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Entrevista: 
Ricardo Antunes

‘A classe trabalhadora não é responsável pela crise e é ela quem paga o pesado da crise’

Nesta entrevista, o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular da Unicamp, fala sobre os impactos do ajuste fiscal sobre as condições de emprego no Brasil. Com críticas à política econômica em curso nos últimos anos, ele analisa as políticas de desoneração fiscal e o Programa de Proteção ao Emprego, e alerta que o projeto de conciliação dos governos do PT fracassou.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2015 12h30 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Gostaria que o senhor nos explicasse por que, mais uma vez, estamos diante de uma crise e, de acordo com a maioria dos economistas críticos, a solução proposta está recaindo sobretudo nos ombros da classe trabalhadora...

Nós estamos novamente numa situação de crise por um cenário complexo do mundo capitalista dos nossos dias. Esta nova fase aprofundada da crise se iniciou em 2008 e 2009 nos EUA, Europa e Japão. Inicialmente ela atingiu o norte do mundo, os países capitalistas avançados. Mas como nós vivemos num cenário muito complexo, de um capitalismo mundializado, este quadro de mundialização do capital faz com que, com muita frequência, uma crise, digamos, localizada em uma parte do mundo tenha repercussões em outras partes. Entre tantos outros, o Lula cometeu o erro de dizer que era uma marolinha e que não chegava ao Brasil. A sua completa incapacidade de compreender o mundo capitalista atual lhe permitiu dizer uma coisa que hoje virou entre o jocoso e o equivocado. Por quê? Esta crise atingiu em cheio também os países do sul do mundo e em particular os BRICs [Brasil, Rússia, índia, China], que se encontram num perfil intermediário. No caso da China, já é um país do topo, é a segunda federação mundial em termos de força do capital, não é difícil imaginar que em um período não muito longo, a China vá se tornar a primeira economia mundial. Já em relação aos países como Brasil e tantos outros, era possível perceber que nós seríamos atingidos pela crise. E ela veio um pouco depois. Os governos Lula e depois Dilma, despreperados frente a esse cenário, foram pegos de surpresa. Isso gerou um gap, um quiprocó no governo Dilma porque o mito da expansão brasileira nos anos 2000, com mais de 20 milhões de empregos criados, dava a impressão de que ficaríamos à margem disso. Aí entramos na segunda dimensão da crise. Esta crise mostrou a falência do projeto do governo do PT, com Lula ou com Dilma. Ou seja, aquele crescimento econômico que criou 20 milhões de empregos, que é real, era frágil, porque agora, com o esgotamento desse projeto, esses empregos estão se desmoronando. A classe trabalhadora está completamente endividada. Ela acreditou no comprar, comprar, financiar, financiar e está endividada, os juros estão altíssimos, a produção— especialmente a industrial, mas com todas as consequências que isso tem no comercio —, esta produção está estancada. E quando Dilma ganha as eleições em outubro de 2014, ela já tinha claro que teria que fazer uma rearrumação assumindo a postura dos grandes bancos, do FMI e das instituições de avaliação, que chancelam ou não os países, dando crédito e nota [para dizer] onde vale a pena investir e onde os investimentos são arriscados. Tudo isso fez com que a Dilma implementasse um ajuste profundo cuja penalização maior se deu uma vez mais sobre os ombros da classe trabalhadora. Foram limitadas as condições de utilização do seguro desemprego, o mesmo aconteceu com o abono salarial, a terceirização — vale a pena falarmos um pouco depois sobre esse projeto, que faz voltarmos à escravidão do trabalho no Brasil no sentido moderno e contemporâneo do termo, até porque o trabalho escravo é um dos traços do capitalismo do nosso tempo e está presente em praticamente todas as partes do mundo. Bom, então, a redução do abono e do seguro desemprego, as limitações para obtenção desses direitos ocorrem no momento em que as trabalhadoras e trabalhadores mais necessitam dele, porque é no momento de desemprego agudo que se ampliam as solicitações dessas medidas que, muito mal e porcamente, para usar o português mais apropriado, minimizam o sofrimento dos desempregados. A isso se adicionou uma crise política profunda, na medida em que, pela operação Lava a Jato, o núcleo do poder, tendo o PT e o PMDB à frente, está completamente comprometido com o processo de corrupção política. E isso tem desdobramentos evidentes de uma corrupção privada para a garantia desse pacto que eu chamei de pacto Frankestein, costurado e criado pelo Lula, que tem pernas, cabeça, tronco, pés e mãos de partes distintas. É um pacto desfigurado. A corrupção sempre foi uma prática dos partidos de centro e de direita, as direitas convivem com a corrupção desde que o Brasil existe, mas quando se torna uma prática também de um partido de esquerda, isso é inaceitável para as direitas, as direitas aceitam a corrupção das direitas. Basta ver a condescendência que se teve com Eduardo cunha até se saber, como sabemos hoje pelas informações que chegam do poder judiciário da Suíça e do Ministério Público Federal, que o festival era completo. Mas ate ontem, as próprias manifestações de massa das direitas tinham cartazes de louvação a Eduardo Cunha. Agora, quando um partido de esquerda chafurda num espaço pantanoso da corrupção, que é o espaço das direitas, isso as direitas não aceitam.

Esse quadro todo de crise econômica e política tem consequências e gerou também uma crise social. O governo Dilma perdeu apoio em diversas classes sociais. É um governo policlassista e há uma rebelião também das classes populares, das periferias. Se adicionarmos a isso também dimensões da tragédia brasileira de vários outros tipos — da revolta da periferia, da violência da policia militar —, nós temos um quadro difícil, diretamente no que concerne ao mundo do trabalho. É sobre a classe trabalhadora que o ônus maior da crise é jogado, a classe trabalhadora não é responsável pela crise e é ela quem paga o pesado da crise, com o desemprego, com o trabalho mais precarizado, com uma redução salarial monumental. Os trabalhadores e trabalhadoras que continuam trabalhando estão tendo que aceitar uma espada nas costas e um punhal no coração, para ficar no emprego, estão tendo que reduzir a jornada e o salário, isso está corroendo o pequeno ganho salarial que tiveram nas ultimas décadas. Este então é o contingente que sofre mais duramente a crise. E há um último elemento: quando a crise ocorre, as grandes frações dominantes vinculadas ao capital — o financeiro com as suas simbioses, entre capital bancário e industrial, o setor de serviços, os capitais ligados ao agronegócio, ao comercio, etc — eles começam a disputar entre si para ver quem vai arcar menos com a redução dos seus níveis de lucro. Eles empurram para a classe trabalhadora as suas penalizações. É por isso que, se não há resistência da classe trabalhadora é sobre ela que incide o ônus mais pesado da crise. Neste caso, com a conivência — mais do que com a conivência, com a impulsão — do governo Dilma, que é diretamente responsável por essas medidas. Costuma-se muito criticar o Levy, mas é injusto com o Levy. O que se poderia esperar de um homem que é o segundo de um dos grandes bancos brasileiros? Que fosse um financista capaz de fazer a rapina em cima da classe trabalhadora, como o FMI impôs recentemente na Grécia, em Portugal, na Italia, Espanha, etc. O problema é o seguinte: quem nomeou o Levy foi a Dilma, por imposições, mas o governo Dilma do PT é o responsável. Dilma não é do PMDB, não é do PDT, nem de nenhum outro partido. O governo do PT, sob a figura de Dilma, fez um pacto amplo, ao modo Frankestein, onde todos cabem e agora se juntam para penalizar a classe trabalhadora. Por isso que a corrosão da aprovação do governo Dilma se amplia também nas classes trabalhadoras.

Alguns economistas apontam que o país tecnicamente quase atingiu o pleno emprego, com índices perto de 4% de desemprego. Por que esse processo não se sustenta agora em função da crise? Onde está a fragilidade?

A primeira afirmativa que vou contestar é o pleno emprego. Só na cabeça de economistas isso pode passar, sociólogo dá risada disso. É porque eles não estão desempregados, ganham muito dinheiro das assessorias que eles dão. É uma economia desprovida de vidas. Enquanto estiver um desempregado, tem desemprego. Estamos falando de 4,5% de desempregados, a população economicamente ativa hoje do Brasil está na casa dos 100 milhões. Enquanto você falar em alguns milhares de desempregados, não pode falar em pleno emprego, isso é uma piada. E claro, se o Brasil cresceu entre 2002 e 2012, com taxas de 2%, 3 %, e teve uma capacidade de incluir, isso criou uma situação bem mais favorável à dos anos 1990 sob FHC, que foi um período em que predominou um quadro de baixo crescimento e de recessão. Lembra que com FHC nós chegamos perto de ter 60% de informalidade da nossa classe trabalhadora? Com o Lula, houve pouco mais de 20 milhões de empregos criados entre 2002 e 2012. O setor que mais viu crescimento dos empregos foi o de serviços, com um salário médio de 1,5 salário. Os empregos dos serviços têm alta rotatividade, o call center é um exemplo especial disso. São empregos em que a aproximação com a informalidade, as formas flexíveis e com as burlas são mais intensos, de tal modo que, embora tenhamos tido um crescimento de empregos formais, nós também tivemos a criação de empregos informais. Mas não foi uma criação sustentável. Por quê? Porque foi construído em cima de um mito de neodesenvolvimentismo que só existe na cabeça dos ideólogos do PT. Em verdade, o projeto Lula e Dilma oscilou entre o neoliberalismo e o social liberalismo com acumulação capitalista. Esta é a diferença. É possível você ter social liberalismo, que é o neoliberalismo com verniz social, mas esse verniz é muito fraco e qualquer mormaço arrebenta com ele. É possível então você ter social liberalismo, cujos fundamentos são neoliberais, com acumulação capitalista e crescimento industrial. O PT foi generoso em relação à indústria automobilística, durante muitos anos diminuindo a sua tributação; o mesmo com a produção industrial de linha branca, a construção civil. É um governo que quase foi porta voz do agronegócio. Tudo isso fez com que esse crescimento tivesse uma aparência de crescimento sustentável, mas foi um crescimento em cima pés de barro, a hora em que a água começou a bater, ele começou a desmoronar. Mais virulenta do que as medidas para redução do seguro desemprego e abono salarial e todas as outras, é a terceirização total, é permitir que todas as atividades econômicas, públicas e privadas, possam ser terceirizadas. Aí é o reino da selva e é isso que o empresariado quer. O projeto ruiu, faliu o projeto do PT. O PT acreditou no mito que ele criou , é triste dizer isso. O PT nasceu nos anos 1980 como uma construção da classe trabalhadora brasileira, não foi uma construção de fora, de cima, foi uma criação de movimentos sociais, sindicatos, militantes populares, militantes das esquerdas, ex-militantes de partidos comunistas e de esquerda ou aqueles que fizeram a luta armada contra a ditadura, ou seja, um amálgama de forças empenhadas num projeto, mas nestes 35 anos muita coisa passou.

É correto dizer que isenção tributária gera emprego?

Certamente não. As empresas empregam em época de expansão e, em épocas de crise, só são preservados empregos quando sindicatos fazem paralisação. Como têm feito. Sindicatos dos metalúrgicos de São José dos Campos, dos metalúrgicos de são Bernardo, mesmo este que é ultramoderado está respondendo com greve, porque acreditaram na parceria e agora estão vendo que é uma parceria sem parceiros. Outras categorias também. Os dados do Dieese mostram que entre 2002 e 2012, as greves cresceram muito e os dados de 2013 e 2014 que já estão sendo contabilizados também confirmam isso: continua havendo uma expansão das greves. É claro que o cenário de fins de 2014 para 2015 mudou muito porque a medida do ajuste foi de profundamente recessivo. É como se estancassem todas as medidas de incentivo econômico e abrissem todas as torneiras de desincentivo à produção, ao trabalho e emprego. Então, o país hoje é paralisado, com exceção dos bancos que continuam o seu saque cotidiano, porque os juros são estratosféricos. E o quadro vai piorar: a cada nova mensuração dos níveis de emprego vê-se que tem havido um aumento do desemprego, toda semana. E isso só não é maior porque tem havido resistência dos trabalhadores e movimentos sociais. Porque, paralelamente a essa deterioração das condições econômicas e sociais que atingem mais duramente a classe trabalhadora, particularmente a assalariada, há revoltas também. As greves são muitas.

Qual a sua avaliação sobre o Programa de Proteção ao Emprego?

Tinha um presidente do Corinthians que falava de uma faca de dois legumes. Por suposto, numa situação de desemprego crescente, o empresariado diz que vai demitir a menos que o Estado faça concessões. Esta medida atende prevalentemente o empresariado industrial automotivo que puxou essa coisa pela frente. É uma pressão da alta burguesia industrial, que quer dizer para o Estado: quando crescemos foi por nossos méritos, agora que tem crise por culpa do Estado, o Estado tem que ser coparticipe da crise. Para a classe trabalhadora é um problema. É muito comum ver um trabalhador falando na TV que para ele é melhor reduzir salário e jornada do que desemprego. Eu compreendo isso. Mas é muito importante que ele perceba que essa redução de salário dificilmente vai ser recuperada depois. Ou seja, o empresariado tem uma redução da jornada de trabalho, o governo paga pelo menos metade disso e a classe trabalhadora tem um período provisório. Esse programa é inspirado no modelo alemão e, no caso brasileiro, tem um período de duração, não é eterno. É como uma espada nas costas e o punhal no coração. Se a classe trabalhadora não aceitar, começamos pelas costas e depois damos o golpe final no coração. Não posso dizer que eu sou contra essa medida porque os trabalhadores têm o risco da demissão. E num contexto de desemprego, não é sempre fácil fazer greve porque a empresa pode dizer: pode ficar em greve um mês, nós não vamos pagar e vamos reprimir. Mas é um paliativo que beneficia muito mais o empresariado e diminui somente o tamanho do tombo da classe trabalhadora. E só respostas duras do sindicalismo de classe, com independência, no sentido de representação autêntica dos seus representados [pode enfrentar isso]. Houve uma greve importante no Rio de Janeiro no ano passado que foi a dos garis, que foi contra os sindicatos. Quando o sindicato joga contra você, você precisa ter uma organização de base dos trabalhadores para poder avançar nas lutas, porque muitos sindicatos no Brasil defendem uma concepção patronal, não querem luta, querem conciliação. Obrigam a assumir políticas de penalização maior sobre a classe trabalhadora.

A pontuação das agências de classificação de risco de fato afetam a economia do país?

Afeta porque o modelo Lula se construiu em cima da abertura do nosso país para o investimento externo, e do saque financeiro. Então, quem vai investir nos EUA com juros zero, vai investir aqui com os juros mais altos do mundo. Esse foi o segredo. Por isso o Lula disse (única frase dele que tenho plena e cabal concordância): nunca antes os bancos ganharam tanto no Brasil como no meu governo. Ele tinha razão. Só que no momento em que o país passa a ter uma avaliação de risco por esses órgãos de chancela financeira, esses capitais voláteis se dividem: eles saem de um lugar com juros altos mas com risco e vão para outro de juros mais baixos só que com mais segurança. Isso mostra a vulnerabilidade do país. Sendo mais vulnerável, o país não tem mais créditos externos; não tendo as mesmas possibilidades de endividar-se externamente, aumenta-se o risco falimentar e, evidentemente, se penaliza a educação e a saúde públicas, previdências, tudo que é publico. As empresas pisam no breque. Elas estão tirando dinheiro da produção e jogando no saque financeiro. É melhor ficar na lógica do dinheiro gera mais dinheiro sem produção enquanto o país está estancado, porque o empresariado não se endivida para produzir com mercado em retração. Então, o circulo é perverso. E o PT é parte desse círculo perverso porque, no essencial, o governo do PT não rompeu com os fundamentos da política econômica estabelecidos por FHC. Diferenças nós sabemos que há, mas são diferenças num patamar de degraus, não de qualidade. O governo do PT, como o do PSDB, se fundamenta na política que preserva o superávit primário, que remunera os juros altos, que desindustrializa o Brasil e nos faz regredir à condição de país fornecedor de commodities para o mercado mundial.

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