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Entrevista: 
José dos Santos Souza

'A MP abre caminho para aumentar a precariedade do trabalho'

Para o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) José Souza, a medida é uma reprise da reforma trabalhista, com mudanças que avançam ainda mais sobre os direitos dos trabalhadores
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 26/11/2019 13h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

No dia 11 de novembro, o governo federal editou a medida provisória (MP) 905, que altera diversos itens da CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho, e tem como peça-chave a criação de uma nova modalidade de contratação: a carteira verde e amarela. A justificativa é incentivar a criação de empregos entre os jovens na faixa etária dos 18 aos 29 anos. Para isso, a MP estabelece um programa de contratação  que dá como 'bônus' aos empregadores a desoneração de encargos trabalhistas.  A equipe econômica calcula que contratar com carteira verde e amarela pode sair  de 30% a 34% mais barato em comparação com a mão de obra contratada nos marcos celetistas tradicionais. Os jovens com essa carteira verão a contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) reduzida de 8% para 2%, e o valor da multa por demissão sem justa causa cair de  40% para 20%. A medida provisória permite que as empresas contratem até 20% dos seus empregados nessas condições. Com isso, elas serão beneficiadas com isenção da contribuição previdenciária patronal e do salário-educação – tributos que incidem sobre a folha de pagamento e sobre as contribuições ao Sistema S. O texto vai além e mira a jornada de trabalho dos bancários, além de abrir a possibilidade de abertura das agências aos sábados. Além disso, a MP revoga diversos itens da CLT, incluindo medidas de proteção ao trabalhador. Para o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) José Souza,  a MP é uma reprise da reforma trabalhista, com mudanças que avançam ainda mais sobre os direitos dos trabalhadores. “O espírito da medida provisória é de desresponsabilização, de desregulamentação e de flexibilização do trabalho”, alerta.

A MP 905 pode ser considerada uma nova reforma trabalhista?

Com certeza é uma nova reforma trabalhista. A medida provisória, inclusive, traz elementos que já haviam sido rejeitados na reforma de 2017. Um dos problemas principais da proposta é o fato de ela não atacar os objetivos aos quais se propõe, ou seja: combater o desemprego na sociedade. Ao contrário, a MP abre a possibilidade de o desemprego permanecer e, ainda por cima, o país experimentar um aumento no nível de precarização da força de trabalho, principalmente na população-alvo, os jovens entre18 e 29 anos.

Outro ponto que também merece destaque é o fato de essas propostas do governo federal não se adequarem ao formato de medida provisória, pois não têm natureza urgente. O governo deveria apresentar essas mudanças via projeto de lei, de modo que seu conteúdo pudesse ser amplamente discutido com a sociedade antes de ser aplicado. O governo se utiliza de um expediente jurídico-parlamentar para impor a sua agenda. O que, inclusive, está em desacordo com a Convenção 144 da Organização Internacional do Trabalho [OIT], que estabelece a necessidade do diálogo tripartite [entre trabalhadores, empregadores e Estado] para a alteração de normas trabalhistas.

A MP revoga 86 itens da CLT, entre os quais os direitos e medidas de proteção do trabalho, como, por exemplo, o artigo 160 que determina que nenhum estabelecimento pode funcionar sem prévia inspeção e aprovação das suas instalações. Além disso, ela cria um conselho – voltado para o  Programa de Habilitação e Reabilitação Física Profissional, Prevenção e Redução de Acidentes de Trabalho –, sem a participação das representações dos trabalhadores e também do Ministério da Saúde. Como essa mudança se liga ao  contexto da recente flexibilização das Normas Regulamentadoras (NRs) da saúde e da segurança do trabalho?

Para começar, essas medidas dificultam a fiscalização do trabalho, inclusive quando o trabalho é desenvolvido em situação de risco. Outro aspecto é que ela retira do sindicato a autoridade para interditar um local de trabalho com risco iminente. Quando a MP institui esse Conselho  sem qualquer participação dos representantes dos trabalhadores, e nem mesmo do Ministério, isso contribui  para desregulamentar o mundo do trabalho e. e desresponsabilizar o empresariado, além de dificultar a ação dos trabalhadores na luta por melhor proteção social e por melhores condições de trabalho. Ao fim e ao cabo, a MP abre caminho para aumentar a precariedade do trabalho.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, a taxa de desemprego para os jovens entre 18 e 24 anos, era de 25,8% no segundo trimestre do ano. Diante desse cenário, o governo justifica a criação do programa alegando que, na medida em que os empresários terão menos gastos com os encargos trabalhistas, isso irá gerar mais empregos para os jovens. De fato isso irá acontecer?

Eu não creio que a MP tenha qualquer mecanismo que possa vir a contribuir para a diminuição do desemprego. Na verdade, o espírito da medida provisória é de desresponsabilização, de desregulamentação e de flexibilização do trabalho. O que vai acontecer é que as empresas poderão ter uma alta rotatividade dos seus funcionários porque a MP não prevê nenhuma garantia para que esses novos contratados possam ter algum tipo de estabilidade – muito pelo contrário.

A MP também amplia a desregulamentação da jornada de trabalho iniciada pela reforma trabalhista de 2017 com a liberação do trabalho aos domingos e feriados sem o pagamento em dobro, estabelecendo que essa remuneração acontece apenas se o trabalhador não folgar ao longo da semana. Essa é uma forma de precarização do trabalho também? Por quê?

O que o governo está fazendo por meio dessa MP é reapresentar algo que já havia sido derrotado anteriormente e, pior ainda, dessa vez mirando o público-alvo mais precarizado do mercado de trabalho que é a população jovem. Não dá para transformar a perda da conquista da classe trabalhadora à folga semanal como uma forma de combate ao desemprego. Isso também acontece na parte que a MP tira do trabalho bancário a obrigatoriedade de seis horas, restringindo apenas para os caixas, e também quando permite ao setor bancário substituir a contratação de três bancários, cada um trabalhando por seis horas diárias, por dois bancários que trabalhem oito horas por dia cada um. Por essa conta simples dá para perceber que isso não vem para diminuir o desemprego, mas para garantir condições de o setor bancário desempregar.

O governo também afirma que  as empresas não poderão substituir postos de trabalho. Mas, por exemplo, se uma companhia fechar o posto de um funcionário na contabilidade e abrir no RH, quem vai controlar esse fluxo?

Bem, não existe esse controle. Inclusive, a MP reduz os mecanismos mínimos de controle que poderiam ser estabelecidos com relação à segurança do trabalho. A medida faz referência a quantidades apenas. Ela fala que só poderá contratar nesse modelo 20% do quantitativo que a empresa tiver no último ano. Isso não dá nenhuma garantia.

Atualmente que tipo de emprego/ocupação os jovens mais tem acesso no Brasil? Qual seria a melhor forma de estimular a geração de emprego para a população dessa  faixa etária?

Pelos dados do Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], a população jovem ocupa cerca de 30% do mercado de trabalho formal e recebe até R$ 1,5 mil por mês. Mas quando você pega os dados do trabalho informal ou temporário, ou trabalho intermitente, a população jovem é a maioria absoluta. A melhor forma de combate ao desemprego – não só para a população jovem, mas para toda a população economicamente ativa – é um investimento em capital fixo. Não tem como gerar empregos num país em que a economia está menor a cada dia, onde se fecha postos de trabalho. Todos os esforços do governo para desonerar o empresariado e para fomentar a geração de empregos não tem tido os resultados prometidos. Ao contrário, apesar de os governos municipais, estaduais e federal promoverem isenção de impostos e perdão de dívidas, isso não tem se revertido em postos de emprego.

É preciso fazer com que a economia do país cresça para que as empresas possam voltar a investir e para que haja investimento no capital fixo. É isso que gera emprego. Não basta ações como essa MP que, na verdade, é uma desregulamentação e flexibilização do trabalho disfarçada como medida de geração de empregos.
O investimento em capital fixo é garantir que as empresas possa investir no próprio desenvolvimento, no seu próprio crescimento, é aquilo que o próprio capital chama de sustentabilidade. Só que é a sustentabilidade no sentido real e não a sustentabilidade do discurso governamental usado para que a classe trabalhadora aceite com naturalidade a precarização do trabalho.

Nesse cenário da MP e de outras mudanças que já passaram, como fica o trabalhador brasileiro?

Uma situação que chama bastante atenção é o fato de as nossas centrais sindicais se encontrarem completamente apáticas diante de tamanho ataque à classe trabalhadora. A sociedade está mergulhada em um individualismo medonho, conformado por três pilares: a ideologia da empregabilidade, do empreendedorismo, e da sustentabilidade. E esse corpo ideológico é mobilizado tanto pelo Estado quanto pelo empresariado. Então, a situação da classe trabalhadora no país é bastante crítica no momento em que ela se vê mais subjugada pelo capital. É o momento em que ela se vê com menos condições políticas de reação porque está pacificada. Diante do ataque, ela se vê inerte e desprotegida.

Os efeitos dessa MP são sentidos imediatamente ou existe um intervalo para que a gente possa começar a notar as primeiras consequências?

Creio que já veremos as primeiras consequências agora, durante os meses de dezembro, janeiro e fevereiro, graças ao aquecimento do mercado por causa do movimento do Natal. Como as empresas poderão aplicar os dispositivos da medida provisória para contratação desses jovens, não creio que o efeito seja retardatário não. Será imediato, infelizmente.

Comentários

Precisamos não ser mais realista que o Rei. Essa MP não altera o RJU.