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Entrevista: 
Gastão Wagner

20 anos do SUS, 20 anos da Constituição Brasileira

Gastão Wagner conhece o SUS por muitos ângulos. Viu o sistema nascer, como militante da Reforma Sanitária, na década de 80. Já nos anos 2000, participou diretamente da gestão, sendo duas vezes secretário de saúde de Campinas e secretário executivo do Ministério da Saúde, no início do governo Lula. Antes, durante e depois, em todos os intervalos do cargo de gestor, atuou (e ainda atua) como professor e pesquisador da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Gastão fala sobre o SUS por dentro — tanto do projeto quanto da sua implantação real. Nesse balanço, ele analisa os 20 anos do sistema de saúde brasileiro a partir dos seus princípios, diretrizes e normatizações. E identifica um SUS multifacetado, com êxitos e contradições. Trata-se, por exemplo, de uma iniciativa que nasceu como proposta de radicalização democrática mas se afastou das bases populares e não ‘ganhou’ a população. Um movimento que contou com a participação ativa de intelectuais, hoje perde capacidade crítica pela proximidade com os governos. Um projeto que foi contra a maré, e foi assolado por uma onda neoliberal. Por fim, um sistema que melhorou muito o acesso da população à saúde e, sobretudo, mostra, ainda hoje, em alguns espaços do país, que política publica estatal pode dar certo.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

20 anos de SUS universal...

Nós reduzimos a universalidade ao acesso, que é uma de suas expressões, mas não a única. Houve uma ampliação do acesso a diversos serviços com o SUS: vacina, tratamento de câncer, Saúde da Família. Mas o SUS é uma reforma incompleta. O Brasil não conseguiu, como o Canadá e Portugal, por exemplo, socializar a atenção à saúde. Porque não enfrentamos alguns conflitos estruturais de um sistema estatal. O SUS é uma reforma sanitária e de política pública tardia. Quando o mundo inteiro estava no auge do neoliberalismo, nós implantamos o SUS. Era o auge da crítica não só ao socialismo real, mas à intervenção do Estado e às políticas públicas. E essa crítica era muito ideológica, mas encontrou evidências numa dificuldade de funcionamento dos serviços estatais, tanto no socialismo real quanto nas políticas públicas, de educação e saúde, dos países capitalistas. Eu acho que um desafio para o terceiro milênio é inventar modelos de gestão para garantir o funcionamento desburocratizado, humanizado, com pouca corrupção, dos serviços estatais de saúde. No Brasil, o estatal sempre teve um controle privado muito grande: a elite corporativa-política-empresarial, os partidos políticos e o movimento sindical se reproduzem, inclusive economicamente, acumulam capital, se apropriando do Estado, do orçamento público. O SUS parecia que ficaria fora dessa tradição pela idéia de gestão participativa, de tripartite, de critérios técnicos para repartir recursos epidemiológicos, populacionais. Em alguma medida isso aconteceu, mas pouco. O SUS vendo sendo assaltado por esse patrimonialismo.

O Estado no Brasil mudou pouco nesses 20 anos?

Eu acho que agravou o controle privado, porque as classes sociais da elite, do empresariado e os setores de elite dos trabalhadores estão mais fortes. E o Estado foi enfraquecido pela onda neoliberal. Países como Portugal, França e mesmo a Inglaterra conseguiram inventar formas de se proteger dessa privatização, de conseguir eficácia, humanização, eficiência, baixar custos... No Brasil, aceitamos o discurso falsamente ingênuo, idiota e socialmente irresponsável da privatização, como se fosse possível organizar a vida em sociedade sem serviços estatais, sem políticas públicas. Segurança pública, saúde, educação, ecologia: se o Estado não fizer isso, não sei quem vai fazer. E, para isso, precisa ter funcionário público, avaliação de desempenho, controle social: aqui nós desmontamos tudo, tentando coisas como (Organização Social), ONG (Organização Não-governamental), terceirização, sem atinar para a gravidade do problema. Por decorrência disso, nós temos uma dificuldade de pessoal. O SUS não tem uma política de pessoal razoável, nem de formação, nem de seleção, recrutamento, carreira... Quem se apropria do Estado brasileiro não são só os setores empresariais, são também os corporativos, de trabalhadores. Quanto mais os de elite: médico, químico... Eles desenvolvem mecanismos de controle privado — é um privado mais coletivo, mas é privado. Nesse sentido, um dos problemas é a não-integração dos médicos com os pacientes e com os outros profissionais. Na maior parte do Brasil, os médicos não cumprem horário, não passam em visita diariamente nos hospitais. É antitudo: anticlínico, antimédico. E é impune. Outro aspecto da reforma incompleta é que nós não integramos os hospitais ao SUS. Apesar de falar em integralidade, o SUS é organizado por redes verticais: de atenção primária, saúde mental etc. Se você for à Inglaterra ou a Portugal, a organização é territorial. Não tem diretor de hospital, mas sim diretor regional.

20 anos de saúde descentralizada...

Isso foi uma solução, porque permitiu mostrar que o SUS era viável e expandir esse acesso. Mas, para não fragmentar em mil feudos e departamentos, era preciso ter regionalização. Quem deveria fazer isso eram as Secretarias Estaduais e o Ministério da Saúde. Mas não fizeram.

20 anos de SUS com participação social...

A Reforma Sanitária brasileira teve um grau de participação importante nos anos 80 e 70, o suficiente para aprovar a lei, para a maioria dos partidos votar na aprovação do Sistema Único de Saúde. Então, não vou dizer que o SUS foi uma reforma de cima para baixo. Com o tempo, houve uma institucionalização desse movimento. A gestão participativa foi desaquecida muito pelo enfraquecimento dos movimentos sociais no Brasil. Na origem já havia um desaquecimento. Os sindicatos da elite, que compuseram o PT, como os metalúrgicos, nunca tiveram entusiasmo pelo SUS. No Congresso, eles sempre lutaram pelos contratos coletivos, no concreto, no real, para ampliar a saúde suplementar. E esse é um setor popular forte no Brasil, que chegou a eleger presidente da República. O governo Lula, por exemplo, não priorizou o SUS. A visão que o governo tem do SUS é de programas focais, como o Brasil Sorridente e o SAMU. A idéia sistêmica de socializar a saúde não ganhou os governantes, não ganhou o sindicato e não ganhou o povo brasileiro. Pesquisas mostram que vários segmentos sociais do Brasil não sabem que o Brasil tem um sistema público socializado de saúde universal. Sabem que existe o Saúde da Família, o de Saúde Mental... Tudo isso é SUS, mas nunca criamos tensão para socializar o direito à saúde, com prazo para se ter atenção primária, médico de família. Dados mostram que hoje boa parte da população, ao pensar no direito à saúde, pensa no direito à saúde suplementar. E isso vem aliado à crise de participação social contemporânea, no mundo inteiro e no Brasil: uma desvalorização da política como instrumento, não só dos partidos, mas também dos sindicatos e das associações de bairro. Acho que, no SUS, há uma institucionalização da participação.

Mesmo os representantes dos usuários são sempre os mesmos, boa parte deles são corporações. Agora, é como a democracia: é melhor ter do que não ter. Não sou a favor de fechar conselho nem acabar com as conferências, como muita gente está propondo. Temos que aperfeiçoar: coibir reeleição, fazer rotatividade, estimular os setores sociais a participarem e discutir o tamanho e a dimensão do SUS no Brasil. Eu acho que, ultimamente, a saúde está perdendo terreno para o privado, como aconteceu com a educação nos anos 90. Não privatizaram as universidades federais, porque não foi preciso. Elas se prejudicaram pelo crescimento do mercado, com o MEC autorizando curso privado e agora criando o ProUni. De várias formas, foi se tornando focal e secundário o setor estatal, público propriamente dito, da educação. É uma privatização branca. Hoje nós estamos vendo isso acontecer com a saúde. Muitas pessoas entram em convênios que oferecem uma cobertura baixa e fazem uso misto: consulta no convênio, insulina no SUS.

A existência do setor suplementar foi um empecilho para a universalização do direito à saúde?

No começo, isso era mais ideológico-cultural do que real. Agora, em 2007, o financiamento da saúde suplementar passou a ser maior do que o do público. Inverteu. Então é um empecilho real. E é um empecilho de desejo, de luta, de mobilização: as pessoas passaram a aspirar, na sua cesta básica de vida, a uma caminhonete e a um plano de saúde. Isso é paradoxal porque acontece no momento em que os Estados Unidos, que é o país que tem a maior saúde suplementar do mundo, está revendo esse modelo. Porque, por mais dinheiro que você tenha, o plano não vai garantir a atenção integral. Há um reconhecimento de toda a Europa da necessidade de ter um setor público socializado de atenção à saúde. Aqui, nós criamos o SUS no auge da pressão neoliberal, contra a maré, e agora vemos essa inversão. Governos, sociedade e opinião pública não assumem que querem construir um sistema universal dominante em relação ao sistema suplementar. Não está no nosso discurso, nem na nossa política.

20 anos de SUS com equidade...

A idéia de eqüidade em política pública está muito ligada à renda, que é o discurso pregado pelo Banco Mundial. Então, para que SUS para todos? Dizem que o SUS tem que ser para os pobres. Vários intelectuais entraram nesse jogo, de usar a eqüidade para travar o SUS e o setor estatal. Só que, na saúde, consideramos a dimensão social e econômica, mas também a dimensão do risco: alguém que tem Aids precisa ter mais assistência do sistema público do que quem não tem, seja da classe A, B ou C. Se for da classe E, vai precisar ter muito mais, porque a terapia vai ser mais ampla, tem que ter bolsa-família, bolsaalimentação... O Banco Mundial tem ‘n’ estudos dizendo que o tratamento de Aids no SUS é ineqüitativo. Porque, antes de melhorar a cobertura entre os pobres, distribuímos remédios para quem estava doente com Aids ou câncer.

20 anos de um conceito ampliado de saúde...

No geral, eu acho que existe uma ampliação positiva. Ainda há dominância de uma visão organicista, biologicista entre os trabalhadores, mas não é a mesma coisa. Quando trocamos a saúde coletiva pelo modelo canadense de promoção da saúde, houve uma mudança de ênfase. A promoção em saúde mexe com estilo de vida. Quando é mais coletiva, trabalha com uma biopolítica de controle social: sobre o cigarro, o álcool, a vida. Já a saúde coletiva tinha um discurso de conscientização, que queria mudar a lei também, mas com um discurso de empoderamento das pessoas. Então, se por um lado temos resultados positivos, por outro isso é perigosíssimo porque traz um fundamentalismo sanitário cada vez maior, demagógico, fácil de ser feito, que se confunde com moralismo e religião. É controle, só que do bem. Além disso, esse discurso de ampliação do conceito de saúde às vezes é reacionário. Faz crer que, com promoção, pode-se dispensar hospital; que com promoção ninguém vai ter câncer. Mentira: vai ter sim, só que mais tarde. É um falso que interessa ao desmonte. Como no Brasil os ministros têm sempre baixa governabilidade sobre a atenção à saúde, a linha de fuga acaba sendo a promoção.

20 anos depois, o que sobrou do projeto de sociedade da Reforma Sanitária?

Os setores minoritários tinham como projeto que o SUS fosse um pedaço da construção do socialismo. A maioria queria que o SUS fosse a construção de um país democrático. Acho que o SUS sempre foi um movimento reformista, no bom sentido da palavra. A idéia era: vamos colocar limite na questão do meioambiente e da medicalização, vamos fazer uma atenção à saúde estatizada, vamos tirar do mercado... O SUS teve, no começo, essa visão muito radicalmente democrática da sociedade e do próprio SUS. Acho que isso se perdeu. O que o SUS trouxe de mais inovador? O conceito de gestão participativa do Estado, gestão articulada, integrada, entre diferentes esferas de governo: estadual, municipal e federal; uma distribuição de orçamento público com critérios epidemiológicos, técnicos, populacionais e do direito à saúde. Isso significa, por exemplo, dizer que quem tiver câncer tem direito a ser tratado, com remédio, cirurgia, a viver decentemente, ter moradia, ter ambiente saudável. São elementos muito radicais de inovação que dão vitalidade ao entorno do SUS. E, por último, uma coisa concreta: o efeito demonstração. Pedaços do país em que o Saúde da Família tem eficácia, em que se cria cidadania, se humaniza o parto, mostram que é possível. Isso é muito forte do SUS: trazer evidências que enfraquecem o discurso do mercado de saúde suplementar.

20 anos atrás: o movimento sanitário cometeu algum erro?

Não ter valorizado a política de pessoal. Não ter feito uma aliança mais histórica com os trabalhadores, subestimando-os. E termos subestimado o grau de privatização que já existia no Brasil e as forças concretas que estavam atuando nesse sentido.Não ter valorizado a política de pessoal.

O financiamento tem sido apontado como o maior problema do SUS, 20 anos depois. É mesmo?

Não é o maior problema, mas é insuficiente. Os 20 anos do SUS estão coincidindo com a pior avaliação do SUS. Pesquisa feita pelo Ibope em São Paulo mostrou que o principal problema para a população passou a ser atenção à saúde. Já foi segurança e emprego, agora, em 2008, passou a ser saúde. Não acho que o financiamento seja o maior problema: se o SUS fosse querido, nós arranjaríamos dinheiro. Se o SUS fosse um projeto social mais enraizado, o dinheiro viria.

20 anos depois: é possível retomar o projeto que inspirou o SUS?

Tudo isso está na pauta. O que me preocupa é que houve uma cooptação do SUS por gestores. Parte da intelectualidade crítica foi cooptada. Somos todos funcionários públicos estatais, que dependemos de cargos, planos de carreira. Perdemos a referência crítica, que tínhamos, no passado, quando éramos mais independentes e autônomos. O SUS, o chamado movimento sanitário intelectual, é muito grudado ao governo. A todos os governos. O povo avalia que estamos no pior momento da saúde e nós ficamos babando? A retomada está um pouco difícil porque os intelectuais não são tudo, mas são importantes para o futuro. Há um discurso único, dos comentaristas políticos, de que não precisamos de nada estatal, não precisamos de SUS. E nós temos outro discurso, mas que está muito descolado do povo, da vida real. O povo fala, ninguém entende. E se entende, discorda.