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Entrevista: 
Paulo Passarinho

'O prefeito é um agente político, não um síndico'

Em tempos de eleições municipais, temas como saúde, educação e transporte são as mais presentes nas campanhas eleitorais; o trabalho, não. A ausência desta temática é incompatível com a responsabilidade do poder municipal em relação à geração de empregos, direta e indiretamente. Paulo Passarinho, economista, especialista em políticas públicas e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro, analisa nesta entrevista as políticas de incentivo fiscal realizadas atualmente por cidades de todo país, o tipo de emprego gerado e aponta ainda um caminho que, na sua opinião, deveria pautar a gestão dos futuros prefeitos: o de recuperação do serviço público, favorecendo assim, uma maior geração de empregos de qualidade.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 13/09/2012 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Atualmente os prefeitos com mais intenção de votos das grandes capitais não abordam a questão do trabalho diretamente em seus programas. Por que essa discussão não está sendo feita?

Essa constatação é interessante porque ela é um sintoma muito forte da maneira como o poder público municipal é gerido hoje. A principal função do prefeito é criar condições para gestão de serviços adequados à população, conforme, inclusive, determina a Constituição. Na área da educação, por exemplo, toda a responsabilidade do chamado ensino fundamental é do município. No plano da saúde, é o município o principal ente do SUS a executar políticas de prevenção. Sob o ponto de vista do transporte, também é absolutamente fundamental a intervenção do poder público municipal. Então têm exemplos de três tipos de serviço, em que a responsabilidade do prefeito é absoluta. Levando-se em conta a deterioração ou a degradação desses serviços públicos, que me parece acelerada no Brasil como um todo, o caminho fundamental, se não o principal, para um prefeito responder a esta questão da geração de empregos seria uma recuperação completa dos serviços públicos. E quando você aponta que esta questão não aparece de maneira muito clara nas prioridades dos candidatos, talvez isso, revele uma incapacidade que hoje o poder público municipal demonstra em torno da sensibilidade e da prioridade que deveria dar a essas áreas, que são totalmente sentidas pela população, em termos de serviços degradados. E estas são áreas extremamente demandantes de mão de obra qualificada. Dando atenção a estes setores, me parece, que o prefeito poderia se destacar na contribuição de uma maior oferta de emprego e de emprego de qualidade. Se isso não se dá é porque o foco da preocupação dos prefeitos está deslocado. Ele deve se posicionar como um promotor de padrão de qualidade dos serviços públicos. Aliás, do ponto de vista do Brasil como um todo, o grande caminho que nós teríamos em termos de recuperação do investimento público, da oferta de emprego, da geração de renda, seria uma política firme, decidida, prioritária de recuperação completa dos serviços públicos de qualidade e universais. Nos últimos 15 ou 20 anos nós procuramos responder à questão da universalização, mas ela veio acompanhada de uma degradação lamentável dos serviços como a desvalorização do trabalho dos servidores públicos, por exemplo. Então, um prefeito que tenha clareza nesse momento e resolva priorizar a recuperação dos serviços públicos certamente teria muito que contribuir para a geração de emprego.

Além do fortalecimento dos serviços públicos, qual são outras formas de geração de emprego na esfera municipal? A política de atração de grandes empresas compensa?

Esta política de atração de empresas é claramente uma desculpa de que, por meio de ações de forma indireta da prefeitura, seria gerado um maior número de empregos e de qualidade e se estimularia um dinamismo econômico. Este tipo de política é muito questionável porque, por exemplo, o setor que é extremamente beneficiado por incentivos fiscais que é a indústria automotiva tem um grau de automação muito intenso e o governo abre mão de receitas fundamentais, ao mesmo tempo, que favorece grandes grupos econômicos de multinacionais com a cessão de terrenos e com obras de infraestrutura. É uma série de concessões que o poder público acaba por fazer que efetivamente não compensam para a sociedade como um todo e, particularmente, na geração de empregos. Nós temos um exemplo claro que é o da TKCSA [Thyssen Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico, no Rio de Janeiro] e os benefícios que essa empresa recebeu. É um empreendimento que teve todas as facilidades e é, na verdade, uma unidade fabril de uma cadeia produtiva que começa no Brasil e vai acabar na Alemanha ou nos Estados Unidos. Mas, a parte mais impactada em vista do meio ambiente, por exemplo, e da utilização de recursos naturais fica aqui no Brasil. Além disso, o processo de construção da usina , na fase que demandou uma oferta de trabalho maior, teve importação de mão de obra em massa, inclusive, chinesa, e agora, na fase de funcionamento, a oferta de emprego se reduziu a um décimo. Então isso mostra muito bem que é muito questionável esses chamados "incentivos indiretos" para a geração de emprego pelo mercado. Eu concordo que o prefeito não só pode ter ações para gerar empregos diretamente, mas ele tem a responsabilidade de contribuir com ambientes harmônicos para que as empresas privadas tenham melhores condições de oferecer emprego de qualidade. Mas o caminho não seria evidentemente esse dos incentivos fiscais indiscriminados.

Quais alternativas o senhor sugere?

O caminho seria que prefeitos destas grandes capitais se engajarem em uma luta que não diz respeito à esfera municipal, mas que é fundamental para a criação desse ambiente macroeconômico favorável à produção, ao emprego, e não apoiando à especulação e ao setor financeiro. Seria a promoção de uma reforma tributária pra valer, mas isso é uma questão empurrada com a barriga por diferentes governos que acabam por fazer adaptações da estrutura atual do país, que é absolutamente inconveniente.

E no caso das cidades pequenas, como elas poderiam interferir?

A alternativa que eu vislumbro não é no campo meramente administrativo, é também no político, com uma forte pressão dos governadores e dos prefeitos sobre o poder público federal para a concepção de uma reforma tributária séria. Cada prefeito tem que enfrentar a questão da administração pública do ponto de vista político. Quando eu falo da reforma tributária significa também você ter uma melhor distribuição e isso diz respeito também a política fiscal, uma melhor distribuição dos recursos arrecadados no Estado brasileiro. Hoje, por conta da ditadura financeira, a maior parte dos recursos fica concentrada na União e a menor parte é distribuída para estados e municípios. Isso só é resolvido com este binômio: a reforma tributária e reforma fiscal pressionada pelos prefeitos com toda a sua importância como agentes políticos.

Qual emprego está sendo gerado atualmente? E como isso é responsabilidade da esfera municipal?

Como uma característica geral, a oferta de emprego no Brasil nos últimos 10 anos esteve muito baseada no dinamismo de alguns setores bem específicos da economia, particularmente, o setor agrícola e mineral extrativo, o setor de construção civil e o setor de serviços, especialmente em algumas áreas como o telemarketing, além do comércio. De uma maneira geral, eles são de baixa qualificação e baixa remuneração. Nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, é possível observar que a oferta de empregos criada foi em funções cuja remuneração é de até dois salários mínimos. O saldo de emprego nas funções que têm remuneração acima deste valor foi negativo, ou seja, houve mais demissões do que contratações. Temos que levar em conta também que a política ativa de valorização do salário mínimo favoreceu, e muito, a formalização de novos contratos de trabalho, porque o salário mínimo acaba sendo uma referência de remuneração, inclusive, do trabalho informal. Se esse salário mínimo se elevou de uma forma importante, porque houve reajustes reais- e isso é um ponto positivo dos últimos governos- ele também, sob o ponto de vista da geração de emprego, significou, um incentivo a formalização dos empregos que já existiam, como é o caso das empregadas domésticas. Passou a ser vantajoso para o empregador assinar carteira. Por fim, houve uma expansão generalizada dos chamados serviços terceirizados e esses são muito problemáticos, porque acabam sendo mais precários do que os demais empregos nesta faixa dos dois salários mínimos. Muitas empresas contratantes não respeitam de forma adequada a legislação trabalhista, descobrindo mil maneiras de burlar essa legislação. Então, o que nos temos nos últimos anos no país, é uma expansão de empregos com essas características, onde a gente pode apontar que a grande marca é a precarização.

E como o prefeito pode atuar em relação a isso, na desprecarização do trabalho?

De forma indireta é muito difícil. De forma direta não, porque de forma direta significa a prefeitura oferecer emprego. Os empregos no setor público, em geral, são mais qualificados porque exigem maior capacitação e deveriam ser mais bem remunerados. Agora, sob o ponto de vista indireto, aí foge completamente à competência do prefeito, porque isso diz respeito ao projeto econômico que está em curso no país, e a responsabilidade maior disso é do governo federal. São as regras gerais da economia que favorecem esse tipo de atividade, as atividades agromineral exportadora, ao chamado agronegócio e ao setor de serviço e construção civil. Essa característica é resultado do dinamismo econômico que nós temos hoje.

Qual é o papel do prefeito em relação à informalidade em determinados setores?

O que eu penso é que deve haver um mínimo de normatização do trabalho informal. Agora eu não serei capaz de desenvolver mais do que isso porque a rigor você tem que compatibilizar os interesses do comércio formal, que, evidentemente, não quer ver a calçada ocupada por camelôs, por exemplo, mas, ao mesmo tempo, você não pode abstrair a dificuldade de que inúmeros segmentos da população têm para adquirirem seu sustento. Então você tem que ter uma capacidade de arbitrar esses conflitos que surgem e uma maneira de fazer isso é criando zonas especiais para o trabalho dos ambulantes, segurança dos produtos para os consumidores que recorrem aos ambulantes, preservando de um lado aqueles que precisam dessa renda para sobreviver, e, por outro, os interesses do comércio formal.

Uma questão interessante que a gente constata também é que existe essa geração de emprego temporários por conta destes grandes empreendimentos , que inclusive incentiva um migração de trabalhadores. Como você analisa isso?

Quando a obra acaba fica uma população flutuante de desempregados. Isso na realidade é um problema porque justamente o que você poderia imaginar é um processo econômico mais virtuoso que especialmente estimulasse a produção de empregos em outros setores que não esses, mas não temos esse ambiente , a política macroeconômica não é favorável à produção de melhor qualidade e à oferta de empregos de melhor qualidade. Essa é uma característica do que eu chamo do modelo liberal periférico, que está em curso desde as reformas dos anos 1990. Eu acho que hoje o Brasil está em uma "encralacrada" tão grande que a rigor a margem de manobra dos prefeitos, assim como dos governadores, é muito limitada. Agora, é limitada, mas não é desimportante: primeiro porque eles têm responsabilidade direta sobre as respectivas máquinas, seja municipal, seja estadual. Segundo porque ele é um ente político importante, ainda mais no caso do prefeito do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Belo Horizonte etc. Eles têm voz. Mas é necessário recuperar a política com "P" maiúsculo no Brasil. Hoje a política se divide entre essa mentalidade medíocre e mesquinha de síndico, ou voltada aos negócios que, em geral, geram malfeitos, para enriquecimento pessoal. Essa é a pequena política. Temos que recuperar no Brasil a capacidade de discutir os grandes rumos do nosso país e de nossas cidades.

Qual alternativa você vê para isso nestas e para outras cidades menores?

Nós temos na verdade mega metrópoles, então, não tem sentido não se ter uma estrutura, por exemplo, no Rio de Janeiro, que articule o conjunto das prefeituras do chamado Grande Rio. Tem que se pensar políticas regionais sob o ponto de vista da Região Metropolitana. Como você vai enfrentar o problema do transporte ou mesmo da saúde sem uma dimensão metropolitana? Depois não adianta o prefeito falar que o problema do atendimento médico-hospitalar no Rio de Janeiro é que a população da Baixada vem para cá. Tem que vir, os hospitais de referência estão aqui. Mas isso significa o seguinte: que a autoridade municipal do Rio de Janeiro tem que estar articulada com a de Belford Roxo, por exemplo. Qual é a instância de concentração metropolitana que a gente tem, de planejamento de política metropolitana que temos? Nenhuma. Isso foi desmontado de 1980 para cá.

O Sr. vê isso como uma solução, os prefeitos se unirem pensando nessa dimensão metropolitana?

Lógico, isso é essencial. E quem é que fala disso? Eles prometem mil soluções para o município. Isso é demagogia, não tem solução para um município em uma região metropolitana, em que o trabalhador dorme em uma cidade e trabalha em outra. Os serviços tem que ser integrados.

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