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Entrevista: 
Paulo Buss

‘A cooperação internacional precisa estar acima de diferenças políticas’

Coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris), da Fiocruz, Paulo Buss avalia o histórico e as perspectivas brasileiras em Diplomacia em Saúde
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 05/04/2024 12h13 - Atualizado em 12/04/2024 12h09

 

7 de abril é a data escolhida para celebração do Dia Mundial da Saúde por ter sido, em 1948, o dia em que foi oficialmente instituída, com a aprovação de seus estatutos, a Organização Mundial da Saúde (OMS). A trajetória da instituição, bem como da própria Diplomacia em Saúde, conta com contribuição ativa do Brasil. Em entrevista à revista Poli, o coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), Paulo Buss, aborda o histórico e as perspectivas dessa atuação.

 

O Brasil contribuiu com grandes atores tanto na criação como na trajetória da OMS, como Geraldo de Paula Souza e Marcolino Candau. Isto reflete competências individuais ou também a capacidade diplomática do Brasil?

A história da diplomacia brasileira é maior do que a exclusiva competência individual de seus atores. É claro que essas coisas se aliam, mas a história do Brasil, de sua cooperação internacional e da reconhecida qualidade de sua diplomacia começa com o Barão do Rio Branco. Um único exemplo é o fato de a anexação do território do Acre ao Brasil ter sido mediante negociações.

Eu escrevi um paper, Diplomacia da saúde nos tempos do barão e nos dias de hoje: o Barão do Rio Branco e a saúde pública, no qual conto que, quando o Barão do Rio Branco negociava o Acre com a Bolívia, o compromisso do Brasil era ajudar na exportação da produção da borracha boliviana. O produto não tinha como descer para ser escoado pelos rios amazônicos, saindo no Oceano Atlântico, se não houvesse o saneamento da região por onde passou a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que era o escoadouro da borracha boliviana para os portos brasileiros e destes para a Europa e os Estados Unidos. Nesse contexto, Oswaldo Cruz é convocado, junto com Belisário Penna, e eles promovem o saneamento na região da Estrada de Ferro, onde os operários que estavam construindo a linha férrea morriam de malária e outras doenças, além de terem seu trabalho muito prejudicado por infecções sexualmente transmissíveis. A história é essa, e revela a capacidade de o Brasil trabalhar a diplomacia e a saúde. Para a criação da ONU [Organização das Nações Unidas], houve a competência de Oswaldo Aranha; e para a OMS, de Geraldo Paula Souza, uma experiência bem sucedida, sequenciada pela presidência da Organização por Marcolino Candau, durante 20 anos.

 

Como avalia a articulação entre o trabalho do Itamaraty e o do Ministério da Saúde?

O Itamaraty tem uma história brilhante nas relações internacionais; e o Ministério da Saúde, principalmente a partir do ministro José Serra e percorrendo todos os governos anteriores de Lula e Dilma, observou competentes contribuições de sua área internacional.

Nós defendemos intensamente uma ampliação da governança do Brasil em sua atuação na saúde global. Atuar com aproximação, convergência e unidade, em uma articulação o mais perfeita possível.

Isso envolve integralmente o Ministério da Saúde, mas representado pelo gabinete da ministra, e pela AISA, a assessoria internacional. Para mim, ela deveria se chamar Assessoria de Diplomacia da Saúde, para ser mais do que uma assessoria de assuntos internacionais e passar a ser uma divisão atuante no campo da diplomacia.

Em associação com o Ministério da Saúde, respeitada essa particularidade da AISA, essa articulação precisa envolver o Ministério das Relações Exteriores, através de sua gestão, a recém-criada Divisão de Saúde Global e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), porque ela é veículo da cooperação Sul-Sul e também da ajuda humanitária brasileira; e também a Fiocruz que, sendo parte do Ministério, tem uma alta experiência na área de cooperação internacional em saúde. Nossa proposição é que esse grupo tenha uma atuação conjunta muito bem articulada.

Além disso, há outros espaços do Planalto, na Esplanada dos Ministérios, que precisam atuar de forma adequadamente articulada quando precisarem se manifestar sobre o tema da Saúde, como o Ministério dos Direitos Humanos, que tem assento no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Ministério do Trabalho na OIT [Organização Internacional do Trabalho], o Ministério do Desenvolvimento Social na Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância] e por aí vai.

Todas os as agências da ONU têm o tema saúde em algum momento de sua agenda.

 

A criação do SUS trouxe alguma alteração qualitativa para a diplomacia em saúde do Brasil? Que políticas e programas do Sistema podem ser objeto de parceria com outros povos?

O SUS é uma das maiores conquistas da sociedade brasileira após a ditadura militar. Ele é uma construção da sociedade brasileira, implementado, obviamente, sob a égide do poder público, que teve um extraordinário desenvolvimento e é um grande ativo da política externa brasileira porque nós, dentro do conceito de cooperação estruturante, levamos esse soft power, que é a experiência brasileira de desenvolvimento de um sistema público de saúde universal e gratuito, por cuja qualidade lutamos muito e que tem programas muito bem sucedidos, como a Estratégia Saúde da Família, o Programa Nacional de Imunizações, o Farmácia Popular, o de Transplantes, a universalização do tratamento gratuito da Aids, e agora não só do tratamento, mas também das medidas de prevenção. Então, o Brasil tem no SUS uma grande experiência de política pública, que é usada como tema pelo país através de uma cooperação estruturante, de colocar essa experiência à disposição dos países interessados.

 

O papel do Brasil na quebra de patente, no caso do HIV, colaborou de que forma para o soft power brasileiro?

Eu participei disso. O Temporão [José Gomes Temporão] era o ministro da Saúde e eu era o presidente da Fiocruz. Aquele momento foi decisivo, porque deixamos claro que sabíamos fazer engenharia reversa e podíamos produzir aquele medicamento [Efavirenz] propositalmente diante da empresa com quem estávamos em disputa.

Essa postura do Brasil, agora com o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, de atuar tanto na OMS quanto na OMPI [Organização Mundial da Propriedade Intelectual] e na OMC [Organização Mundial do Comércio] é muito importante, porque é necessário não apenas obter a liberação de uma patente. É preciso liberar e estimular a transferência da tecnologia de produção, do processo de conhecimento, sem isso não adianta liberar a patente.

É preciso liberar a patente e ensinar a fazer, a forma de fazer. Este é o pulo do gato, e o Brasil tem tentado colocar esse debate na OMC e na OMPI, da necessidade de existência de uma transferência de conhecimento.

Então, desde aquele momento [a quebra de patente para o medicamento para HIV], os países olham o Brasil como um país que não apenas ameaça como pode tomar atitudes concretas.

 

O Brasil se prepara para ter o primeiro laboratório de biossegurança nível 4 na América Latina, bem como uma planta de produção de vacinas com a tecnologia de RNA. Como esses ’ativos’ reforçam o papel do país como ator regional de saúde na América Latina, ou mesmo global?

O Brasil já é um ator chave regional e um ator de importância global, e tanto o laboratório NB4 em Campinas (SP), quanto o desenvolvimento da tecnologia de RNA para vacinas pela Fiocruz, com seleção pela Opas, indiscutivelmente, ampliam a presença e o peso institucional do Brasil.

Mas eu quero insistir em uma coisa. Temos falado muito em acesso a tecnologias inovadoras quando, na verdade, grande parte dos países em desenvolvimento ainda vive a crise dos medicamentos, diagnósticos e outros recursos essenciais. Eu estou me referindo a antibióticos, anti-hipertensivos e anestésicos, por exemplo. No caso do G20, que está sob presidência do Brasil, ele tem um papel de estimulação da equidade no acesso a tecnologias que já existem, e que não chegam a todos os países do mundo.

Ou o G20 vai falar só para si mesmo? Ele vai abdicar de ser um agente importante do cenário internacional? Não vai. O Brasil vai querer se credenciar cada vez mais.

O Brasil precisa ser defensor de que as inovações que surgirem sejam equitativamente acessíveis a todos os países e populações do mundo, aos países pobres e aos pobres de cada país, pois há país rico com pessoas pobres sem acesso não apenas às coisas inovadoras, mas também àquelas que já existem há muito tempo e que não são acessíveis. Falo de equipamento médico cirúrgico, recursos de diagnóstico, medicamentos, biofármacos, vacinas e tantos outros.

 

Qual deve ser posição do Brasil diante da possibilidade de tensão crescente entre o “bloco ocidental” e China (com Rússia)? De que forma essa tensão prejudica a governança global em saúde?

O Brasil deveria ficar equidistante dessa competição, mas ele não tem como ficar porque ele é parte, é membro do BRICS que em 2024 está sob a presidência da Rússia e, em 2025, será assumida pelo Brasil, é onde estão China, Rússia, Índia... Essa tensão é de hegemonia política e econômica, não adianta perguntar se prejudica ou não. Se não houver cooperação decente, respeito à soberania dos países e respeito à Carta das Nações Unidas, é evidente que haverá prejuízo à governança global em saúde, porque a disputa se estenderá de uma maneira inexorável.

Então, o que o Brasil tem que fazer é manter uma equidistância razoável, compreendendo o peso de sua presença no BRICS, um bloco que integra China e Rússia, e defender que a cooperação internacional precisa estar acima de diferenças políticas. Este precisa ser nosso discurso.

 

Ao assumir a coordenação do Grupo de Trabalho de Saúde do G20, a ministra Nisia Trindade afirmou possuir 4 prioridades: Prevenção, preparação e resposta a pandemias, com foco na produção local e regional de medicamentos, vacinas e insumos estratégicos para a saúde; Saúde digital, para a expansão da telessaúde, integração e análise de dados dos sistemas nacionais de saúde; Equidade no acesso a inovações em saúde; e Mudanças Climáticas, facilitando o acesso de países em desenvolvimento a tecnologias necessárias para enfrentar os impactos da mudança do clima na saúde. Como articular que o Grupo apresente resultados positivos ao final da ”gestão” brasileira, em novembro próximo?

É preciso garantir que esses quatro temas estejam presentes tanto na declaração dos ministros de Saúde quanto na dos chefes de Estado. A questão passa fundamentalmente por uma interpretação adequada das diferenças que existem no interior do G20, pois é óbvio que o chamado Sul global em seu interior, como Brasil, Argentina, México, Arábia Saudita e África do Sul, etc., tem uma visão diferente daquela do Reino Unido, Estados Unidos e alguns europeus, bem como há diferenças com outro bloco que compõe o G20, integrando China e Rússia. Ou seja, há uma organização do G7 dentro do G20, e há a presença do BRICS no G20.

Para obter resultados que sejam fruto de consenso, é necessário haver muita análise sobre as interpretações e as narrativas desses distintos grupos de países. E a partir disso, fazer uma proposição que consiga garantir convergência, visões comuns. A partir daí fica fácil tomar posição, escrever sobre ela e propor iniciativas.

É necessária muita negociação, e eu acho que a diplomacia brasileira tem condições de fazer isso.

Essas articulações também contam com a contribuição do T20, o grupo de think tanks; o S20, as academias de ciências; e o C20, a sociedade civil. O Brasil deve articular com as coordenações desses grupos de adesão ao G20 que, muitas vezes, não são tomados em consideração. Eles fazem um grande trabalho, mas no frigir dos ovos as declarações oficiais dos encontros de cúpula não consideram suas proposições.

É muito importante que o Brasil garanta a presença do T20, do S20, do C20 e de suas respectivas contribuições na declaração final, e que as sugestões fiquem para a próxima presidência do G20, a África do Sul.

 

Esses temas dialogam com a orientação política do Brasil de fortalecimento das relações Sul-Sul?

Esses temas têm muita identidade com o Sul Global, e não é à toa que o Brasil defendeu essas prioridades e também a criação de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que é transversal a essas prioridades; e a questão da equidade na saúde, ou seja, não apenas o acesso equitativo aos serviços e insumos de saúde, mas também àquilo que a gente chama de Saúde Universal, as condições de vida favoráveis à saúde.

Dessa forma, entramos nas políticas extra setoriais que impactam a saúde, desestimulando aquelas que impactam negativamente e estimulando aquelas que impactam positivamente a saúde.

Por exemplo, políticas econômicas que sejam contracionistas ao emprego são negativas para a saúde.

Precisamos chamar atenção para que as políticas econômicas, sociais e ambientais, tenham o cuidado de verificar o impacto que geram sobre a saúde humana e planetária. Esses são, digamos, interesses do sul, dos países do sul.

Eu posso citar a proposta que eu chamo ‘fórmula Haddad/Nísia’, que propõe a troca da dívida externa por investimentos em saúde e educação. Esta é uma grande questão, não tanto no Brasil, mas de outros países em desenvolvimento. Quase todos os países em desenvolvimento na África, por exemplo, poderiam se beneficiar caso o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e os grandes bancos perdoassem as dívidas, ou mesmo os juros das mesmas, para que esse dinheiro fosse aplicado em saúde e educação.

Esse é um exemplo de como o Brasil pode se valer da presidência do G20 para fortalecer não só as suas relações com o Sul Global, como também comprometer os países ricos com os países em desenvolvimento.

 

Especificamente sobre a prioridade 4, como integrar o conteúdo que será gerado neste Grupo de Trabalho de Saúde do G20 ao debate que o Brasil sediará em 2025 da COP 30, em Belém?

É necessário que haja uma clara postura contra a queima de combustíveis fósseis, a redução do desmatamento e a defesa da biodiversidade. Esses três elementos são fundamentais, e eles não são propriamente da Saúde, influem extra setorialmente.

O Brasil vai dizer que é muito importante ter um sistema de saúde não emissor ou com uma pegada de carbono que não seja nociva.

Precisamos ir além e vencer a resistência que tenta atribuir ao setor Saúde o papel de reduzir suas emissões, e não o de tratar as causas da crise do clima.

O que o Grupo de Trabalho de Saúde do G20 precisa falar sobre o impacto da mudança climática na saúde é que não haverá redução desse impacto negativo se não conseguirmos a redução da emissão dos gases de efeito estufa, que vêm da queima de combustíveis fósseis e também do desmatamento que facilita incêndios florestais.

Por outro lado, é claro, deve-se buscar a conexão do tema mudanças climáticas com a necessidade de termos sistemas de saúde preparados para enfrentar as doenças emergentes e reemergentes, porque a ampliação das zonas de calor faz com que doenças transmissíveis por vetores ampliem-se cada vez mais na direção de áreas onde antes elas não existiam. E o controle de vetores fica dificultado pelas temperaturas altas em regiões onde as doenças já existem.

 

Em 2024, o Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS) da Fiocruz completa 15 anos. Qual o balanço deste período?

A criação do CRIS ocorreu, através de conversas com o Paulo Gadelha, que me sucedeu na presidência da Fundação e que tinha uma sensibilidade enorme para o campo da cooperação internacional, para reforçar a densidade, a fortaleza e robustez à cooperação internacional da Fiocruz, particularmente na cooperação Sul-Sul.

Um legado importante foi o desenvolvimento, dentro do CRIS, do conceito e da prática da cooperação estruturante em saúde.

Isso significa superar definitivamente a visão de que nós sabemos e alguém não sabe na assistência técnica. Não, é um aprendizado sempre conjunto. A partir daí, o Centro se fortaleceu muito e contribuiu para a criação e o robustecimento das redes de institutos nacionais de saúde, seja da América Latina, seja da África, da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], a rede ibero-americana que inclui Portugal e Espanha, e também a rede de centros formadores de profissionais de nível médio, a educação de técnicos, que é liderada pela EPSJV; dos centros formadores ou das escolas de saúde pública, pela ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca]; e dos bancos de leite humano pelo IFF [Instituto Fernandes Figueira].

Nos últimos quatro anos, implantamos o Observatório de Saúde Global e Diplomacia da Saúde, criando a série que já alcança mais de 80 seminários lançados de Saúde Global e Diplomacia da Saúde.

Os Cadernos de Saúde Global e Diplomacia da Saúde se transformaram em um veículo importante, utilizado não só pelo governo como também pela sociedade civil e pelas universidades brasileiras, hoje sendo um instrumento reconhecido.

Esses exemplos expressam a criação deste think tank chamado CRIS, que pensa a realidade internacional no campo da saúde e ao redor da saúde, aquilo que é extra setorial e que impacta a saúde.