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Entrevista: 
Márcia Fausto

'A atuação do gestor municipal não deve prescindir dos valores e princípios que estão colocados para o sistema público de saúde'

Cabe à gestão municipal a atenção básica de saúde, que se organiza prioritariamente por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Às vésperas das eleições municipais, a coordenadora do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e pesquisadora da Escola de Governo em Saúde, Márcia Fausto aponta nesta entrevista como a saúde deve ser encarada e quais são as questões prioritárias a serem enfrentadas pelos novos gestores municipais.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 26/09/2012 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Qual é a importância da saúde da família na esfera municipal? Quais são os principais desafios dos prefeitos com relação à saúde da família?

Essa atenção primária tem que estar conectada com os outros recursos em saúde. E aí a gente entra na questão específica que é como a atenção primária deve estar estabelecida nos municípios e qual a função que o gestor tem neste processo todo. Dentro do nosso desenho, da nossa política de saúde atual, a atuação do gestor municipal deve ser articulada aos demais níveis federativos. Esta atuação deve ser compartilhada e jamais pensada de maneira atomizada ou desarticulada, porque isso, certamente, fere os princípios que regem o SUS, como a equidade e a universalidade. A atuação do gestor municipal não deve prescindir destes valores e princípios que estão colocados para o sistema público, porque o nosso sistema é nacional, universal e parte da noção de justiça social. Essa situação do gestor municipal deve estar totalmente relacionada a esses valores. Isso é importante porque, ao mesmo tempo, na nossa política de saúde, o gestor municipal tem uma autonomia muito grande para desenvolver as ações de saúde no seu território, então, esta atuação deve estar mediada por essas várias questões, tanto as nacionais quanto as municipais. O que a gente tem visto no Brasil é que temos uma atuação muito diversificada dos prefeitos, embora tenhamos todos os princípios colocados. Isso tem a ver com o compromisso que ele tem com a política pública e, especificamente, com a de saúde. A diversidade de atuação vai estar relacionada ao tanto que o prefeito considera a importância das ações de saúde, o que é fundamental para sua população e o investimento de recursos nesta área.

Mas qual é a atuação direta do prefeito na saúde da família? E como estes novos podem atuar?

A importância que tem a atenção primária e a estratégia de saúde da família tem a ver com uma forma de organização do nosso sistema de saúde da qual ela é a base. É a partir dela que as pessoas entram no SUS. É por onde tudo começa. Se ela está bem organizada e tem uma abrangência que está definida em uma política nacional, com certeza, isso vai significar uma qualidade no sistema de saúde como um todo. O modelo de atenção primária que nós assumimos é que ele não se limita a atenção médica. É um aspecto desta atenção, mas não se limita a isso. Ainda temos uma desigualdade social e temos alguns determinantes sociais impactando na saúde da população, então, as ações da atenção primária tem que se articular com outras políticas públicas. E esta é uma questão pouco desenvolvida nas ações públicas municipais. Hoje são poucos os municípios que avançaram nesta discussão e organizam suas políticas públicas com esta perspectiva de intersetorialidade. Este talvez seja o desafio mais importante destes novos prefeitos. Ainda como ponto importante na atuação dos atuais e novos prefeitos é o reconhecimento de que a atuação na atenção primária não pode dar conta de tudo. Dificilmente, em um único município, terá condições de construir dentro do seu território, toda a atenção do sistema de saúde, que muitas vezes extrapola o tamanho da sua população. Isso é fundamental, porque a atenção primária é articulada e não pode ser limitada a sua própria ação.

E como está a questão dos profissionais da atenção primária? Cada equipe da saúde da família, por exemplo, se responsabiliza pelo acompanhamento de, no máximo, 4 mil habitantes, sendo que o ideal é 3 mil. Estes números vêm sendo cumpridos em todos os municípios?

A gente pode falar de várias pesquisas que têm apontado para isso em casos isolados, mas ainda não temos um cenário nacional. Talvez possamos falar melhor sobre isso com os resultados do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) no próximo ano. Mas, pelo que vem sendo divulgado, inclusive na grande mídia, é que esta meta é muito diversa no país. Temos mais de 5 mil municípios e com populações que vão de 5 mil a 8 milhões. Então estamos falando de um conjunto de municípios muito diversificado. A experiência da atenção básica e saúde da família também é muito diversa. Esta questão da formação das equipes com todos os profissionais exigidos para o acompanhamento deste número determinado é ainda uma meta a ser alcançada em municípios das grandes cidades, as mais populosas. Teríamos que ter uma quantidade de equipes imensas para chegar a esta cobertura proposta pela estratégia, o que não acontece. Essa é uma discussão complexa para os grandes centros, mas para o interior do país também é um grande problema porque a fixação destes profissionais para lugares mais distantes, de difícil acesso, que são historicamente as cidades com déficit de acesso ao serviço de saúde, ainda é um problema.

Esta questão da atração dos profissionais seria um problema a ser encarado pela nova gestão destes municípios?

Eu acho que são muitas as dificuldades a serem enfrentadas pelos prefeitos, mas também me pergunto se deve estar somente no nível municipal o cuidado com esta questão. A experiência atual já tem mostrado que a corrida para a contratação de médicos tem sido uma questão difícil porque entra na disputa de mercado. São poucos médicos e a tendência é que o salário deles fique mais alto. E isso cria uma discrepância em relação ao salário de outros profissionais da mesma equipe que deveria atuar de forma integrada e articulada. Esta discrepância certamente terá impacto na relação destes profissionais onde todos deveriam atuar na mesma perspectiva. Deve também ser pensada na negociação da carga horária deste profissional. A gente sabe que alguns médicos têm salários altos com carga horária pequena, enquanto outros com salários muito baixos. Agora sabemos que existem municípios que não tem condições de bancar salários altos, mas arcam com a responsabilidade de manter os médicos nas equipes. Essas são as contradições. Acredito que estamos em um momento de pensar esta estratégia analisando as várias experiências já existentes. Há municípios que fizeram concurso público e consideram esta estratégia favorável, mas não suficiente para fixar este profissional. E se eles [os médicos] se depararem logo depois com outro município com um concurso que remunere melhor? Além disso, a formação médica conta com outras formas de lidar com o trabalho. Existe um perfil de médico que não está muito interessado com a realidade da atenção primária. É limitado discutir isso apenas do ponto de vista do que o prefeito pode fazer para dar conta de fixar o profissional dentro da equipe. A questão também é a formação do médico e o trabalho que se tem dentro da estratégia [de saúde da família], além da carreira profissional do médico dentro do sistema público de saúde. São vários aspectos que devem ser discutidos e isso extrapola os limites e a capacidade do gestor municipal de enfrentar este desafio.

Como o prefeito pode atuar pensando nesta realidade mais complexa, fechar parcerias com universidades, por exemplo?

Essa articulação ensino-serviço é importante para a qualificação dos profissionais e a universidade não dá conta disso porque tem a formação que se limita aos bancos das universidades. A participação do prefeito pode e deve influenciar estes futuros profissionais na formação deles para a atuação no SUS.

Ainda no campo dos profissionais da atenção básica: e a questão dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS)? É um bom momento para voltar à discussão da questão salarial e das definições das atribuições profissionais?

A questão salarial está relacionada ao trabalho. E é o trabalho a principal questão do agente comunitário hoje. O papel dele dentro da equipe está sendo pensado hoje. O que inicialmente foi pensado é que o ACS tinha que estar mais voltado para as ações de saúde articuladas às ações comunitárias, ao trabalho mais domiciliar, e, hoje, além desta atividade, ele ainda acumula outras atribuições dentro da unidade de saúde. Isso tem sido bem conflitante e vem descaracterizando, de alguma forma, aquilo que seria o papel central do agente comunitário. É óbvio que existe a relação de remuneração e de importância dentro da equipe. A remuneração é uma forma de reconhecimento também. A questão salarial é decorrente da valorização que o gestor municipal dá ou não a este profissional. Eu acho completamente favorável pensar nesta questão da remuneração, embora não tenha fundamentos para achar que este é o momento para isso. É importante sempre lembrar - e isso deve ser reconhecido por esta nova gestão que assumirá - que os ACS têm um papel enorme, que extrapola as ações mais curativas. Eles diferenciam o nosso sistema de outros modelos de outros países porque nós temos essa perspectiva de trabalhar os determinantes sociais de saúde. Embora seja uma diretriz nacional, a forma que o agente comunitário atua e o valor que ele tem dentro da estratégia da saúde da família está muito relacionada à visão que o gestor municipal tem do trabalho deste profissional.

E que forma seria essa? E até que ponto cabe ao poder executivo municipal?

Acho que o tipo de relação trabalhista já é um primeiro passo, mas isso é um questão a ser resolvidas dos trabalhadores da saúde de um modo geral. Também podemos apontar salários dignos, plano de carreira, a promoção da satisfação do trabalho, que são de extrema relevância para a atração e retenção de profissionais.

Como você vê a relação destes novos prefeitos e as Organizações Sociais em Saúde, (OSs)?

A grande discussão das OSs, modelo que tem sido mais visto no RJ e SP, agora é qual a função do Estado na oferta de serviços a uma população e/ou cidadão intermediada por uma OS. É claro que, uma vez existente este tipo de relação, o gestor deve acompanhar, avaliar e monitorar. Mas, é importante ressaltar que é um modelo questionável porque o gestor municipal deixar de cumprir o seu papel de intervenção direta e passa a atuar por meio de outra organização, que será responsável por executar ações de saúde para sua população.

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