado, essa participação não pode ser viciada nos mesmos grupos. Há uma necessidade de intensificar e ampliar essa ação”, destaca Tatiana.

Resistência

“O SUS avançou, oferece acesso universal a qualquer pessoa com ou sem plano de saúde, uma série de lutas foram conquistadas. Também expandiu a atenção primária, ou seja, teve progresso na universalidade e na integralidade. No entanto, a equidade ainda está em débito”. A avaliação é de Gustavo Matta que, no entanto, ressalta que, se comparado a outras políticas sociais – como educação e habitação –,  o SUS foi o que mais avançou. “Basta pensarmos que cerca de mais de 60% da população brasileira depende exclusivamente do SUS, não tem acesso a nenhum tipo de serviço privado de saúde e geralmente lá estão as situações mais complexas, em que a gente precisa de muito esforço para ter melhores resultados”, completa.

E isso não é por acaso. Gastão Wagner, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), explica que os sistemas públicos de saúde, como o SUS, são mais efetivos, ou seja, resolvem mais problemas de saúde com mais eficiência e custo menor do que o mercado. “O Estados Unidos gastam per capita quatro vezes mais do que o Reino Unido e têm resultados piores. Também, no Brasil, apesar das dificuldades financeiras, de pessoal, de gestão, é fácil encontrar exemplos de êxito. A proposta de cuidado da diabetes do SUS é muito superior a qualquer plano privado, os mais caros inclusive. Além da consulta médica, a gente tem insulina, medicamento, abordagem multiprofissional, acompanhamento com psicólogos... É outro padrão. Também podemos citar a ações para tratamento da hipertensão, a saúde materna, à criança. Os melhores hospitais de oncologia no Brasil são públicos. O melhor atendimento em terapia intensiva é público, o transplante idem, o programa nacional de vacinação tem uma cobertura imensa”, comemora Gastão, ao mesmo tempo em que alerta sobre os ataques ao sistema: “O Governo Federal pós golpe é explicitamente contra o SUS. Os outros governos não apoiavam de forma suficiente, segundo a análise da Reforma sanitária, mas eram a favor do SUS. É a primeira vez que a gente tem um Ministério da Saúde contra o SUS, que é agente do setor privado da saúde. E isso é uma novidade negativa”. Reconhecendo que construir um projeto democrático não é um processo fácil nem rápido, Tatiana Wargas aposta numa mobilização que vá além da saúde. “Lutar por um projeto civilizatório significa combater com muita ênfase as nossas desigualdades. Logo, significa enfrentar de forma contundente os interesses privados desse país. O projeto do Sistema Único de Saúde é lindo, é um desejo societário maravilhoso, mas ele sozinho não se sustenta, precisa de um projeto maior de sociedade, precisa de outras políticas públicas”, conclui.